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quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

ACIDENTES

BREVE COMENTÁRIO

Enviei uma cópia destes poemas para a apreciação do mano Domingos Diniz que me respondeu, com sua generosidade de sempre:

“...Junto à carta um punhado de bons, ótimos poemas tendo como tema esses sertões que o mano véio tanto conhece e adora. Você é um poeta nato. O seu texto, seja qual for a temática é impregnado de poesia. O nosso mestre Aires da Mata Machado Filho sempre dizia que uma prosa para ser boa tem que ter uma boa pitada poética. Diz, ainda, que para se fazer qualquer inferência de um texto, especialmente poesia, há de se fazer, no mínimo, duas leituras bem feitas. E ainda não tive tempo de fazê-las. Li os poemas de uma só vez, mas já deu para sentir que a coisa é boa, de primeira como tudo que o mano veio escreve. Os quatro versos finais de cada poema são um achado genial. Se separá-los cada um dos quatro versos, cada conjunto dá um poema fabuloso com vida própria. Completo.Leia-os separadamente em voz alta e verá o efeito. Cada final dos poemas há nele o eu universal, não apenas o eu-autor (o hífen é meu, ponho-o onde quiser, às favas com a reforma ortográfica). Quando o leitor ler ele se sentirá dentro da mesma forma que o autor”



SOU UM ACIDENTE

Eu quis, com estes versos,
um retorno no tempo;
buscar o menino sem peias,
sem fronteiras, sem futuro.
Senti, na volta feita,
que a vida é um acidente.
Passamos por momentos,
somamos momentos
e nas impressões gravadas
arrancamos sensações
juntamos emoções.
Cada acidente é uma vida,
nova vida que nasce e se refaz
e muitas vezes se perde.
Conquanto finitos,
Somos parte do infinito,
Mistura com a natureza,
e o que dela colhemos
é onde está o nosso sentimento,
é por onde vagueia nosso espírito.
E juntando acidentes
escrevemos nossa história.
A vida é um acidente.
Eu também sou o acidente.
Tenho minha passagem pela vida,
certamente fui notado
e cantei a minha canção.
Pelo menos para os que me querem.

***


O RIO E A BRISA

O rio pulsa
Seu silêncio
Sepulcral
Passa

Espelho de luz
Véu plúmbeo
Corpo que passa
Silêncio

Uma pedra
Uma loca
Uma raiz
Um acidente

O rio canta
Reverberação da sua voz
Insinua pelo barranco
Sai além

A brisa
Ligeira voa
Só o frescor
Dela o sentir

Vem e vai
Como corcel
Solta no ar
Do sertão

Um galho seco
Ninho de gravetos
Frondes cheias
Acidentes

O acidente
É vida
Rebusca o guardado
Para se revelar

***


BARRANCO

Limite do córrego
Do ribeirão
Do rio.
Da vida

Penhasco
Degraus de barro
De verde forrado
Capim d’anta
Braço-duro
Pajeú enlaçado
Verde denso ali
Pelado exposto acolá
Gretado pelas águas
Cortado pelo vento

Barranco do pescador
Esperança na saída
Ânsia pela chegada .
Família que fica
Que espera
Abraços mais nada
Barranco é ponto
Partida
Chegada
Na vida do barranqueiro.

Trilha torta do gado
Encosto do jacaré
Abrigo da ariranha
Da capivara ressurgida
Da lisa lontra
Limite do campo
Do pescador o deixar
Que a vida passe
E ele vai ficando
Indo ou esperando

Encosto do vapor
Entupindo-se de lenha
Pela o barranco
Um apito
E um pedaço de mata
Viajou no ar.
E a vida passa
A fumaça passa
Ficam o barranco
O barranqueiro

Barranco
Barranqueiro
Mundo vagaroso
Uma história longa
Uma vida
Um rio
Viagens e sonhos
De quem não vai
Preso na âncora
No barranco.

No barranco, sentado,
Sonhei meus sonhos
Vivi minhas saudades
Deixei o mundo.

***


BOQUEIRÃO

Os gerais se espraiam
Espicham-se em vagas
Como ondas
Sopradas pelo vento

A linha do horizonte
Atrapalha-se com o céu
Verde/azul
Um liso só, como o mar.

A vaga se abre
Escorre abaixo
Para o mundo que espera
As notícias gerais.

A planície
O vão.
O corpo imenso
Que despenca no precipício

Viaja pelos sopés
Indo e vindo além
Enseadas criando
De densas matas.

Trabalhou o arquiteto
No gigante espraiado
Desenhou em rochas
A formosura da mulher

Vales cortando
O corpo da serra
Bocas se abrem
Lábios separados

A vida inaugurada
O boqueirão
O caminho
Entre gerais e vão

Mata fechada
Fresca e escura.
Aroeiras seculares
Imperatrizes

Sugere locas
Refúgio de bichos
Ninhos de onça
Morada de peçonhas

Corredor de barbados
Guiando as guaribas
Cantando seu lamento
Nas noites de lua.

Boqueirão...
No seu escondido
Deixei um olhar demorado
No mistério da travessia

O que vem
O que vai
O que sou ou serei.
Boqueirão.

***


BREJO

Barro preto
Terra molhada
Regos
Tufas
Taioba
Samambaia
Frescura
Refúgio

Brejo
O medo
No passo ido
Da moita fechada
Brejo
Capa da água
Dormida
Poros suados

Brejo
Fechado
Vida guardada
Sem encanto
Um tesouro
Ouro negro
Berço de água.
Escondida

Quanto me fiz brejo
No passar da vida
Fechado para uns
Misterioso para outros

***


CACHOEIRA

Borbulha na loca a gotinha
Refresca a raiz do buriti
Escorrega noutra que passa
Necessidade de ter a vida

A corrente em cantigas
Vence bailarinos fiapos
Algas verdes e vermelhas
Enfeites do barro branco

Goteja lágrimas o barranco
As notícias do seio da terra
Mansamente elas escorregam
Deitando-se no veio cristalino

Caminho cortando os gerais
Saciando a filharada de Assis
Não tem parada no seu fluir
Desafia pedras e locas

Na viagem serena de repente
Uma enorme pedra rasgada
Boca. Travessia. Precipício
Os gerais ficam para trás.

As águas se espremem
Um só corpo despenca no ar
E lembrando o nascer na loca
Reparte-se em tantas gotinhas

Umas voltam como fumaça
Outros seguem o destino
Mergulham no poço do ir
No destino - o rio, o mar.

Cachoeira tem cada um
É a divisa no seu tempo
O compasso da saída
Para se ter a sua chegada.

***


CAIS

A estradinha rasga o cerrado
Esbarra e some no de se ver
Joga-se para o fundo do vão
Como vôo de uma cachoeira.

E faz uma linha tortuosa
Abraçando os gerais ao vão
Dois universos diferentes
Com seus encantos de ter.

Tornejando o corpo do platô
Espicha uma comprida linha
Dois lados buscando o além
Desenho da passagem do tempo.

Os verdes vales vão longe
Neles corre solto o vaqueiro
O seu grito vai pelas quebradas
E volta para dizer que tem fim.

Dos barrancos escarpados, nus
Abrem-se bocas enormes, vermelhas
Terra comendo terra, tão voraz
Molhadas nos banhos da chuva.

Pedras presas nos taludes
No emaranhado de raízes expostas
Como parasitas ou frutos da terra
Se perpetuam ao beijo do vento.

Nos socalcos pedrinhas estremecem
Das noites frias ao sol escaldante
Esfarelam-se em moinhas sem forma
Piso falso da natureza esfacelada

E ainda assim a vida se mostra
No colorido de mimosas flores secas
Teimando em ser jardim na aridez
Do desencontro e transição.

Os gerais espicham os olhos de querer
Navegar no verdume dos vãos
que fantasiam os seus sonhos
Imaginando como seria perto do céu.

Assim levo meu tempo, também.
Quero ser gerais para ter o céu
Quero ser vão para ter a esperança
Renascendo em mim todos os dias.

***


CAMPINA

A campina tão lisa
De capim dourado solto
Piso de nanicos
E contorcidos troncos

Corpo de três limites
Nadir, zênite e horizonte
Um mar dourado de sumir
Pontilhado de velas rotas

No estio a pradaria
É de areia fina como ouro
Que se solta em partículas
Para buscar o céu.

Nas águas o trilho é curto
Quase nada além se vai
Ficando de esperar ali
Num poço sem peixe

Troa jeito de saudade
Numa morada escondida
O trovão chamando a alma
Para rever o que não teve

Campina, esse nome doce,
Para mim é uma lembrança
Dos infinitos não chegados
Pelo meu eu tão finito.

***


CAPÃO

Capão prisioneiro do cerrado
Ilha na vastidão de horizonte
Tão pouco em limites curtos
Mesmo assim travessia limitada

Um corpo quase estranho
Árvores de grandezas outras
Não são tortas nem nanicas
Se arranjando noutra roupagem

Do campo limpo e ralo
O vivente ou a rês desgarrada
Nele favorece-se do refrigério
De muita sombra precisada.

Tão pouco frutas e frutinhas
Como no mundo do cerrado
Aquelas delícias de um éden
Para a bicharada do céu

Mas é belo, formoso e denso
Onde canta o vento dos gerais
E no sertão tem sua serventia
Dá ao homem modo de viver.

É a farmácia do sertanejo
Pródigo em cascas e raízes
Sementes e folhas
Todos os remédios da vida.

Na vida, qual seja o modo
Todos temos serventia
Um de modo bonito de ser
Outro apenas a generosidade.

***


CERRADO

Matas das serranias e planícies
Tapetes densos de verde brilhoso
Sombrias de umidade penetrante
E fofas alfombras de folhas secas

Rios cortando rochas e vastos campos
Pântanos de fauna exuberante
Lagoas imensas de querer o mar
Tudo no sentido de grandeza

Perdido na mata, perdido fica.
No rio muito tem que navegar
no despropósito de grandeza
O belo se esgota na precisão.

Vai aos gerais de olhos fechados
Sinta só os eflúvios da mãe terra,
O cheiro do ar sem gases da morte
E a canção do vento e dos alados.

Tão simples o universo aberto.
Primeiro de se ver: o cerrado,
Mas assunta um tanto no quieto
Para saber que mundo se lhe abre.

Um bordado de árvores nanicas,
Retorcidas, desleixo de vida;
Frondes forradas de folhas ásperas
Sem frescor, matizes e flores.

No entreaberto dos troncos,
Mira-se a linha do céu,
E no chão o capim seco, espícula
De sentido uma pintura.

Não tem vida no quadro mostrado,
Vivente não prospera nem fica,
De tudo tão carente até de sombra
Nada mesmo é fatível de abrigar.

Desfaz-se o engano numa quebrada,
Estatelam os olhos num festim,
Diante da parede verde estonteante
Querendo alcançar o céu.

Rompe-se o canteiro de ciganinhas,
Colar no portal do cerrado.
Um tapete verde/roxo avança
No abraço da virginal natureza.

Na alma soam duas canções então,
Maviosas em seu tempo separadas:
Nos flabelos aos beijos da brisa,
Nas ramagens no fluir do riacho.

A arara estridente sinaliza a vida
Bem no topo do buriti, roendo frutos
Jandaias e galegos voam e revoam
Pincelando suas cores no azul.

Distraído, sem assombro, desce o cervo.
No chifre o amarelo da caraíba
Que lhe servia de repasto no orvalhar
E vai bebericar na pura fonte.

Ali se tem o gosto da eternidade,
Retorno às origens do éden
Sente a graça do Criador
Na dádiva pura e abençoada

No voltar ao mundo, seco e real
Pelas estradinhas de areia branca,
Dá de se cobrir do roxo da sucupira
Ou se vestir como a mimosa piúna

De acompanhar a dança das abelhas
Mergulhando no néctar perfumado
Das alvas flores da sambaíba
- Lixeira só pela aparência áspera.

Mais indo é preciso no andar.
Abre-se o maná do cerrado
Homens e animais, do chão e do ar
Alimento ou remédio da vida

Ananás , cabeça-de-nego, buriti
Mama-de-cadela, cagaita, cajuzinho
Coquinho, coco indaiá, grão-de-galo
O pequi... Pode passar fome?

Alcanfor, sambaíba, angiquinho, aroeira
Assa-peixe, arnica-do-mato, barbatimão
Batata-de-purga, carapiá, ipê roxo e... e
Cada casca, raiz ou flor, a vida segue.

.E dos bichos, só de amostra:
Tatu, veado, lobo, ema e seriema, onça
Tamanduá, raposa, gambá, anta e paca
Peixes e sucuri no brejado do buritizal.

Preciso ver, sentir é preciso - o cerrado
Pairar no mar de nanicas árvores, buritis...
Ouvir o canto que entoam os gerais
E aí, então, terá de dizer: Deus-cerrado.

***


CÔMORO

Deixando as serranias para os vãos
Ainda nos platôs como no deserto
Os cômoros vão se mostrando
Como dunas quebrando monotonia

As extensas rechãs nas abruptas caídas
Destampam noutro plano, o vale
Apinhado de cômoros como chapéus
Que saltam pelo vão até chegar ao rio

Aqui e ali assomam formando cocurutos
Saindo da mata seca dos umbuzeiros
Pequenas cordilheiras desnudas
Mirantes para buscar os horizontes

O cômoro sem ser uma montanha
É uma sensação do ensaio das alturas
Lembra os sinais que tem do platô
Mas na mata é uma curva da terra

Quanta gente na vida como o cômoro
Quer ser planície para ir longe
Quer ser montanha para ter o céu
Mas nunca sai do lugar.

***


COROA

O rio não é só de água como se vê.
Tem a companhia da coroa.
É preciso ser lembrado das origens,
O ninho deixado nos além nos gerais.

A coroa, como o rio, nasceu da terra,
Também em suas entranhas gerada.
Vem dos grãos que rolam e ficam,
Ainda que tivessem a sina do mar.

Coroa e suas serventias, como a praia.
Férteis vazantes capazes do alimento:
A abóbora para o pirão com a curimatã,
O milho e o feijão catador para fritura

O pouso para o corpo tostado do pescador,
O sítio macio para a donzela dourar a pele,
O quentinho para o ninho do quem-quem,
O colchão para o jacaré tomar sol em paz.

A coroa hoje não mais cumpre sua sina,
O seu modo de chegar, com o rio, no mar,
Das belas praias cobertas de coqueiros.
Não pode acompanhar a leva das águas.

Estancaram seu deslizar para dar serventia,
Outras serventias para a companheira água.
Fica para trás pela mansidão escorrer,
No retido de tantas barreiras levantadas.

Os grãozinhos perdem a viagem da descida
Na água parada-paradinha quase sem ir.
O grãozinho assim não passa nas goelas,
Na passagem da água para o mar..

As coroas ficaram para trás, em um porto,
Ali por tempo só mudando de lugar.
É como fico, na vida, querendo um mar,
Mas mal posso mudar de lugar, fico.

***


FOJO

O que tem no fundo do fojo?
A boca disfarçada
Em um tapete sutil
Perigo escondido
Sombra impérvia
Aos olhos do curioso

Fios brancos
Fios baços
Fios negros
Rede véu
Camuflagem
Armadilha das aranhas

Escuro tão escuro
O não sabido
O escondido
Tem fundo?
Não tem fundo.
É o fojo.

Olhos estatelados
Abrem-se as pupilas
Buscam o fundo
Mas o fundo não vêem
O fundo no fundo
São apenas sombras

Bichos e fantasmas
Seres da terra
Cobras no ninho
Caranguejo peludo
Antenas arrebitadas
Ferrão vermelho

Mistério. Horripilante
Se fosse pelo ouro
Se ouro tivesse
Seria a aventura do ir.
Eu entraria no fojo
Somente por um sonho

***


GROTA

No abrupto estender da rechã
Um fino risco fere a terra
Não mais que um trilho
Que se acentua com o tempo.

Chuvas e chuvas - sopita o leito
A enxurrada suave vira torrente
Explode acima da penedia e rugindo
despenca pela ribanceira abaixo.

Um vale se abre no ventre da terra
Vorazmente devora o chão e o mato
Um longo caminho aberto ao céu
Buscando as margens de um rio.

No rigor da seca um leito de areia
Barrancos nus, torres de areia
De raríssimo verde senão do mato
E sem lembrança das frescuras.

Não tem modo de esconso e mistério
Menos ainda escuridão e umidade
Não tem cores e alegria
Só a tristeza dos barrancos lavados.

Grotas sem beleza e mistério, nada
Mas guardo sentimento por duas
Paiol no Carinhanha da minha infância
E a Surucucu do Mestre Minervino

Conheci uma numa aventura imberbe
Quando vivia de sonhos e fantasias
Outra por ter encontrado a genialidade
No mais simples dos seres um artista.

Podemos ter também uma vida
Sem serventia como uma grota
Mas também, por ser um acidente,
Guardar, sempre, muitas saudades

***


GRUTA

Pedra lisa, pedra frisada
Monte de pó do tempo
Teias de aranha em fiapos
Cortinas tétricas a bailar
Bocarra escancarando
As entranhas da serra.
Com o hálito fétido
Restos de morcegos
Repugnância remontada
De tantas noites passadas

Sombras do mistério
Receio do desconhecido.
A boca engole o homem
No ir da aventura.
O sangue da terra escorre
Das paredes úmidas
O calor sufoca
A derme fica pegajosa
O ar diminui
O peito aperta

Tem onça dormindo?
Tem cascavel enrolada?
Bicho separado do mundo
O escuro aumenta.
Não se vê mais longe
O arrojo arrasta os pés
Quanto mais longe vai
O quadro se repete
A natureza dorme
Secularmente quieta

A gruta é corroída
Pelo que vem de fora
A enxurrada
Fúria rasgando a pedra
Escoando o que brota
O vento fustigante
O bicho que mija
O homem que quebra.
Que arranha
Pinta o nome da estupidez

O que mostra a natureza?
A barriga da serra.
Pedras coloridas
Todas as cores reluzem
Como pétalas de rosas
Na incidência da luz
Lâminas afiadas
Descendo
Subindo
Nas pedras encrespadas

Eu vejo na gruta
Sonhos esquecidos
Que teimo salvar
Na teia da vida.

***


ILHA

A ilha é mundo no mundo
O barro que ficou vindo da água
Por isso tem seus horizontes
Fincados nas correntes eternas

Estágio de modos de vida no tempo
Não remonta a distante passado
Não tem a certeza da vida futura
Ilha é estar, é tão só o presente

A ilha é tolerância do rio
Ele dá, ele tira, quando quer
E na relação umbilical
Só ela tem quatro barrancas

Na ilha a poesia se repete
No dia o esplendor do sol
Nas noites miríades de estrelas
E o brilho prateado da lua

Pulsa nela o universo físico
E mundo renascendo
A natureza se manifestando nos sons
Que ferem os silêncio

Lajedo ponta lambendo o Pardo
União, Tapera, Bom Jardim da Prata
Mata do Engenho, Capivara e Acari
Cada ilha um nome e uma saudade

Sobe o feijão catador de verde sumo
Brotando das placas de húmus
A abóbora-jacaré, milho verdinho
Quiabo, maxixe e melancia da praia

Ilhas do meu São Francisco, ilhas
Acidentes dadivosos no meu rio
Nela repousa a vida, renasce a vida
Ilhas do meu São Francisco, ilhas.

***


LAGOA

O cricrilar dos grilos orquestreiros
Padovanam motu perpétuo noturno
Os sapos ressoam como trompas
Marcam a passagem dos compassos

Tal o fagote pontuando os graves
O sapo-boi ressoa soturno
As pererecas batem sinos
E levam a orquestra ao staccato.

No fundo da orquestra, na penumbra
O contra-fagote faz tremer a natureza
A orquestra se segura no staccato
Ronca grosso a sucuri dentro da noite

Na boca da mata, numa galha solitária
Fluí no éter o melífluo som do oboé
Melancólico o urutau chama a lua
Se cobrindo na sua paixão melodiosa.

A lagoa cai em sono profundo
A lua espelha-se na serenidade
Das águas fronteiras límbicas
Longe dos esconsos de mistério

O alvor lentamente desperta o dia
O passaredo ensaia a vida
Suaves frisos riscam o horizonte
O céu vai chegando todo de azul

Nos jenipapeiros mergulhões
Abrem as asas no acalento do sol
No ninhário como nuvem assentada
O espichar de pescoço anuncia a garça

O maestro invisível dá um sutil sinal
A lagoa é sacudida de ponta a ponta
Mergulhões em bandos ferem o espelho
E agitam as asas encurralando os peixes

Ágeis pescadores mergulham no fecho
Peixes trazem preso nos bicos fortes
No jenipapeiro com papo cheio esperam
Aliviam as sobras na folhagem verde

As garças pescam com calma filosofal
Piabas que dançam entre o água-pé
Esquecem-se do dia e comem sem parar
Depois alçam o vôo buscando o pouso.

E a vida vai reverberando em sons
O vento sopra a flor lilás da água-pé
E curimatá estrala o rabo em fuga
Das esfomeadas piranhas em bando

O jacaré deixa o banho sol e escorrega
Abrindo caminho entre o tapete verde
Busca um bicho distraído no comer
Antes que lhe roube a presa a sucuri

Depois chega o rei o que se impõe
Chega o que não observa o equilíbrio
Imbica a proa da canoa e joga a rede
Principia então a morte da lagoa

Como todos os bichos vivem bem
Filhos da natureza no seu mister
E, assim, eles vão tecendo a vida
Onde o homem é o desequilíbrio.

***


MATA SECA


Aprecio a mata seca
Por que ela é seca
E se assim não fosse
O verde não faria festa

Paus desprovidos da graça
De folhas que forram a fronde
Onde cantam a brisa e as aves
Natureza morta, um retrato.

As vaquetas são cambitos
O pau pereiro só o fruto
A mamoninha quase pelada
Verde só o algodão-seda

Na floração de calcário
Pedras espetadas ou colunas
A aroeira abraça a imburana
Elas são companheiras do agreste

Nas cavidades das rochas
Incham os verdes bulbos
Do portentoso umbuzeiro
Árvore sagrada do sertão.

Mistério da natureza
A flor branca do umbu
Só se vê na seca
Anunciando a chuva

Se chove transforma-se o mundo
Um novo cenário é estampado
O verde cerra as cortinas
A densa mata tudo cobre

É a beleza do sertão
Ensinando a vida:
É preciso ter o triste
Para o belo desfrutar.

***


PANTAME

A traíra negra sonolenta cevando
Como morta pousada no esconso
Do tapete de água-pé e taboas
No medo do jacaré ou da piranha

Água pouco se vê sabendo dela ali
Escondida sob o manto verde
Água-pé e taboa disputam espaço
Mandando raízes no fundo firmar

O tremer de folhas - sinal de vida
Quem busca a caça resvala de manso
Sem pressa e nem ganância - só jeito
De não perder o seu sustento ali

A sucuri ronca profundo sua presença
Os viventes aguçam os sentidos
Até jacaré caça outro porto de ficar
Ela é a dona dos esconsos com a traíra

Não tem canoa singrando
Nem rede e pouco se vê o anzol
Dorme tranquila a traíra e ceva
Só com medo do jacaré e da piranha.

Pantame - profundo mistério
Tem água, mas não é de se ver
Nele nem os bichos se mostram
Sorte: o homem passa ao largo

Minha alma, às vezes, é um pantame
Sem uma fresta para a luz passar
Escondendo tesouros e mistérios
Que homem algum há de conhecer

***


PONTAL

Pontal de cima
Pontal de baixo
Navegam os sonhos
Nas curvas do rio

Mistério da curva
Sensação do barco
deslizando alegrias
Vida de tanto esperada

Na curva do horizonte
O rio chega e vai
Do barranqueiro
Os sonhos leva

Pontal de cima
Pontal de baixo
Dois extremos
Dos braços do rio

Apertam o barranqueiro
Na sua contemplação
Para depois do vir
A vez do ir

Pontal é esperança
Que disfarça saudade
Nele a vida aponta
Nele ela se despede.

***


RIACHO

É como um sussurro...
A mãe-terra se abre
Numa loca buritizal
Nas grimpas da serra.
Chuá... chuá... chuá
E a canção cresce
O marulho que deixa a ramagem
Chega à boca do carrasco
E ao ouvido do caminheiro
Viajante solitário dos gerais.

Deixa a loca e escorre
Lavando raízes e folhagens.
Desce cantando a despedida
Da loca fria e sombreada.
Molhando pedras esmeraldas.
Dos barrancos a “salmoura”
O brotar do sangue da terra.
O riacho cresce e cresce,
Não é mais a pequena fonte.
Escorre em campo aberto.

Da paz da vereda sombria,
Estampa o céu aberto dos gerais.
As curvas de pedras, o sol,
De repente, uma queda.
Brilha como lâmina estirada
E despenca no vão.
Vai fincar num poço frio
Aberto na rocha com o tempo.
Serpenteia entre pedras
Buscando outro caminho.

Desce a serra, o boqueirão,
Corre abrindo passagem de manso,
Agitando cabelos finos de algas
Nas pequenas frias locas;
Vê dormitar velhas traíras
E o bailado de assanhadas piabas.
E, de repente, se agita de leve
Com as bicadas das garças
Varando suas águas
E vai descendo, fazendo barranco.

A pequena planície atravessada
Alcança, bem mais volumoso,
O baixio úmido, jeito de brejo.
Faz curvas curtas e longas
E escorre sem pressa.
Não é largo, vence-se de salto
Muita folhagem, matinho forrado.
Se mais largo se faz
Uma pinguela tosca, lisa
É a serventia da passagem.

De noite, depois da faina,
O homem nele se encosta
Para tentar o bagre
Num poço de água quase parada.
Natureza do córrego.
Mais um lanço vencido.
Ele chega à oficina
E enche o cocho do monjolo.
Ecoa ritmado chuá varando a noite
Que chega sonoro ao rancho.

O córrego atravessa o brejo
Camuflado no barro negro,
Vai depois virar ribeirão,
Lavar os barrancos altos,
Cavar neles o barro e a areia.
Manso vai servir à lavadeira.
Por onde correr planta a vida,
Depois de muito viajar vira rio.
E como rio faz jornada maior,
A de chegar ao mar seu destino.

Viajei com aquele filete
Brinquei com o riacho
Saltei e pesquei no córrego
Sentei pertinho para apreciar
O descer e o subir do monjolo
E virei, com ele, ribeirão.
Cheguei a ser rio
E, agora, já penso,
Estou indo para o mar.
Chego perto do meu mar.

***


TABULEIRO

Doce fragrância inunda o ar em rolos
O alívio caminha pelo peito
Remédio para todos os males
O carapiá que me ensinou Zé Guedes

O carapiá me levou ao tabuleiro
Onde se espalha como planta rasteira
Se faz tapete da farmácia do sertão
Universo de seiva, sementes e cascas

O tabuleiro é também tal como oásis
Nos recantos do cerrado às matas
Nas frescuras dos boqueirões
Veias que cortam as entranhas do chão

É de ter sombra bem formada
Da graça do jatobá-do-campo e sucupira
Do d’arco, peroba do campo e do tingui
Belas árvores intermediárias como ilha

O tabuleiro riqueza apreciada no sertão
É dádiva do raizeiro e descanso do gado
Refúgio de bichos do sol inclemente
Sombra fechada sem a graça da água

Tantas vezes quis ser tabuleiro
Para abrigar pessoas à sombra
Sendo refrigério nas inclemências
E, ainda assim, não fui lembrado.

***


VALE

Paredões alcantilados forrados de samambaias
Entrecortados de gretas marejantes de pérolas
Sombreado no topo pelas frondes de aroeiras
Que espalham suas garras pelo pouco de terra

Estendem-se dilacerando a serra sem rumo
Tornejando avançados e abruptos taludes
Braços da serra eternamente estendidos
Não mais se estreitam abrindo a passagem

É o caminho por onde escorrega a vida do cerrado
Por isso fonte da vida, frescura que verdeja
E vai irrigando raízes seculares e pedras lisas
Ganhando os modos de se fazer um belo rio

Os gerais criam, as montanhas agasalham
Depois abrem o corpo tal como o albatroz
Alimentam os vales para levar da natureza
A vida que será para sustentar a vida.

Eu tive uma existência de albatroz
Quantas vezes rasguei o peito
Para saciar a fome de um amigo
Repetindo-a cumpri meu destino.

***


VÃO

O vão tem a natureza das matas
É o caminho do deslizar dos rios
Onde se espraiam férteis várzeas
E as sementes se fazem lavouras

De um sopé ao outro das serras
Cortando extensa planície
É o mundo que torneja os gerais
Sem jamais um degrau subir

Vão dos capões e do carrasco
Das lagoas fartas de bichos
Das estradas poeirentas
O vão sempre acompanha o rio.

Também temos nossos limites
Mas podemos traçar rotas
Ir o quanto possível no caminhar
Em busca dos sonhos além.

***


VAU

Vau é vida
Caminho
Salvação
No seu tempo

Vau é vida
Ida e vinda
Sem o perigo
Da desdita

Mas tudo
Tem seu tempo
É preciso saber
Viver é o risco

O meu rio
Tem muitos vaus
De ida e vinda
Para o bem da vida

***


VEREDA

Vereda é sentir de vida
Encontro de rumos
Transição da alma árida
Para a esperança nascida

É o palácio do sertão
De ricas pilastras com capitéis
Enfeitados de verde e ouro
Ninho da vida do céu

É a cantiga do amanhecer
Quando chega a brisa matinal
É música dolente ao anoitecer
Quando a lua desponta rainha

Na vereda o buriti sagrado
Lenho, folhas, cerdas e frutos
Ponto de ficar do homem
Que procurou seu rumo

A vereda bebe água do cerrado
Junta tudo numa loca escondida
E solta aos poucos o tesouro
Tão guardado enquanto chovia

E os bichos da selva torta
Do carrasco árido esfogueado
Têm o refrigério da vida
E se refazem para outro viver

E o homem dela se farta
Mas o de melhor mesmo
É o tanto de amar e querer
Não vive ele sem o buriti

Nasce com o buriti
Vive com o buriti
E quando se encanta
Viaja com o buriti

A minha travessia tento
Vencer as margens é preciso
Se não der certo, planto raiz
Feliz fico eterno na vereda.



FIM.
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terça-feira, 22 de dezembro de 2009

VIAGEM

(POESIAS)


Foto: Jefferson Felizardo


BREVE COMENTÁRIO

Reuni neste livro os poemas que escrevi ao longo de alguns anos – alguns publicados, a maioria não. São frutos da vivência nas barrancas, o meu dia a dia nesta adorável cidade plantada, deitada e refletida nas águas do Rio São Francisco, passeando por suas ruas, vendo sua gente e gostando de aqui viver. Tem um passeio mais além, batendo nas tristezas que a vida nos mostra, aqui e acolá – mais acolá, num mundo de tantas injustiças.
Reuni minhas impressões, coisas que não podiam ficar guardadas, espremidas, querendo sair do peito. Cantando o sentimento, alivia-se muito. Olho cada poema como um filho criado.
Faço algumas referências, apenas como registro:
A poesia Colheita, foi resultado de momentos tempestuosos na vida política de São Francisco. O sentimento muito bem recolheu Ricardo, meu filho, que escreve a Nova Colheita. Estão na abertura do livro.
Deus: Sertão fiz o esboço em uma boate quando comemorávamos a formatura de minha filha Rachel, no curso de Direito, em Belo Horizonte, no ano de 2002. Eu estava alegre, mas como peixe fora d´água naquela azáfama. Lembrei-me com saudade do sertão urucuiano e deixe o coração à vontade e tudo ficou mais alegre.
Espia – foi incrível, eu o escrevi sentado na calçada na frente do Fórum.
Cenário da janela - como é gostoso assuntar a chuva caindo. Foi o que fiz da janela do meu escritório quando despejavam as bênçãos do céu.
Os Irados- este poema retrata uma situação em que meio a um grupo a desídia floresce e mata o amor.
Viver – foi inspirado no meu compadre João Canaro, aposentado.
Carinhanha – foi uma história que vivi nos meus 14 anos, ajudando na implantação do Núcleo do Carinhanha das Escolas Caio Martins, divisa com a Bahia, criando uma nova civilização.
Esse mundo – três poemas inspirados em episódios que são uma nódoa social na vida brasileira. Problemas que existem, se repetem e acabam se banalizando.
Ninguém me espera - tenho verdadeiro fascínio pelo guardado em cada cidade ao longo das rodovias, quando por elas passo por fora – muitas vezes à noite - e fico viajando no pensamento penetrando nos recônditos de cada lar querendo ser parte dele. E fico amigo de cada cidade.
Santo Antoninho – um retrato em miniatura da história de Santo Antônio de Serra das Araras, como fugiu de São Francisco, de volta para a humilde igrejinha do povoado da Serra das Araras onde permanece, adorado, até hoje.
Tipos – uma homenagem e uma saudade a criaturas que marcaram a nossa cidade com seu jeito. Uns se foram, outros ainda resistem, mas sem a liberdade do caminhar. Admiro-os muito.
Alguns poemas fiz para meus netos, acompanhando suas vidas.
Os outros poemas são divagações e registro de impressões do cotidiano.
Convido-os para esta viagem.



VIAGEM

pensar
deixar a vida
fluir
ou para ler
à-toa
viajo
em
poemas



I – INDAGAÇÕES


A Colheita
A nova Colheita
O Tempo
Réquiem do Amor
Os irados
Ponto
Sétimo Canto
Adágio
Dessangrar
Despojar
Perscrutar
O que Procuro
Ninguém me Espera





A COLHEITA

Já no tempo de caminhar pela seara
e colher os frutos maduros
o vendaval chegou de sopro
e tombou as plantas da terra em cama

quis salvar as sementes coloridas
para reconstruir a vida no campo
mas a chuva caiu de negro
cobrindo a terra levando os frutos

volto outra vez
para o trato da terra
com a esperança de quem crê na vida
mas os campos têm sebes de espinhos
e os chacais rondam vorazes os limites

devo buscar mais além outra planície
onde possa lançar as sementes do amor
e sob o arco-íris da chuva mansa que vem
reiniciar a vida que me foi negada

***

A NOVA COLHEITA

Vai o sopro do vento norte
Jogar por terra os frutos sanzonados
e testemunhou a fúria dos chacais
a impedir novas semeaduras

Impassível, o rio viu...


Que sob o sol causticante
lavrando o solo em pedra
rezando por chuvas tardias
o lavrador semeava

E assim como levou, o rio trouxe...

Um dia de chuva fina e duradoura
a escoar pelo solo fértil e semeado
fazendo brotar do arco-iris
a esperança que nunca foi perdida

O rio levou embora
os tristes anos de deserto
deixando a alegria a afugentar os chacais
nova colheita que se anuncia

18.10.96 - Ricardo Leal de Melo –
Pelas linhas de a Colheita (76)

***


O TEMPO

Onde ficaram meus sonhos?
O brilho dos meus olhos?
A minha inocência?
Onde vou encontrar o eu-menino?

E não vejo o muro de barro
Coberto de musgo,
Que com desvelo levava
Para montar o presépio!

E as mamoneiras dos terrenos baldios
Onde eu era Tarzan?
E pipa a colorida
Balança em que espaço?

Os dedos arrebentados nas pedras,
Não tenho;
Os galos incômodos na testa,
Não passam de lembranças.

Os vergões do marmelo nas pernas,
Não vejo.
Ainda que doessem
Hoje são somente lembranças.

Onde ficaram os meus sonhos?
Onde vou buscar minhas fantasias?
Cadê o eu-menino que se perdeu?
Vou saber em que caminho...

***


RÉQUIEM AO AMOR

O amor sucumbe-se ferido pela incerteza.
Morre, mas o sonho vive como sua semente.
Não há canto de dor em suas exéquias,
pois dele sempre restará a saudade.


Requiscat in pace...

No mundo abissal
a vida pode ser retificada
como o fruto que se desmancha
para libertar a semente;
se vais agora à escuridão
serás luz, pois tens memória.

Tu estiveste nas estrelas trêmulas
e no espelho da lua cheia;
tu brotaste na fonte da vereda
e escorreste entre pedras, nos regatos;
tu foste seixos nos rios,
em busca de teu mar.

Tu foste acordes de sinfonias,
libertando as asas da alma.
Agora visitas a terra,
mas será por um instante;
breve ressurgirás no brilho das estrelas,
pois criaste sonhos.

Não te culpes,
nem deixes que te assome a mágoa;
curva-te, antes aos desígnios,
se buscaste abrir uma porta
- a porta mais querida e sonhada –
e não foste realizado.

O imponderável foge à tua luz.
Contenta-te, porém.
foste fonte de sonhos,
alimento de muita alegria.
Não te encerres na tristeza,
pois levas contigo a saudade.

Viveste, muito viveste.
Agora, desça ao abismo,
prepare teu renascer, tua viagem às estrelas.
É retificando que encontras o caminho,
a luz revigorante. Illuminatti.
DESCANSE EM PAZ. AMÉM.

***


OS IRADOS

As gretas do mal rasgam a terra;
O fedor de enxofre impregna o ar;
O espírito de contradição deixa o érebro
E, ardiloso, se faz gente.
Radiante é o novo filho da paz,
De sorriso e fala dóceis;
Até a voz se torna melíflua.
O tempo passa e o filho do esconso
Sem resistir sua vocação
Mostra, gradualmente, de pouco,
Os sinais de sua vocação:
Primeiro é de incensar e recenar
Laureado conspícuo ser da lei
- reles capacho com ar de príncipe;
Ganha fama e forma diferentes
E passa a ser tão gente,
Mas sem poder segurar tanto disfarce
Não segura a patorra de monstro
Que sai da manga e avança,
Para macular o mundo
E se revela de todo:
Espírito irado,
A indignação contra o mundo.
E vem fogo de bilbode,
Mas sua palavra, conquanto candente,
Pontuda como punhal assassino,
é oca - é o eco do vazio.
Na réstia de luz que conserva
Pelo poder que ganha dos incensados
Ensaia ser imã, centro de um mundo,
E, assim, arrasta as sobras perdidas
E forma o bando dos irados
Que cuidam de semear a desídia
Armam as cizânias do aprisco laureado.
O tempo o consumirá, breve;
Pois já se descerra a sua máscara
Revelando o espírito dos esconsos
E sua volta ao antigo ninho avizinha
Pois não tem suporte para a luz
Que vem vindo, vindo: a verdade.
Ao érebro, de onde não podia ter saído.

***


PONTO

Ponto
Ponto de interrogação
Ponto de exclamação
Um ponto de partida
Um ponto de chegada
A vida pode estar
Num ponto
Onde estou
Onde estamos
Num ponto do mundo
Ponto
Choro e exclamo
Fico e espero
A vida está em algum ponto
Meu ponto
Está no pouso dos meus olhos
Ou onde se aquieta meu coração
No ontem, hoje, ou amanhã
O ponto é o ponto
Da questão
Quisera poder chegar
Ao ponto para onde aponta
O meu ponto/coração
Fico no conto
Do ponto

***


SÉTIMO CANTO

A sabedoria bebe em muitas fontes.
Em busca do conhecimento da vida,
sentindo o hálito do seu criador,
o homem traça muitas linhas:
tem que perscrutar o Universo
no rastro da luz do Grande Arquiteto.

No caminho é possível aprender
que tem as linhas interligadas,
aos fios invisíveis de universos interiores;
primeiro, deve compreendê-los,
para alcançar outros campos.
E ser ungido pela verdade.

Não alcançará o além
se for preso ao egoísmo
e não haverá sabedoria,
se não entender o AMOR.

***


ADÁGIO

Meu caminho preciso percorrer
Inda que hesite em viver;
Sem os sentidos, na minha solidão
E na ânsia que me domina
Busco a luz que me fascina
Para abrigar meu coração.

Busco a posse mansa e apaziguadora
A escorrer pelos vasos, para ser duradoura,
Pondo-me em sintonia com os céus;
Que docemente desperte a sensibilidade
Do torpor triste que a alma invade
Para que ela voe no caminho de Deus.

Voe na leveza de doces arpejos
De inebriante música e desejos
Que fazem levitar o espírito no espaço;
Percorrendo infinitos caminhos dos astros
Deixando o amor e alegria como rastros
Da volúpia que cresce em cada compasso.

E ainda que de repente se quede a chorar
No envolvimento de uma magia celestial
Sentido, sem quê, recôndita saudade
Há-de se possuir de maior prazer e alegria,
Quando inebriada pela doce harmonia
Sentir o espírito que a dor se evade.

E mais se pedirá na volúpia envolvente;
Que cresçam os acordes, mais e mais ardentes
A despertar o passado, o futuro cogitando,
O arco-iris corta o céu da fantasia
E a alma em cores, na sinfonia,
Levita mais, na fluidez, sonhando.

Caindo, enfim, numa paz inebriante,
O espírito pode ter o corpo num instante
E gozar o sossego no fluxo da emoção.
Andou pelos caminhos dos céus;
Recebeu, em notas, os sinais de Deus
E quietou absorto numa doce oração.

Vida! Vida que desperta na pureza,
Em notas e acordes de uma divina leveza
Do melancólico ao êxtase mais sublime
E desperto de vez do angustiante topor
É tão doce poder de novo sentir o amor
Que com magia todo o sofrimento redime.

***


DESSANGRAR

Porque a hora é passada
Só a saudade
Pode chegar
Tão cheia de velares (mistérios)
E ficar...
Talvez reanime o coração
Nas lembranças
Adormecidas.

Porque a hora é passada
Só a saudade
Não vai sarar
A dor ficada
Quando você partiu
Deixando o imenso vazio
No peito dessangrado
Na dor de ficar.

***


DESPOJAR

Despojar-me dos vícios
Dos sonhos e decepções
Da alegria e da tristeza
Despojar-me das roupas
Deixar tudo que ganhei
Deixar tudo que trouxe
Virginar-me de vez
Ser outro
Outro ser
Talvez bicho
Que bicho homem
Foi uma dor

***


PERSCRUTAR

Respostas ansiadas
podem estar nas trevas perturbadoras
onde os caminhos são retificados.
No emergir do seio da terra,
a vida nova rutila
em trêmula luz
- primícias da sétima essência.

Avultam, além dos montes,
luzeiros tocando sete notas;
caminheiros dos sete dias
lapidando os sete metais,
no duplo universo do ser,
galgando sete degraus
para saberem a VERDADE.

O veneno, a cruz, o fogo e a bala
instrumentos de ignava gente,
consumiram luzeiros do mundo...
Mistérios ou desatinos dos homens
emergirão das páginas dobradas
mas na imersão dos sete círculos,
retificando, ressurge a VERDADE.

***


O QUE PROCURO

Dia após dia,
ano após ano,
continuo na escuridão
perdido,

debatendo nas reentrâncias
de caminhos infindáveis
em busca de uma réstia
de luz.

Sem ter respostas
de repente me dou conta:
não sei o que indagar.
O que procuro?

(Apreciação do Processo, Kafka)

***


NINGUÉM ME ESPERA?

Luzes na cidade à distância
Paz na noite que dorme
O viajor sonha com abraços
O acalento da espera. Quem espera?

Se o viajor não pousa
Nada muda, fica o que é.
E o brilho da noite
É fogo sem vida.

Nada visto
Não previsto
Não existiu
Ninguém viu.

Não foi um acontecimento
Não houve o momento
Passei como uma quimera:
Ali ninguém me espera.

***


II – COTIDIANO

Espia
Janela
Fusão
Fim de Espetáculo
Um momento
Desistir
Homem
Ensaio
Viver


ESPIA

Busquei a simplicidade
e o prazer
de deixar o corpo numa calçada,
em um lugar qualquer da avenida,
tal pescador montando espia,
solitário em um penedo,
para ter os olhos sempre fitos
no verde das águas do mar,
- esperança dos cardumes
(eram outros os peixes
que despertavam minhas emoções).
Pito, esquecido num canto da boca,
incensava a fantasia,
cuidando das pessoas.
Quão insólita era a cena:
ali, como me encontrava,
despertava maior espanto
e curiosidade nas pessoas
que minha intenção podia alcançar.
Ainda assim, nossas vidas se ataram
em minutos, no corte de uma passada,
Eu, fingindo olhar perdido,
acompanhando cada passante.
Díspares reações:
alguns com olhadas furtivas;
uns ao rasgo do cumprimento efusivo;
outros apenas um espichar de olhos
largado desinteresse.
Dava graça.
Uns passavam apressados:
o olhar longe, reto,
sem perceber as emoções que palpitavam
nas abas da avenida;
outros tinham o olhar periscópico,
buscavam tudo...
Não faltavam os semblantes abeatados
querendo o gozo de simpatias.
O tempo foi escorregando,
a cidade foi se aquietando,
tudo acompanhando o descer do sol
tão manso e cálido,
dando para sentir a brisa mansa da tarde
ciciando doces canções no ouvido.
Deixei minha espia
e fui sem rumo de querer
uma vida inaugurada,
na tepidez da noite vinda,
depois de libar bons momentos de minha cidade
nascidos e repetidos todos os dias,
tempos após tempos,
como o orto dos astros.
Desvinvem-nos, muitos, sem assuntar.
Pena é!

***


JANELA

Atirei o pensamento pela janela
numa tarde de chuva
sorvendo, como bebesse a vida,
cada quadrinho pintado.
O telhado vermelho, embebido,
reluzindo à luz tênue da tarde
de vinda casada com a chuva;
gotas soltas nas calhas
chocalhando e roncando de manso;
borbotões de espumas mansas
repetindo canções;
pequenas poças
na laje enferrujada
do alpendre esquecido;
um lado de poste,
como curso vertical,
da chuva batida;
os barrados de um muro
saias molhadas, úmidas,
desenhos formados;
lambendo a calçada,
a enxurrada
p r e g u i ç o s a,
caminho do rio, do mar, do céu;
gorjeios e pios:
pássaros trocando de galhos
em pulos, asas agitadas,
plumas ouriçadas,
pulos/festival/festivôo;
as árvores verdes, verdinhas, verdonas
de não lembrar o cinza da seca;
folhagem verde tremida,
sem agito, mansa no banhar
dos pingos-gotas-lágrimas
tibum agitando o espelho das poças.
Corredeira rua abaixo.
O telhado brilha,
na leveza da luz;
a chuva é prata,
as folhas esmeraldas;
a natureza agradecida,
meus olhos, a paz!

***


FUSÃO

Entrego-me à relva da manhã.
O frio perpassa o meu corpo,
a emoção excita os poros:
sinto a vida!

A terra nos seus milênios
repassa histórias astrais,
molhada com o choro da noite
que vigia o mundo dormido.

Um frágil raio de sol
canta na madrugada o dia
que desponta o amanhã
de sonhos e dores.

O mundo me absorve
na essência de sua natureza
e liberta minha alma
para experimentar o etéreo!

***


FIM DE ESPETÁCULO

Desce a cortina
As luzes da ribalta, o escuro cobre;
Solidão e tristeza no palco vazio;
No ar apenas o eco das palmas
Perdendo-se além das coxias.
Fim de espetáculo.
A repetição da vida, nada mais resta.
Fim do espetáculo. Mais um fim.
A vida é assim mesmo:
Tem a ocasião do brilho,
De alegria e de luzes do mundo,
Pode voar no jardim da Primavera
Mas um dia acaba, fecha a porta
E volta-se ao mundo
À fria realidade
À aspereza do sim ou do não.
Descobre-se o outono,
Quando caem as folhas
Que queriam ser flores.

***


UM MOMENTO

Uma luz fugaz
Instantaneidade do acaso
Um raio das frações mínimas
Cintilou no meu céu
E a noite de espera
Da saudade guardada
Festejou ... festejou
Como se fosse
O gozo da eternidade.

***


DESISTIR

Desisto!
Não posso ir além,
Desisto!
Caminhei,
Mas não posso ir.
Desisto!
Sonhar é preciso,
Morrer, a ameaça.
Desisto!
Quisera ir mais
O tempo veio logo
Parei!

***


HOMEM

O pé no barranco
a alma no rio...

O desejo de ficar
a vontade de ir
o querer um rancho
a ânsia dos barrancos

O pé no barranco
a alma no rio...

O palpitar de gente na casa
ou silêncio das praias dormentes
o alarido das ruas
ou canto da passarada

O pé no barranco
a alma no rio...

a brilhante luz dos postes
ou o brilho distante das estrelas
o festival de vozes das ruas
ou a canção do vento

O pé no barranco
a alma no rio...

conflito que não se resolve
o homem precisa de terra
mas não deixa o rio
lá “está sua alma”.

***


ENSAIO

Ao transpirar, a vida flui
em forma de poesia
que desnuda a alma
e abre-lhe o mundo.

A emoção que palpita
com singularidade
espelha todo o sentimento
contido no imo

Cada gesto do homem
é um poema que brota
porque reflete a vida
que é toda poesia

***


VIVER

(a um amigo aposentado que toca violão)

Um pouquinho me basta para viver
- não a miséria total -
do que preciso, basta.
Quero ter tempo de sobra,
sem a vigília do relógio,
para sair por aí, ao vento,
assentar-me no banco que quiser e quando quiser;
jogar dama debaixo de árvores ou numa sala qualquer;
estar sempre de bermudão, camiseta sem manga
e os dedos soltos numa precata.
Comer quando der fome e assim mesmo o trivial:
arroz, feijão e picadinho de carne com abóbora ou maxixe
- se apetecer um franguinho ou um peixe
fica melhor, mas sem precisão.
Tocar violão em horas outras
ao tempo que se saboreia uma pinguinha
- sem os exageros de ficar tonto.
Dormir cedo ou tarde, quando der vontade,
sem a obrigação do que fazer no outro dia.
Deixar a vida correr, assim como o rio,
de passo lento, sem pressa
com a certeza de chegar, mas bem demorado.
É o gozar da chegada aposentadoria
- pequena aposentadoria, mas que dá para viver
assim, sem muito querer para bem viver.
E o meu tempo terá de ser muito devagar
até que, num dia, eu chegue ao meu mar.
Sem pressa para isso.
É esperar ou não esperar, mas
Passar.

***


III – BUCÓLICOS

Deus:Sertão
O Barco
Água
Filete
Rio
Pássaros
Bela Veiga
Linfa Virginal
Canto dos Gerais
Caraibinha
Meu Rio São Francisco
O Rio Canta
Sertão, Abençoado Sertão


DEUS: SERTÃO

Sertão é fácil de entender:
Deixe o coração à vontade
Os olhos soltos na imensidão;
Não procure razão de nada-nadinha,
Apenas deixe o céu cobrir seu corpo
E todo o verde invadir sua alma.

Seus pés serão molhados-lavados
Pelas frescas águas das locas buritizais
E a cantiga da fonte tomará seus ouvidos
Com os gritos alados de liberdade
Uma sinfonia ecoará em seu novo-mundo
E, então, você estará perto-pertinho de Deus.

Sertão é fácil de entender,
Muito mais de gostar tanto-tanto,
Pois ele é a corrente-terra imemorial
Que veio do princípio selvagem-todo,
Perpassando e ficando na vida do homem
Com sinal visível de seu Criador: DEUS!

***


O BARCO

Fim de tarde,
O rio cochila.
Um barco preguiçoso
Levanta maretas leves
Levando barqueiro distraído
Modo de ir
Vontade de não chegar.
O barco
Nas águas
De noites corridas,
Noites dormidas,
Madrugadas
Chegadas.
O rio,
Histórias passadas,
Contadas.
O barco
Na preguiça da tarde,
O sol tombando,
O homem cansado,
Amado,
E sua vida
Corrida,
Escorrida
Passada,
O barco.

***


ÁGUA

Nas veias do corpo,
Escorre água;
Dos poros ela brota como sinal de vida:
O homem é todo água.

Pela água aspergido
O homem é apresentado a Deus;
Nasce para a vida espiritual,
Resplandece a sua alma.

A terra se faz verde
Na exuberância da natureza,
Quando molhada pela água:
A vida regurgita e explode.

Na forma de lágrimas
A água traz do coração
Todo sentimento que aninha,
Na tristeza ou na alegria.

Nos recônditos da terra,
Em lugares jamais visitados
Serenamente ela... esperança
É a fonte da vida.

Nos campos e nos vales,
No mar ou no céu,
Onde a vida viaja
Ela é a própria vida.

***


FILETE

Um filete...
É um lembrete
das terras altas
- o cerrado.
Saltou/brotou num oco
recôndito de raizama de buriti
e cantou chuá
balançando cabelos verdes/vermelhos
do lodo.
Sacudiu fiapos de raízes
fez úmido o dorso da cobra-grande
piaba/piaba e traíra deu vida
e desceu lambendo pedras
rolando cascalho.
fez trilho fundo na areia branca
os altos caminho da sequidão
foi fonte de vida à animaria
e esbarrou na primeira estação
fez córrego fornido.
Foi, do caminho passado,
quase lambendo o céu,
seu destino cumprido nos gerais
para alimentar o rio-grande.

***


Rio

O rio...
O que leva o rio
em sua viagem mansa?

Leva um pouco de vida
e desvida
leva um tanto de esperança
e desesperanças.

A vida plantada/esperada
que se escoou sem apuro
num tiro/bacamarte
senão ponta/peixeira.

A esperança no verde lançado
pequenas sementes/farturas
volátil, volátil, tão volátil
nos raios ardentes de todos sóis.

O rio dos cantos
e contos:
O rio das lendas
e mitos;

Eia! pescador sem peixe!
Êta lavadeira sem prosa.

O rio de tantas curvas
sem pressa no seu esticar
tão malemolente
como sua gente.

Belo.Tão belo, tão belo.
Colorido/encantado.
Rio/vida
ontem/hoje/amanhã
A VIDA.
Toda nossa VIDA!

***


PÁSSAROS

No céu quieto para dormir
apenas uma estrela pálida
e a metade de uma lua reinando para o ocaso
são notícias do sideral
pássaros querem aconchego do galho
e piam com estridência para dizer do agrado
levantando a sinfonia vespertina
com notícias dos mundos além:
azulões serenos
assanhados pardais
e de repente o céu se cobre de negro
pontos dispersos que se encorporam
um só corpo bailando
a cobrir o ninhário
e como uma onda viva giram-e-giram
e repente despencam numa leva
sibiliam as asinhas
e caem do céu, como gotas de chuva
uma atrás da outra
incrível precisão de vôo
dezenas, centenas
milhares de andorinhas
num modo de mágica
de quase não se perceber
tudo cessa, quieta
nada no céu...
e o ninhário cai no sono da noite.

***


BELA VEIGA
(Festa no cerrado)

Na bela veiga onde brota água no sertão,
Do altaneiro buriti de verdes palmas,
Balançando aos beijos eólicos,
Vibrando as paletas dos flabelos
Na sinfonia harmônica do cerrado
Que diviniza os vastos gerais,
O pensamento voga no deslumbramento,
Desliza pelos campos que se estendem além
E ascende à vasta abóbada
Onde alados libram no nitente céu.

É na aura do dia.

Pegureiros fascinados avultam das trilhas.
Deixam a tristeza em profundos báratros,
Que sua solidão emantou
E inebriados, tontos como falenas,
Pela música a flux, sonham com dríades,
Enlaçados no desejo do amor.
Cegos, imaginam que seguem Pã
No caminho de suntuoso serralho
Que guarda, numa torre, Susana,
A promessa da beleza virginal.

Visão do éden campal

Abre-se à luz a alfombra matizada do roxo
De flores mimosas no portal da vereda
Com as despedidas das rubras ciganinhas,
Mimo de corbelhas, linhas de sangue,
Nas lindeiras curvas do cerrado.
As aves dos ninhos deixados
Glorificam o espetáculo as asas ruflando.
A vida toma seus caminhos.
O sertão é um só canto e uma festa.
Explode a vida. Reviram todos viventes.

Naquela paz o Olimpo é terreno..

Mais tarde, tempo corrido na vastidão,
Do rubro céu caem, formosas cascatas,
Panos brancos, em tiras, nuvens esmaececidas,
Tendo de fundo, como leito,
Cerúleo manto do entardecer estuoso.
O imperador do dia busca o horizonte.
E elas dão o sinal da despedida
Do festival de dia radiante na bela veiga.
Eólo se recolhe, não mais a sinfonia.
Cessa o canto nos gerais.

O sertão volta, devagar, ao céu.

Penas coloridas tornam-se pardas,
Os ninhos são cobertos no ajeito do corpo,
Galhos se pendem com o peso das aves
Hospedeiras da noite.
Densa sombra emantando o sertão,
As imagens se igualam sem o brilho da luz.
Formas se fazem disformes. Sombra, só.
O urutau geme acompanhado do curiango
- insistência do pulsar secular do modo de ser
Que tenta resistir à travessia.

Os gerais caem no sono.

Estrelas pontilham o pano negro da noite,
Miríades de lanternas pirilampam, quietas;
Suave aura, sopro de anjos travessos,
Afaga a folhagem densa do tinguizeiro,
Que balança, em tremor sem desatino,
E sussura um canto, pouco de se ouvir.
E então, no vasto mundo, já se sabe:
A princesa Diva repete o parto dos séculos.
A flama de prata se ascende e cresce,
Reinaugura nos gerais a sua revida.

Suspira saudade o sertão. De quê?

O capão de angicos formosos e densos,
Eretos como as colunas do sonhado serralho,
Filtra entre a ramagem a tocha prateada.
A princesa Diva desponta .
A negra sombra esvanece.
Não muito depois, do fundo do capão,
Ou do esconso de impenetráveis boqueirões,
O silêncio é cortado pelo coro rouco e retumbante
De barbados e guaribas em jornada aérea,
Carregando fieiras de milhos nas costas.

Paixão! Emoção!

E, de repente, a doce calma - o viver a noite -
Só perturbada pelo uivo de um lobo desgarrado,
Sem matilha para dividir a solidão e o frio.
Dorme o cerrado. Dorme a vida na bela veiga.
Não é tanto, mas é misterioso, fascinante e intrigante.
Que desperta no pousante o querer saber:
O que pulsa nele, naquela quietude?
Depois, o amanhã...
Tudo se renovará.
Ou é a vida que continuará.
Moto perpétuo.

***


LINFA VIRGINAL
(espetáculo na Mata seca – Boa Vista)

Debaixo do baceiro
A linfa formosa escorre
Onde medra a samambaia
De folhas repicadas
Dançando ao sopro da brisa
Num dolente frufau
O rocio avança o dia
Escondido do sol
Como prataria
Escorrendo das folhas
Virginais
A fonte canta
Um murmúrio suave
Escorrendo pelos esconsos
Lavando as lisas pedras
Pulando degraus
Cachoeiras ensaiadas
E depois ganha o baixio

Vai cumprir a sua sina
O caminho do mar.
Das barrancas que alteiam
Os poros da terra se abrem
E gotículas espirram
Descendo como veias
Para o caminho que desliza
E a umidade se sente
No respirar e na pele
O caminho se faz pela serrapilheira
Folhas tombadas pelo ciclo
Da vida que vai e vem
Os estalidos soam música
No seio da mata verdejante
A cada passo
No céu libram aves coloridas
Inaugurando a vida
No reencontro com a natureza
Em seu estado virginal
Da alma uma oração brota
Alcança a abóbada celeste
E diz ao Criador em paz: amém

***


CANTOS DO GERAIS

Do rubro céu pendem
Panos brancos em tiras
Nuvens esmaecidas
Ora esvoaçantes cachoeiras
Ora vetustos serralhos
Envoltos de mistérios
Escorrendo do cenário
A tarde queda de manso
Deslustra-se o colorido
Cessa o canto nos gerais
Penas coloridas ficam pardas
Ninhos tomam-se de calor
E os galhos se pendem
É noite vinda, descida
As imagens mergulham
Na escuridão profunda
Formas se desmancham disformes
E, depois, apenas sombras.
Os gerais caem no sono
No meio do nada bem distante
Insistem na vida
O urutau e o curiango solitários
Gemem tristezas
Estrelas pontilham o pano negro
Miríades de lanternas
Vagalumes, bando de lucíolas
Nitentes sinal de vida
Distantes como pergureiros
Dos astros que se libram
Leve sopro de Eólo
Deixa as cavernas milenares
balança as folhas do tingui
No prenúncio da ascensão lunar
Longe, no boqueirão
Nas frondes dos angicos
Rasga o silêncio da noite
O lamento profundo do barbado
Agregando o seu bando
Para a travessia da noite.

Paixão! Emoção!

Mais nada pode acontecer
E viver a noite
Senão o uivo distante
De um lobo desgarrado
Dorme o mundo
Com seus tesouros
E na vida silente, dormente
O cerrado ainda é belo e misterioso
Porque guarda uma dúvida
O que pulsa nele agora.

***


CARAIBINHA

quem há de imaginar
que na aspereza do sertão
no universo marronzado
a singeleza dourada
pinta um nova vida
a caraibinha se enflora
vai cobrindo galhos secos
de mimosas flores amarelas
se misturando nas copas
de tortas e secas árvores
brilha intenso o cerrado
o campeiro é atraído pela cor
e o perfume que distingue
desfila em tapete amarelo
seguro da liberdade
e respeito do homem
e saboreia cachos amarelos
sem sofreguidão, tendo pois,
a vida toda sem atropelo
e liso corre de pé em pé
dono do cerrado e da vida
na graça da caraibinha.

***


MEU RIO SÃO FRANCISCO

Gaivotas.
Ariri solitário busca o ninho
O rio se compõe
E se recompõe
Séculos de passagem.
O homem solitário.

O bando de jaburu
De passagem raleada
Mergulhões, garças
Asas que cortam o rio
Século de passagem
E o homem solitário

Rio, meu rio
Caminho entre matas
Um tempo
Rio, meu rio
Leito coberto de areia
Todo o tempo.

Rio, meu rio
Penso você
Daqui deste topo
Pois você é minha vida
Estou em você
Com minha alma

Eis aí meus sonhos
O despejo de saudades
Com os seixos rolados
E água cristalina da vereda
com o canto das emas
A canção do cerrado.

Rio, meu rio,
Que lhe faz o homem
Se a ele só traz o bem?
Rio, meu rio,
Não deixe meu porto
Com a sua história.

Rio, meu rio,
Sou que nem o ariri.
Cadê meu ninho?
Rio, meu rio,
Não deixe meu porto
Com a sua história.

***


O RIO CANTA

É à noite que o rio canta, observe:
Quando a brisa beija as suas águas,
O frufulhar das ramagens barranqueiras
Desperta a vida que desliza.

***


SERTÃO, ABENÇOADO SERTÃO

Tanto maior sofrimento,
Tanto maior riqueza na terra.
Seco, por ser de tanto tempo,
Chuva é dádiva do céu,
Mas o cadinho que chega
Transforma renasce a vida.

Meio de ano, metade de ano,
A flor branca do pequi se anuncia
Contrariando o marrom
De todo o cerrado sem fronteiras.

Um passo dado
No mês de agosto da canícula,
Quando treme a terra,
As florzinhas de anjo
Forram os galhos dos umbuzeiros.

Nas terras molhadas,
Onde corre água o ano inteiro,
Chegado o mês dezembro
Abrem-se os cachos dos buritis
E estala o vermelho no verde.

Pequi, como ouro do Brasil
Umbu, como verde do Brasil
Buriti, o sangue do sertão
Frutos/frutas da vida,.
Riqueza da aridez.
No seco triste palpita a vida.

O buriti, a palmeira vida
Dá de tudo para o sertanejo,
Da casa à comida,
A rede do descanso da noite,
A rede do descanso eterno.

Sertão, abençoado sertão.
Sertão não é o fim ou a dor.
Sertão é o infinito
Bem juntinho de Deus.

***

IV – SOCIAL

Pietá
Andarilho
Manoel
Pescador
A Fome
Solidão
Lamentação
Digitalizado
Quero ver pobre morrer de fome
Esse Mundo I
Esse Mundo II
Esse Mundo III
Amor e Dor

***

PIETÁ

Da face desfigurada,
de um rosto vincado de dor,
tenso, pesado, sombrio,
um olhar sem brilho,
tênue luz, um risco só
com pretensão de ir além,
mas que cai ao chão
onde a dor se encerra
na vergonha do gesto
que ousa levá-lo à frente.
O corpo alquebrado,
uma árvore que não subiu,
uma grama que não vicejou,
o fruto da vida que não vingou,
esquálida figura
atormentada pela fome
querendo gritar e gritar
para não sucumbir à fraqueza,
pois segura-lhe a voz pequena
o resto de dignidade.
De vê-lo, percebe-se:
é a fome que geme e grita,
é a dor que percorre
cortando como afiados punhais
todas as suas entranhas.
É preciso comer-comer,
é preciso viver-viver.
Apenas uma esperança
como minguada fonte
em tempo de seca.
Céus, uma gota d´água!
Céus, uma luz, que pequena,
na sua estrada, anseia turbado.
Geme, no olhar triste, caído.
Percebe-se sua dor
Entra-se na tristeza de sua alma:
Precisa e quer comer.
Não tem comida, nada
E corta-lhe o resto do eu
o ter que pedir.

***


ANDARILHO

Uma estrada
Um ponto de partida
Não fazem sentido
Para o andarilho.

O que é uma estrada?
O que é uma partida
Ou uma chegada?
São pontos imaginários

Não existe porto
Todo ponto é infinito
Como é vida de ida,
Do andarilho.

Não carece do ponto de pouso
Pára quando pedem as pernas,
Sem determinação própria
A vontade de ficar.

Sentiu fome? Pede.
Se receber, come;
Não tendo a graça, segue o caminho
Pois andar é mais importante

Sentiu sede? Pede.
Se saciarem seus lábios
Pode dizer algumas palavras;
Não? Segue o caminhar

Comida, água, nada é importante
Só caminhar.

Não tem pouso, nem é preciso.
Seu teto, é a abóbada celeste
Sempre forrada de estrelas
Ou clareada pela lua, de quando.

Se tem noite de negrume no céu
Riscado de fogo,
Agradece encontrar uma tapera
Esquecida nas trilhas do mundo.

Chuva não lhe leva incômodo, de vero,
Pois suas roupas molham e secam no corpo
Sem fazer qualquer diferença.
Só pensa e precisa, caminhar.

Não precisa sonhar.
Se sonha, esquece
Pois não cria fantasias
Seu tempo é para caminhar.

Andar sem rumo, ir e ir
É só o que lhe basta e satisfaz.
Vai de pensamento vazio
No muito resmungando baixo.

Roupas em fiapos, puros andrajos,
Só precisa da pele
Da barba espessa e suja
Do cabelo caindo e enrolado como carapaça.

Caminhar, ir e vir,
Sempre tudo mais preciso
Que comer, beber, vestir e dormir
E não é preciso chegar, nunca.

O andarilho
Não tem porto
Não tem chegada
É do infinito.

***


PESCADOR

Boca da noite, lusco-fusco
a natureza fecha os olhos
anseio do ninho
o amor, o carinho e menino
obrigação do ser.
É quando acode no homem o pescador
acende-se a esperança
A canoa velha com a sua rota vela
mais estandarte que valia
nas horas mortas
corta as sonolentas águas do Chico
rio acima - rio abaixo
do modo de ser do destino
tarrafa remendada
fiadas segurando rodas de anzóis
latas de enroladas minhocas
bolinhos de mandioca
do gosto de piau
toda tralha é esperança só
uma noite, mais uma vida
debaixo das estrelas
corpo arriado na areia morna da coroa
assuntando distraído o anúncio do cardume
se for afortunado
então mulher e filhos ganharão sorrisos
de mais de um dia de barriga cheia.
A cada noite a vida se repete e volta
e a alegria só se anuncia
se no romper do sol sobre o Chico
tocar triste/alegre o búzio.

***


A FOME

Quem sofre mais:
O que morre
Ou o que assiste o morrer?

O que sente o útero
Depois de nove meses de espera
Ver a flor morrer?

Como fica o peito
Quando seca o leite
E sente a morte chegar?

Como ficam os lábios
Acostumados à carícia
O rosto para beijar?

Como ficam os olhos
Iluminados pela vida que veio
Diante da morte que a levou?

Como fica o coração
Que agüentou tanto amor
Sem o pedaço que amamentou?

Morrer! Todos têm o seu tempo
Mas por que morrer um rebento
Que sequer flor se fez?

Todos têm o seu tempo
Mas por que morrer
Quem sequer pôde viver?

Os olhos da fome
O oco terrível da fome
O choro da fome!

Meu Deus, é um destino?
Jesus, e o menino?
Humanidade, onde o coração?

Morrer de fome.
Vergonha.

***


SOLIDÃO

Suspiro de dor e de fome
é o quanto custa viver
se não tem horizonte
sem tipo de herança qualquer
senão de pobreza
tão esquecida.
lambida de sorte

não há adjutório
no despropósito de ser
um só nos fins de gerais
dia/noite; noite/dia.
Diferença faz?

***


LAMENTAÇÃO

Ô irmão,
Vê lá se o seu choro é justo.
Passe os olhos pelaí... compare
Tem cara que não tem nem precata,
Que não bebe pinga pura
Não sabe da cerveja geladinha
De menos, ainda o uísque;
Que não toma banho
Nem sabe o cheiro do sabonete,
Desodorante, perfume...
Gente que não conhece cinema
Não tem radinho à pilha
Não sabe a esperança da loteca
Nome de jogadores
Não tem uma paixão por um time
Não veste roupa limpinha, passadinha
Não passa pente no cabelo
Não escova os dentes
Porque já não os tem
Não bebe água pura
Nem de bica
As conchas de mão calosas
sabem do barro das águas do rio
Ou dos tanques verdes
Dos alimentos não sabe o valor
Sabe do mel de abelha tirada no pau
Para mexer na farinha de pau
Sabe da manga, do pequi, da cabeça-de-nego
Para forrar o estômago na falta do mantimento
Automóvel?
Um sonho inatingível e inimaginável.
É gozado:
Tanta coisa que a gente tem
E deixa de aproveitar para chorar
O que não tem.
E ele que não tem
Não reclama.
Seria pobre até de querer?
No fim ele fica feliz
Com tão pouco, mas tão pouco mesmo
Que a gente nem mesmo percebe
Ao praticar o gesto de caridade
Dando-lhe uma moeda
Dez, cinqüenta....
Ele ri e faz cara agradecida
O que faríamos com uma nota de cem
Por mês?

***


SER DIGITALIZADO

Sou um ser eletrônico.
Da era eletrônica
Um autômato levado nos atos
De olhar e ouvir
Atento a um painel colorido
Sonoro em repetidos apitos
Mostrando letras miúdas e ligeiras
Minha senha surge brilhando – 33
E me remete para o Box 4
É preciso correr, atropelando
O tempo é importante
Estou na era eletrônica. Sou parte
O que não aprendeu ler é cego
Hoje analfabeto é o não digitalizado
A inclusão é o momento
Sou iniciado na inclusão digital
Tateio as primeiras letras
Inseguro num belo teclado
E os olhos se iluminam numa tela
Posso tocar teclas num caixa
E ver os números saltarem expertos
Saindo depois numa tira de papel
Percebo que sou um digitalizado
Já fui navegante do Rio São Francisco
Singrei as águas do Conceição
Deslizei de barco e vapor
O rio secou
O vapor restou ancorado
Hoje sou navegador digital
Sem a maestria e o prazer do remo
Levando a canoa acima dos esconsos
Como um rei das águas
Sou navegador aprendiz
Um rude digitalizado
Não entendo as trilhas que avanço
Uma coisa célere
Estou aqui, na frente da tela
Estou distante, tão longe
Onde meus olhos não alcançam
Onde nunca fui.
Como um relâmpago
O mundo se abre aos meus olhos
Num breve toque,
E porque não sei nada
Um rude digitalizado
Quase sempre estou encalhado.

Ainda assim sou um ser digitalizado.

***


ESSE MUNDO - I

Minha filha quis ser pássaro;
Quis ensaiar seu vôo de Ícaro
ou apenas ser uma pipa colorida,
assim, tão cheia de vida!
Voar, rumo à liberdade...
Minha filha quis sentir a multidão:
rir, conversar, abanar as mãos,
abraçar, ser mais brasileira...
Minha filha quis ir além de si.
Pequena, sentir a vida plena.

(Sonhamos, todos, o possível.
Foi um sonho, ou é um sonho?)

Minha filhinha, ruflou as acanhadas asas
ensaiou um belo sorriso,
expandiu a felicidade incontida
e...
nas escadas de um metrô
podaram suas asinhas;

antes de ter o azul do céu,
derramou inocente sangue no chão
no negro chão do meu País.
Apagou-se a luz, a vida em flor;
o diamante perdeu a jaça.
Uma bala a ceifou no penoso segundo.
Uma vida interrompida,
Um amor encarcerado,
Uma dor gemida no peito.
Minha filha murchou,
Com ela o seu sonho de liberdade
e parte de mim.
Esse mundo é o meu o meu País.

***

ESSE MUNDO II

Meu filho definha de fome:
o rosto esquálido,
de seco, comprido;
é factível contar seus ossos.
Uma macha negra de pó
é sua sobre-pele incorporada,
camadas de sonhos ofuscados.
Meu filho bebe cabeça-de-prego
na água escorrida do tambor,
parada nos buracos,
bebida do cachorro, do gato
e até do pintinho zambeta.
(cria que sobrou da pedrês,
último almoço gostoso
de tantos tempos passados).
Meu filho, tão magrinho...
Fica até gozado quando caminha:
as perninhas, uns cambitos,
carregando pelos caminhos tortos,
trilhas de areia quente,
uma enorme barriga,
não é de ser de gordura adquirida,
mas dos ancilóstomos tantos.
Tadinho do meu filho.
Ele pode morrer amanhã
sem conhecer uma escola,
sem conhecer gente,
sem conhecer outra vida,
(que vida?)
senão a da dor, da fome,
da miséria, da solidão.
Tão santinho e puro
que, para seu bem,
não sabe dessas coisas e
pode se encantar feliz.
Eu acho que melhor mesmo seria isso:
meu filhinho se encantar
para não ter o mesmo sofrimento meu,
esse desassossego e abandono.
Não sou gente.
Minha santa também não é.
Somos bichos na boca da fornalha,
servindo patrão que nem vemos,
vivendo de miséria, nos grilhões,
sem poder ir, sair, sonhar...
Morre, filhinho,
que sua vida com seus amiguinhos,
os anjinhos do céu,
há de ser muito mais que essa daqui.
Lá não terá o rosto tapado de pó,
a dor cravada nos olhos fundos,
a barriga inchada,
a dor no ventre sempre repetida
- de vermes tantos ou fome trespassada.
Lá você será dos anjos
e poderá, na sua inocência,
vivida até hoje em tanta pobreza,
até mesmo achegar-se de Jesus
(Ele é dos meninos. Disse).
Morre, filhinho.
Na minha dor de saudade
terei o consolo de saber que sua vida
não será como a minha, nessa terra,
onde ser pobre é estar preso,
sempre preso a grilhões que não se abrem
Nunca. Nunca. Nunca.
Filhinho, que bom:
você vai poder falar com Jesus
e diga para Ele:
seu pai não renega a vida, não;
ele só não entende
porque os homens ainda são tão duros
e insensíveis com os pobres,
tantos anos depois dele ter morrido
para ensinar o amor – por amar.
Fecha os inocentes e sofridos olhos, filho,
Sua missão já foi passada.
Esse é o seu mundo, o seu País.
(Criança na carvoaria)

***


ESSE MUNDO III

Meu canto é um gemido,
meu sorriso é de um fugaz minuto
e minha vida um juntar de dor.
Meus olhos queimam como fogo,
e só uma lágrima corre no meu rosto
para refrigerar tanta mágoa, tanto sofrimento.
Minhas mãos lembram o couro curtido,
tal como uma canga,
reentrâncias de calos e cortes;
minhas pernas são veias arrebentadas,
cobertas de caroços
como vaca estrelada de verrugas.
Não tenho vida de esperar
nem outra passada para contar.
De noite deixo meu casebre,
de noite volto para meu casebre;
A luz do sol é no eito,
meio à palha, cinza, espinho e fogo,
ração e água quente, de que vivo
ou de que desvivo.
Minha filha, filhinha,
você que me espera sozinha no casebre,
que enfrenta o dia sem vozes;
na solidão das almas;
que não sabe as amigas e alegrias,
que não tem o sonho das letras,
que não canta
porque não ouve uma canção...
Filhinha, tudo o que faço,
sofrendo longe do seu abraço
- gozado e irônico dizer -
é por você.
Será que tem recompensa tanta dor,
e tanto abandono,
se não sinto, sempre, o seu ser no meu?
Se saio, você dorme;
Se chego, você dorme;
e se alimenta do requentado que lhe deixo.
É vida?
E pensar, filhinha, ser esse seu destino traçado,
como o meu, pois somos pobres,
nascemos no eito...
Você foi gerada no eito,
foi expelida no eito.
Seu destino está traçado.
Melhor, filhinha,
seria que você, depressa,
fosse embora...
Minhas lágrimas seriam dobradas,
de saudade e não de dor,
mas teria uma alegria certa:
você estaria no colo de Maria,
e no azul mais lindo e puro;
teria luzes em seus olhinhos
e não a cinza de todos os dias.
O meu céu negro.
A minha dor terrível.
A minha desesperança.
Esse é o meu País.
(MULHER CANAVIEIRA)

***


AMOR E DOR

Eu vi, em abençoado momento,
Uma santa deitando os olhos
Em pulcro berço em seus braços feito
Onde aconchegado dormia o filhinho
Resplandecente na luz do amor
O brilho dos seus olhos naquele gesto
Revelavam o mistério da vida
O que dela veio como dádiva
Seus lábios docemente balbuciaram
Dorme, dorme, meu querido bem
E beijava a perfumada face
Saudando a vida com todo amor.
NATAL.

Eu vi, numa sala fria e triste,
Um esquife entre flores e velas
Sensação de abandono com tanta gente
Os olhares não se atreviam ir longe
Caíam despedaçados no chão
Eis que entra na triste sala
Uma santa na figura de mãe
Carregando todas as dores do mundo
A pobre face molhada de lágrimas
Inclina a cabeça sobre o esquife
Descobre o rosto do filho e o beija
E solta um profundo gemido:
“Meu coração está doendo muito!”
PIETÁ!

***

V - EXERCÍCIOS

Poesia-de-sete
Amargor
Fotografia
Furar Abelha
A Flor e a Vida
Poemas I
Poemas II
Poemas III
Poemas IV
Poemas V





POESIA-DE-SETE
Em dois tempos


Quanto seja por dizer
Se te falo por verdade
Não é nada mais que um torpor
Que de repente me invade
E me traz uma ponta de dor
De um pouco vivido amor
Ressuscitando saudade

II
A criança dorme com ternura
Num sonho angelical
E se por enquanto
Deixa esse mundo triste e real
Para inebriar-se no perfume dos céus
Na tepidez do amor de Deus
Está livre de todo o mal.


***


AMARGOR

O gosto amaro da despedida
Fez sucumbir a sensação de regalo da acolhida.
É assim a vida:
Um dia tem-se a alegria, noutro a alma ferida.

***


FOTOGRAFIA

a visão e a interpretação
o ver e o sentir
o objeto (coisa) e sua poesia
(encanto)
tirar da coisa a essência
o encanto, a luz, a vida

***


FURAR ABELHA

Poema para Joaquim Meira declamar,
Quando aluno da Escola Caio Martins


A luz do sol já levantou da terra
E de pouco vem chegando a noite
Dormindo na paz que se desmancha
É quando se deve sair pelos caminhos
Quebrar nos trilhos o silêncio
De ordem do espírito para o corpo

É necessário ao estômago,
Que desperta a vontade do ver.
Nesta noite eu vou furar abelha
Levo a cabaça, o machado e a fome.
Debaixo do pau terra paro no estudo
E risco a linha do machado/vida

Toma e toma que cavaco tiro
Tiro daqui, tiro dali
E vejo o favo que desfavo na fome
Toma e tira o favo que desfavo na fome
E de repente as picadas
Calombos por toda parte, língua dormente

Furar abelha pelo mel da fome
E a abelha ferra pela vingança da fome
É a vida aqui na terra
Uns agridem, outros se defendem
Uns têm alimentos, outros estão no raso
É sempre uma luta pelo favo que desfavo


***


A FLOR E A VIDA

Abre-se uma flor
E a vida se comemora
As abelhas bailam
E gozam do néctar
Colibris vestido na delicadeza
Adejam esticando o bico
Para sugar o doce alimento
E quando formam o jardim
A orla se atavia de cores
A vida explode
E o coração amaina
Tomado de emoção.

Quando uma flor se abre
A vida se comemora.

***


POEMA I

Estar em teus olhos
é viajar pela primavera
nas diáfanas luzes
das manhãs de chuva
quando abre o sol

é gozar o canto da paz
de um coro madrigal
no rebrotar da vida
em sonhos de fantasia
doces e irreais

o verbo é mudo
os gestos são recolhidos
basta estar em teus olhos
sem nada pedir
para ter o gozo da vida


***


POEMA II

Se toco o teu corpo
sinto a alma sair pelas mãos
um tremor dispara o coração
e me solto como andorinha
nas tardes de verão

Se toco o teu corpo
vejo meus sonhos no céu azul
liberto sonhos alíferos
e como Ícaro alço vôos
para não voltar ao chão

Se toco o teu corpo,
não ouso, além do gesto de ternura,
imaginar-me num suave pouso
no teu jardim de perfume
sorvendo a vida.

***


POEMA III

Os teus cabelos finos e dourados,
balançando, balançando ao vento,
espigas dos trigais,
exalam o perfume da primavera.

Uma luz brilha nas trilhas,
onde alcançam meus olhos,
no balançar-balançar das ramagens
roçadas por teu corpo.

Afoito sonho me assalta o peito,
como sedento à visão de uma miragem:
quanto mais perto quero estar de ti,
mais tu te afastas de mim.

***


POEMA IV

Disse tão pouco
como sempre teve a dizer
por sua vida
só de indagações

Disse ainda sonhando
com o futuro
que nem perto
dele chegou

Disse melancólico
diante de tanta busca
o seu epitáfio:
desvivi.

***


POEMA V

Que foi o que disse,
no correr das águas
e passar da brisa,
quando o dia dormia?

Que foi o que disse,
no momento de emoção,
quando chegou a saudade
apertando-lhe o coração?

Que foi o que disse,
quando se sentiu só
e viu correndo longe
os sonhos guardados?

***


VI - HISTÓRIA

Rua Direita
São Francisco em São Francisco
São Francisco – o Santo do Rio
Tributo ao Rio São Francisco
O rio se vai
Carinhanha
Contos
Lendas
Santo Antoninho
Tipos

***


RUA DIREITA

Rua Direita
Linha direta da igreja
Para o infinito
Só o começo
Não tem fim
Ela carrega saudades

Rua Direita
De areia grossa
Cercada de grama
Verdinha de burro
Lambendo a calçada
Lisa do tempo

Rua Direita
Caminho da história
Passo de São Francisco
No correr dos tempos
Como corre o rio
Ficando suas barrancas

Rua Direita
Da praça o portal
A vetusta cadeia
E descendo direta
Vai juntando gente
Vai fazendo história

Emílio e dona França
A história passada
No principiar da rua
Zeca Correio
Caminheiro das notícias
Dona Izídia e o tempo.

Carlindo o soldado
Quincas “mon amour”
Bolivar e dona Nem
Seu Santo e Quidinha
Inácio da prefeitura
Carmélia a costureira

Maria Pretinha
Rainha da cozinha
João Fraquinho
Dona Adelina
Gregório e dona Dina
E sua Maria

Rua Direita
Do violão afamado
Do João Canaro
De muito choro
E samba
Animando a cidade.

Professora Sebastiana
Chico Preto e seu bazar
Pequeno mais sortido
Jonas e suas cinco meninas
Tão formosas flores
E dois meninos

Gino pescador-barbeiro
Dalu e Mariinha do Jardim
Nena de mãe-Casilda
Seu Severo sem ser bravo
João Cumim
João Pomba Triste

Rua Direita
De tanta gente
Maria de Tôta
Chiquinho Bigode
Do pistão reluzente
E sua dona Ana

Rua Direita
Rua Direta
De João Verdengo e Carmelita
Do prefeito
Pedro Mameluque
E a dama Glorinha

Rua Direita
Dos folguedos coloridos
Fogueiras de São João
Caminho das pastorinhas
Trilha dos foliões
Brincadeiras de rodas

Rua Direita
Alma barranqueira
Em cada gesto guardado
História de uma gente
Uma linha comprida
De gente feita, família

Rua Direita
Direta da igreja
Mergulho na Lagoinha
Despontando no Quebra
E a festa incendeia
A alma do pescador

Rua Direita
O casario esmaecido
Nas mesmas fachadas
Invadidas pelo tempo
Escondendo sua história
Lustrando sua vida

Rua Direita
Linha direta da igreja
Nas asas do pensamento
Voa com as saudades
E pousa sua história
Na linha do infinito.

Rua Direita
Rua Direta
Rua da minha saudade
Dos meus sonhos
Da minha vida
Do meu coração.

***


SÃO FRANCISCO – SÃO FRANCISCO

Uma palavra pode definir
O encontro com o rio São Francisco
Em São Francisco:
Deslumbramento!
Deslumbramento ao deitar os olhos
No espelho de águas plácidas
Viajando as notícias das chapadas,
Buscando o seu destino.
Deslumbramento!
Os (in)finitos pontais
De onde os olhos sonhando vão mais além
Na trilha que brilha tênue;
Num apontando o rio,
Noutro a água reluzente
Que se espicha levando o rio,
O rio que quer ficar.
Deslumbramento!
Os olhos na linha do horizonte,
Onde se desdobram os gerais
Nas terras sem fim,
Na magia do pôr-do-sol
E poder sentir o pincel do Criador
Distribuindo cores
Escorridas do arco-íris celeste.
São Francisco abençoou o São Francisco
O criador deu mais a São Francisco
- um povo generoso e feliz
Sereno como seu rio,
Que canta tanto o seu rio
E faz história com ele,
História de amor.
Por isso é gratificante
Mergulhar e sentir o São Francisco
Em São Francisco.

***


SÃO FRANCISCO – O SANTO E O RIO

“Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz!”
O santinho de Assis, o mais humilde,
De roupas rotas e pés no chão, o tão simples,
Era o que estava mais próximo de Deus
Amava as plantas, as aves e o irmão Sol.
Amava tanto os homens e as águas...

Um dia, sereno, como sempre foi,
Ele elevou o humilde coração ao céu
Para se colocar a serviço do Criador...
E a voz mansa e doce balbuciou a prece:
“Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz”
E entoou o mais lindo hino de amor

Ele quis ser mais doação, cantando:
Que eu procure mais amar que ser amado
Amado, amado.... que procure amar, amar.

São Francisco, o Rio. São Francisco do Brasil.
Deus reservou a visão do estuário majestoso
Aos olhos dos homens no ato inaugural
A visão primeira seria no dia do santinho de Assis.
E assim ele chegou à terra de Santa Cruz
Navegando o nome sagrado nas águas que amava.

E passou a abençoar amando e amando
O rio que só tem nos amado e mais amado.
São Francisco de Assis, a expressão do amor
São Francisco do Brasil, a dádiva.
Cada um tem seu jeito de se doar e amar
Cada um, em Deus, a presença no homem.

E nós, irmãos. E nós, o que fazemos
Em memória da humildade do santinho
E pela dádiva do Rio São Francisco?
Será que aprendemos e podemos repetir
O hino do mais amar que ser amado?
Será que guardamos humildade no coração?

Olhando o Rio, no seu padecer, parece que não
Nem caridade, nem cuidados com o nosso Rio
E mais distante ficamos da lição do santinho.
São Francisco de Assis, a voz do amor
São Francisco do Brasil, o nosso amor
E nós de costas viradas para tanto amor.

Vivas e revivas para os dois
Que nos dão vida em dois sentidos

***


TRIBUTO AO RIO SÃO FRANCISCO

Meu Rio São Francisco,
Rio do santinho irmão das águas,
Do sol, da lua, das flores e dos humildes.
Santinho dos barranqueiros
Bem que me lembro de suas águas claras
Trazendo saudades da Zagaia
Lá dos píncaros da Canastra
E lembranças do cerrado
Das águas brotadas nas locas de buritis
Nas veredas belas como o Éden
Com jeito do dedo de Deus passado.

Lembro-me de suas águas claras e mansas
Correndo na sombra de matas fechadas
A lamber com doçura o capim braço-duro
Que forrava e segurava o barranco
E ficava a assuntar as galhas da ingazeira
Agitadas com suavidade cantando na manhã.
Levantado o irmão Sol
Elas refletiam as flores vermelhas do pajeú.
Eu bem me lembro de suas águas claras
Apinhadas de ariscas piabinhas
Beliscadeiras dos pés das lavadeiras
Inspirando o grande poeta Rubinger
Que nas pedras lisas batiam roupa e contavam causos.
E a espuma branca beijando as praias
Banhando os pés de melancia da coroa
De onde saía o doce fruto desejo do mestre Saul.

Meu rio São Francisco
Berço da Iara bela de olhos e cabelos verdes
Reino do surubim de cabelo guardião do palácio encantado
Rio que esconde nos esconsos profundos
O caboclo d´água, compadre dos pescadores.
Lembro-me do rio das águas fartas e profundas
Por onde deslizavam as barcaças
Levando fincada na proa o mistério
A garantia da boa viagem – a carranca.
Rio caminho dos belos vapores
Apitando saudades em cada porto.
Rio São Francisco caminho da nossa vida
Por ele nasceu nossa civilização.
Nele cresceu e vive nossa civilização
Rio São Francisco onde deita nossa alma
Assim como inspirado cantou o mestre Saul.
Lendas, mitos, histórias, vida vivida
O nosso São Francisco. A nossa vida

Hoje, querido rio,
O que fizeram com seu corpo?
O que fizeram com suas águas?
Você agoniza, a gente sente.
As águas claras, mansas e doces
Foram cobertas de espesso verde.
Não que seja feio o verde,
Mas não este verde que cobre seu leito:
Grosso como uma gosma
Fétido como carniça intolerável.
Nauseabundo cheiro da morte
Que inunda os lares barranqueiros.
Morte aos peixes! Decretaram.
E os peixes morreram aos milhares
Surubins erados de tamanho descomunal
Só vistos nas outrora em grandes pescarias.
Foram retirados de suas cavernas para morrer.
Dourados, sem brilho, boiando na água negra,
Curimatã e até mesmo o pacomã.
A morte corre em suas águas
Silenciosa e feia, onde tudo era vida e belo.
Noraldino Lima, Manoel Ambrósio, Elísio Horbilon
De onde estejam, olhando rio, acudam-nos.
Como cantar o Rio e o barranqueiro?
Qual história nos resta?
Saul Martins, Domingos Diniz, Ivo das Chagas,
Mestre Minervino, estamos emudecidos.
Não se canta o lundu nem dança o quatro
O Rio Abaixo desafinou.
A morte nos surpreende.
São Francisco, querido São Francisco
Rio do Santinho das águas.
O que podemos lhe dar no seu aniversário?
- Ironia, rio, falar em aniversário
Se o descobrindo o homem escreveu seu epitáfio.
O que podemos passar às futuras gerações?
E tem mais ironia, Rio. E que ironia:
E ainda assim, com tanto desprezo,
Querem levar a lama negra, o lodo verde
A fétida água que resta, para o Nordeste.
Aos pobres irmãos nordestinos esta herança.
Hoje, o barranqueiro não pode pôr a mão em suas águas.
Não pode, ao modo antigo, tomar água no cucuruco do chapéu
Ou na concha das mãos
Se o fizer, é advertido: pode adoecer ou morrer.
Diz o governo que sua água natural é imprópria para consumir
Até para os bichos, Rio. Até para eles.
Meu rio, imagina só:
O barranqueiro só pode tomar sua água se tratada.
Então você está mesmo doente e só dão o atestado.
Nós lamentamos e choramos.
Onde temos nossa alma
Vamos consumir o nosso corpo.
Vamos buscar longe Castro Alves para evocar de novo:
Deus, ó Deus, onde estais que não nos acode e salva
Nós morremos. Nosso rio morre
E os homens senhores de hoje vergateam nossa alma
Mudos se fazem. Nada vêem.
Rio São Francisco, perdão
E uma lágrima rola, vinda da alma,
Você não merece tanto desprezo
Porque tanto nos dá – a vida.
04.10.2007

***

O RIO SE VAI

O Rio São Francisco morre
A espuma borbulhante
Que brota do leito verde
É o sangue da água ferida
Sinal de morte do rio
O cheiro asqueroso da morte
Flui malévolo tomando a brisa
Que perfuma as ruas da cidade
Como a doçura da primavera da vida
E lá no ninho aconchegado
O homem do rio estremece
As entranhas se contraem repugnando
E o refluxo de fel enche-lhe a boca
Ardem os olhos querendo a lágrima
Da saudade do rio que já passou
São águas idas tão puras e frescas
Conto e reconto da vida barranqueira
Os viventes outros do secular rio
Peregrinam exilados sem rumo
Deixam o ninho onde tinham a vida
Para desviverem na saudade que vem
O grosso lodo avoluma e escorrega
Sem despertar alegrias, sonhos e fantasias
O rio passou antes e não voltou
Homens, o que fizeram com o sagrado rio?

15.12.07 – os esgotos das cidades da região metropolitana de Belo Horizonte e das indústrias de cidades do Alto São Francisco, atirados no rio, deu início ao processo de sua extinção por envenenamento.


***


CARINHANHA

Fragmentos de sonhos/criança
Um menino feliz
como travesso romãozinho
varou matas escuras dos jacus
e campinas de seriemas
Quietou o corpo cheio de prazer
nas cristalinas águas do Carinhanha
navegação ousada num cocho
batizado de Jaú...
indo esbarrar nas barrancas baianas
ancorando nas belas coroas;
os altos das grimpas das gameleiras
aventura na água turva das cheias;
o desespero dos abraços
das galharias dos ingás
mil tentáculos querendo ganhar o menino.
Menino/pescador deslumbrado
Que só distingui a piranha-beba do pacu
Quando ela quase cepou o seu dedo
A civilização/Carinhanha...
O menino, tenro construindo o amanhã
Batendo tijolos numa eira
Desmanchando montes de argila
que das mãos de Isaías
ganhavam as formas.
O fantástico/Carinhanha:
jaracussu papo-amarelo
deslizando na ponta do rabo
pondo a meninada para correr
e que acabou comida de piranha
depois da paulada do véio Tanazo;
boi selvagem, marruá
depois do tiro de carabina
foi esquartejado na mata
e as carnes carregadas nas sacolas
nos ombros dos meninos no meio da noite
tudo à luz de lamparina
tremendo o corpo todo
pois que e o cheiro de sangue
podia atrair a pintada farta naquele mundão
O dilúvio/Carinhanha
tempo de chuva, de semana inteira
caía o céu de uma vez.
O rio beijava os troncos das árvores
e cantava toda braveza dos altos.
Numa frágil barraca de lona
espetada em triângulo na taba
um corpo sacudido
pelo treme-treme da sezão
e dedos tampando buraco
para impedir goteiras
Plenúlio/Carinhanha
a lua está mais perto
da terra-areia-branca
onde deita toda noite
seu corpo comprido
fazendo mar de prata
nas copas das aroeiras
pau d´óleo e jatobá
Os horizontes/ Carinhanha
a serra Parrela (Preta)
de grutas esquecidas e históricas
de onças pintadas
azulando o horizonte
trepada nas matas
O tempo/Carinhanha
o ontem sem amanhã
mais ontem do que ontem
meus amanhãs
que manhãs
Carinhanha.

Estágio no NCVU em 1953, três meses depois da fundação do Núcleo, hoje Juvenília.

***


CONTOS

Das coisas do sertão
Seus mistérios envolventes
(ou não?
tiravam gosto, tudo ao seu tempo
bons sujeitos
Pinico Seriema tinha o mistério das rezas
De reconduzir preso para o xadrez
Era amigo do sargento
E de defeito tinha uma arrouba de escroto
Que sacudia gargalhando
Só para mangar o povo

Zé Berto era da espécie de contador de história
O barão de Munchausen do sertão
Já prendeu novilha pela língua
Perdeu um gato caçador
Na cacunda de um urubu
Tudo garantido como homem sério

Tibúrcio dos pés tomado de cravos
De quase não poder andar
Tinha a ciência de adivinhar as horas
Deixava todos de queixo caído de tanto acerto
E outra treita tinha:
Pedir dinheiro emprestado dizendo que eram juros.

***


LENDAS E MITOS

Então o homem pousou o pé na lua;
eu sei!
Então o homem troca coração do homem;
eu sei!

O mundo corrido
vai longe demais
inda ontem o velho pescador
para ter a graça do peixe
ou desdita do nada
briquitou com o caboclo d ´água
saído dos esconsos do Chico;
inda ontem riquezas se fazia
aquele que o ovinho de galo achasse
a modo de ter na garrafa o Famaliá;
inda ontem era de ter vigília
nas panelas e nos currais
para não ter comida cheia de estrume
ou vaca dando de mamar ao bezerro
antes da ordenha
tudo diabruras do Romãozinho.

E era ontem?
Qual o que, não se espante:
na quietude do Chico
a história sempre se revive.
O ontem se mistura com o amanhã
E o hoje é tempo de ida e vinda
É só assuntar:
Tudo é tão fantástico.

***


SANTO ANTONINHO

Chap, chap, chap, chap....
precatinha levanta areia
para as alturas de Deus
fazendo trilho espichado no sertão
é Santo Antônio, Antoninho,
voltando das Pedras para a Serra
em busca de seu ninho
foi o vaqueiro que viu
e garantiu
e daí, pelo mesmo caminho,
começou a leva de gente de fé
a romaria
agora mais de cem anos passados
todos caminhos levam
à Meca do sertão
Serra das Araras.

***


TIPOS

Martinho Binga
Homem parecido de ser coitado
De não conseguir ligar coisa com coisa
Nos caminhos sempre desencontrado
Na procura tomada de sonho
Sem esmorecer insistia:
“Quero achar a minha Maria”.
Um dia achou e morreu feliz.

João Angu
Ele não falava, ronronava
Arrastando-se pelas ruas sem ida ou vinda
levantando poeira com os pés abertos
nas costas um imenso saco de linhagem
levando o sujo da cidade
a sua imensa riqueza, só dele
o seu mundo fechado, insondável.

Zé Bambu
Olhos perdidos além cheios de tristeza
indo longe para depois dos gerais
só querendo encontrar sua luz
o tempo correndo e sua alma mergulhada na paixão
estremece o peito e brota sua triste canção:
“minha namorate tem a pele fina
a pele fina como da sereia...”.

Entenda no desconhecido:
a vida tem ninho
onde palpita o amor.
o amor é de se ter.

***


VII - AFETIVOS

Ricardinho
Gustavo
Gabriel
Larissa
Júlia
Marina




RICARDINHO

Olha o campo com os olhos agraciados
pela a brisa mansa que sopra
o doce perfume eflúvio da terra úmida
e das flores que se abrem
às abelhas em seus volteios de alegria.
Sinta, bem no fundo do coração, a dádiva da VIDA.
.
Olha os campos. Prenunciam os frutos da primavera
com a abundância que recompensa e fortifica o corpo,
alegram e satisfazem o espírito – é a VIDA que palpita.

Olha os campos, com os olhos do amor,
Sinta a presença do Criador que tudo te ensejaste:
teus adoráveis pais e irmãos, toda a tua família.
Sinta tudo isto e renda graças ao Criador e a tudo,
pois, no fundo sentirás que és responsável, também,
por tudo, pois, até então estás a semear.

Olha os campos, e veja: a VIDA te abre plena
e festejes a doce idade dos dezoito anos
com o acréscimo que conquistaste com tua bondade,
com teu coração generoso: estás a colher frutos,
e amigos que recebestes como acréscimo.
Que bela recompensa tu tens.

O Criador há de estar sempre contigo que n´Ele,
e por Ele, vives no amor e retidão.
Sejas feliz, muito feliz porque tu nos faz,
a todos teus entes, tão recompensados,
felizes e com os corações nas mãos do Senhor
que tu nos deu como presente de todos os dias.

***


GUSTAVO

Desde cedo, quando ao mundo chegou,
Você se mostrou tão diferente.
Jeito de lago adormecido guardando paz,
Uma placidez que apascenta tormentas.
E assim foi ganhando o nosso mundo
De maneira fácil e mansa de ficar.

O tempo foi passando e você se revelando
Uma doce criatura no trato e no ver o mundo,
Sempre transmitindo paz e tranquilidade,
Sem que adversidades o tolhessem no ser.
As sebes ultrapassando como ser etéreo,
Porque seu o caminhar sempre foi o de chegar.

O tempo parece que não passou para você.
Se cresceu, guardou o espírito de criança,
Sempre doce e amável no trato, no ver,
E com isto conquistando corações você foi
Envolto em abraços amigos sempre vindos,
Você foi um dom especial que nos veio do céu.

Guto, Guga, Gunquinha, quantos nomes forem
Sempre há de ser tão especial - você mesmo,
Com sua alegria constante e solto sorriso.
A sua jovialidade e a transcendência espiritual.
Nos iluminam a todos que o amamos tanto
Assim seja, sempre, querido Guto, em sua vida

***


GABRIEL

Gabriel, quando você nasceu fiquei tão feliz,
Senti uma luz especial iluminando o meu ser.
Então, veio-me na lembrança, viajando,
O belo quadro da figura do anjo Gabriel
O enviado do Pai que anunciou a Maria o filho
Pois, você, Gabriel, nos chegou com tanta luz.

Lembro-me bem, Biel querido, da sua chegada.
Fiquei, com sua vó, tão feliz e radiante,
E então escrevi-lhe um poema cheio de amor.
Queria-o aqui, neste livro para guardar tanta emoção,
Porém o travesso tempo driblou-me levando-o.
Cópia alguma me ficou em registros.

Guardo aquela emoção até hoje, Biel, com amor
Divido-a com sua vó de tempo em tempo,
Porque partilhamos o amor que sentimos tanto por você.
O poema se perdeu, sinto tanta pena disso,
Mas ficou e sempre ficará, querido neto,
O imenso amor que guardamos para você, todos dias.

***


LARISSA

Princesa, minha princezinha,
Olhos verdes como esmeraldas,
Da tua e minha Esmeraldas
No amor ali cultivado.

Princesa, minha princezinha,
A doce suavidade do ser
Que inunda nossa vida de alegria.
Luz que reverbera a placidez.

Princesa, minha princezinha,
Em que campo estiveres
No mais distante de ser,
Tua luz refletirá sempre em nós.

A tua existência é uma dádiva,
Que fez mais rica a nossa vida.
Por isso bendizemos ao Senhor,
Que nos deu uma princezinha.

***

JÚLIA
(J.P. 30.Q)

Inventividade,
Inteligência manante
E esfuziante
Da minha Julinha,
Marcada, à tinta
Na balança da vovó.
Registro de estripulia?
Não, não foi.
Expressão do encanto,
Cheia de ritmo
E rima.
Direta e incisiva,
Um código de criança criado
Para ela mesma marcar
E depois saber
Que naquele tempo
Pesava trinta quilos.

E quando o tempo passar,
Como sempre passa,
Certo é que vamos lembrar
Com carinho e saudade
Do dia para trás ficado:
JP 30Q
Júlia pesa
Trinta quilos.
(abril/2002)

***


MARINA

cada dia, a cada momento,
tenho sentido fluir de dentro de mim
muitas palavras que teimam em saltar aos ares;
elas me borbulham de uma grande emoção:
como o regato que canta na manhã de orvalho,
sentindo o doce beijo dos primeiros raios de sol;
como a suave aura que vem de bosques perfumados,
trazendo gorjeios de aves mimosas
e beijos das estrelas na noite visitada;
são palavras bordadas, cada uma, com as letras do amor,
que me inundam de intensa felicidade,
revivida a cada instante numa inesgotável dádiva;
são palavras de pequenas e repetidas emoções
que transformam muitas vidas em entes encantados,
duendes de um bosque de fantasia/real.
Bem que eu queria dizer essas palavras de uma vez,
deixando que borbulhassem como farto rio,
saciando de alegria e amor meio mundo;
mas emoções se renovam em turbilhão constante,
quando me vejo diante do teu brilho
e se ajoelha a minha alma;
quando teus olhinhos negros, miúdos e puros indicam
meus caminhos, os caminhos que levam a Deus;
sempre me transbordo em palpitante emoção,
quando me invade o teu sorriso cativante e bondoso;
quando, como música me chega o teu balbuciar
o prelúdio de coral angélico no etéreo a brincar.
Tudo em ti é meigo e doce:
teu dedinho, do lado do seio de tua mãezinha,
no cantinho da boca nas tuas delícias de ninar;
tua bondade em agraciar a todos com meigo olhar,
o sorriso enternecedor, um mundo vasto de doçura;
É a paz a nos invadir o coração, de cheio, pleno de amor.
Então quero dizer as palavras,
as palavras que guardo desde quando tu nascente,
juntadas dias após dias, minutos a minutos;
desde quando chegaste como um raiozinho de luz,
na vida da mamãe, papai, de Julinha, tua querida irmã
e para vovó e vovô que te prendem no coração;
preciso dizer, pois quero que tu saibas em letras
o que tu és em muitas vidas e vida que és,
mas não quero que seja assim tão depressa
porque as tenho guardado com muito carinho,
como um tesouro, no fundo do meu coração.
Lá, com elas, estás tu, doce e muito querida Marininha,
nossa Pituchinha adorada.
Deixa, pois, que elas me aqueçam tempo mais
para ter o gosto de reviver o mundo angelical...
e ser a vida mais do que a vida em tu para sempre.

08 de março de 2000.

FIM

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