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quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

ACIDENTES

BREVE COMENTÁRIO

Enviei uma cópia destes poemas para a apreciação do mano Domingos Diniz que me respondeu, com sua generosidade de sempre:

“...Junto à carta um punhado de bons, ótimos poemas tendo como tema esses sertões que o mano véio tanto conhece e adora. Você é um poeta nato. O seu texto, seja qual for a temática é impregnado de poesia. O nosso mestre Aires da Mata Machado Filho sempre dizia que uma prosa para ser boa tem que ter uma boa pitada poética. Diz, ainda, que para se fazer qualquer inferência de um texto, especialmente poesia, há de se fazer, no mínimo, duas leituras bem feitas. E ainda não tive tempo de fazê-las. Li os poemas de uma só vez, mas já deu para sentir que a coisa é boa, de primeira como tudo que o mano veio escreve. Os quatro versos finais de cada poema são um achado genial. Se separá-los cada um dos quatro versos, cada conjunto dá um poema fabuloso com vida própria. Completo.Leia-os separadamente em voz alta e verá o efeito. Cada final dos poemas há nele o eu universal, não apenas o eu-autor (o hífen é meu, ponho-o onde quiser, às favas com a reforma ortográfica). Quando o leitor ler ele se sentirá dentro da mesma forma que o autor”



SOU UM ACIDENTE

Eu quis, com estes versos,
um retorno no tempo;
buscar o menino sem peias,
sem fronteiras, sem futuro.
Senti, na volta feita,
que a vida é um acidente.
Passamos por momentos,
somamos momentos
e nas impressões gravadas
arrancamos sensações
juntamos emoções.
Cada acidente é uma vida,
nova vida que nasce e se refaz
e muitas vezes se perde.
Conquanto finitos,
Somos parte do infinito,
Mistura com a natureza,
e o que dela colhemos
é onde está o nosso sentimento,
é por onde vagueia nosso espírito.
E juntando acidentes
escrevemos nossa história.
A vida é um acidente.
Eu também sou o acidente.
Tenho minha passagem pela vida,
certamente fui notado
e cantei a minha canção.
Pelo menos para os que me querem.

***


O RIO E A BRISA

O rio pulsa
Seu silêncio
Sepulcral
Passa

Espelho de luz
Véu plúmbeo
Corpo que passa
Silêncio

Uma pedra
Uma loca
Uma raiz
Um acidente

O rio canta
Reverberação da sua voz
Insinua pelo barranco
Sai além

A brisa
Ligeira voa
Só o frescor
Dela o sentir

Vem e vai
Como corcel
Solta no ar
Do sertão

Um galho seco
Ninho de gravetos
Frondes cheias
Acidentes

O acidente
É vida
Rebusca o guardado
Para se revelar

***


BARRANCO

Limite do córrego
Do ribeirão
Do rio.
Da vida

Penhasco
Degraus de barro
De verde forrado
Capim d’anta
Braço-duro
Pajeú enlaçado
Verde denso ali
Pelado exposto acolá
Gretado pelas águas
Cortado pelo vento

Barranco do pescador
Esperança na saída
Ânsia pela chegada .
Família que fica
Que espera
Abraços mais nada
Barranco é ponto
Partida
Chegada
Na vida do barranqueiro.

Trilha torta do gado
Encosto do jacaré
Abrigo da ariranha
Da capivara ressurgida
Da lisa lontra
Limite do campo
Do pescador o deixar
Que a vida passe
E ele vai ficando
Indo ou esperando

Encosto do vapor
Entupindo-se de lenha
Pela o barranco
Um apito
E um pedaço de mata
Viajou no ar.
E a vida passa
A fumaça passa
Ficam o barranco
O barranqueiro

Barranco
Barranqueiro
Mundo vagaroso
Uma história longa
Uma vida
Um rio
Viagens e sonhos
De quem não vai
Preso na âncora
No barranco.

No barranco, sentado,
Sonhei meus sonhos
Vivi minhas saudades
Deixei o mundo.

***


BOQUEIRÃO

Os gerais se espraiam
Espicham-se em vagas
Como ondas
Sopradas pelo vento

A linha do horizonte
Atrapalha-se com o céu
Verde/azul
Um liso só, como o mar.

A vaga se abre
Escorre abaixo
Para o mundo que espera
As notícias gerais.

A planície
O vão.
O corpo imenso
Que despenca no precipício

Viaja pelos sopés
Indo e vindo além
Enseadas criando
De densas matas.

Trabalhou o arquiteto
No gigante espraiado
Desenhou em rochas
A formosura da mulher

Vales cortando
O corpo da serra
Bocas se abrem
Lábios separados

A vida inaugurada
O boqueirão
O caminho
Entre gerais e vão

Mata fechada
Fresca e escura.
Aroeiras seculares
Imperatrizes

Sugere locas
Refúgio de bichos
Ninhos de onça
Morada de peçonhas

Corredor de barbados
Guiando as guaribas
Cantando seu lamento
Nas noites de lua.

Boqueirão...
No seu escondido
Deixei um olhar demorado
No mistério da travessia

O que vem
O que vai
O que sou ou serei.
Boqueirão.

***


BREJO

Barro preto
Terra molhada
Regos
Tufas
Taioba
Samambaia
Frescura
Refúgio

Brejo
O medo
No passo ido
Da moita fechada
Brejo
Capa da água
Dormida
Poros suados

Brejo
Fechado
Vida guardada
Sem encanto
Um tesouro
Ouro negro
Berço de água.
Escondida

Quanto me fiz brejo
No passar da vida
Fechado para uns
Misterioso para outros

***


CACHOEIRA

Borbulha na loca a gotinha
Refresca a raiz do buriti
Escorrega noutra que passa
Necessidade de ter a vida

A corrente em cantigas
Vence bailarinos fiapos
Algas verdes e vermelhas
Enfeites do barro branco

Goteja lágrimas o barranco
As notícias do seio da terra
Mansamente elas escorregam
Deitando-se no veio cristalino

Caminho cortando os gerais
Saciando a filharada de Assis
Não tem parada no seu fluir
Desafia pedras e locas

Na viagem serena de repente
Uma enorme pedra rasgada
Boca. Travessia. Precipício
Os gerais ficam para trás.

As águas se espremem
Um só corpo despenca no ar
E lembrando o nascer na loca
Reparte-se em tantas gotinhas

Umas voltam como fumaça
Outros seguem o destino
Mergulham no poço do ir
No destino - o rio, o mar.

Cachoeira tem cada um
É a divisa no seu tempo
O compasso da saída
Para se ter a sua chegada.

***


CAIS

A estradinha rasga o cerrado
Esbarra e some no de se ver
Joga-se para o fundo do vão
Como vôo de uma cachoeira.

E faz uma linha tortuosa
Abraçando os gerais ao vão
Dois universos diferentes
Com seus encantos de ter.

Tornejando o corpo do platô
Espicha uma comprida linha
Dois lados buscando o além
Desenho da passagem do tempo.

Os verdes vales vão longe
Neles corre solto o vaqueiro
O seu grito vai pelas quebradas
E volta para dizer que tem fim.

Dos barrancos escarpados, nus
Abrem-se bocas enormes, vermelhas
Terra comendo terra, tão voraz
Molhadas nos banhos da chuva.

Pedras presas nos taludes
No emaranhado de raízes expostas
Como parasitas ou frutos da terra
Se perpetuam ao beijo do vento.

Nos socalcos pedrinhas estremecem
Das noites frias ao sol escaldante
Esfarelam-se em moinhas sem forma
Piso falso da natureza esfacelada

E ainda assim a vida se mostra
No colorido de mimosas flores secas
Teimando em ser jardim na aridez
Do desencontro e transição.

Os gerais espicham os olhos de querer
Navegar no verdume dos vãos
que fantasiam os seus sonhos
Imaginando como seria perto do céu.

Assim levo meu tempo, também.
Quero ser gerais para ter o céu
Quero ser vão para ter a esperança
Renascendo em mim todos os dias.

***


CAMPINA

A campina tão lisa
De capim dourado solto
Piso de nanicos
E contorcidos troncos

Corpo de três limites
Nadir, zênite e horizonte
Um mar dourado de sumir
Pontilhado de velas rotas

No estio a pradaria
É de areia fina como ouro
Que se solta em partículas
Para buscar o céu.

Nas águas o trilho é curto
Quase nada além se vai
Ficando de esperar ali
Num poço sem peixe

Troa jeito de saudade
Numa morada escondida
O trovão chamando a alma
Para rever o que não teve

Campina, esse nome doce,
Para mim é uma lembrança
Dos infinitos não chegados
Pelo meu eu tão finito.

***


CAPÃO

Capão prisioneiro do cerrado
Ilha na vastidão de horizonte
Tão pouco em limites curtos
Mesmo assim travessia limitada

Um corpo quase estranho
Árvores de grandezas outras
Não são tortas nem nanicas
Se arranjando noutra roupagem

Do campo limpo e ralo
O vivente ou a rês desgarrada
Nele favorece-se do refrigério
De muita sombra precisada.

Tão pouco frutas e frutinhas
Como no mundo do cerrado
Aquelas delícias de um éden
Para a bicharada do céu

Mas é belo, formoso e denso
Onde canta o vento dos gerais
E no sertão tem sua serventia
Dá ao homem modo de viver.

É a farmácia do sertanejo
Pródigo em cascas e raízes
Sementes e folhas
Todos os remédios da vida.

Na vida, qual seja o modo
Todos temos serventia
Um de modo bonito de ser
Outro apenas a generosidade.

***


CERRADO

Matas das serranias e planícies
Tapetes densos de verde brilhoso
Sombrias de umidade penetrante
E fofas alfombras de folhas secas

Rios cortando rochas e vastos campos
Pântanos de fauna exuberante
Lagoas imensas de querer o mar
Tudo no sentido de grandeza

Perdido na mata, perdido fica.
No rio muito tem que navegar
no despropósito de grandeza
O belo se esgota na precisão.

Vai aos gerais de olhos fechados
Sinta só os eflúvios da mãe terra,
O cheiro do ar sem gases da morte
E a canção do vento e dos alados.

Tão simples o universo aberto.
Primeiro de se ver: o cerrado,
Mas assunta um tanto no quieto
Para saber que mundo se lhe abre.

Um bordado de árvores nanicas,
Retorcidas, desleixo de vida;
Frondes forradas de folhas ásperas
Sem frescor, matizes e flores.

No entreaberto dos troncos,
Mira-se a linha do céu,
E no chão o capim seco, espícula
De sentido uma pintura.

Não tem vida no quadro mostrado,
Vivente não prospera nem fica,
De tudo tão carente até de sombra
Nada mesmo é fatível de abrigar.

Desfaz-se o engano numa quebrada,
Estatelam os olhos num festim,
Diante da parede verde estonteante
Querendo alcançar o céu.

Rompe-se o canteiro de ciganinhas,
Colar no portal do cerrado.
Um tapete verde/roxo avança
No abraço da virginal natureza.

Na alma soam duas canções então,
Maviosas em seu tempo separadas:
Nos flabelos aos beijos da brisa,
Nas ramagens no fluir do riacho.

A arara estridente sinaliza a vida
Bem no topo do buriti, roendo frutos
Jandaias e galegos voam e revoam
Pincelando suas cores no azul.

Distraído, sem assombro, desce o cervo.
No chifre o amarelo da caraíba
Que lhe servia de repasto no orvalhar
E vai bebericar na pura fonte.

Ali se tem o gosto da eternidade,
Retorno às origens do éden
Sente a graça do Criador
Na dádiva pura e abençoada

No voltar ao mundo, seco e real
Pelas estradinhas de areia branca,
Dá de se cobrir do roxo da sucupira
Ou se vestir como a mimosa piúna

De acompanhar a dança das abelhas
Mergulhando no néctar perfumado
Das alvas flores da sambaíba
- Lixeira só pela aparência áspera.

Mais indo é preciso no andar.
Abre-se o maná do cerrado
Homens e animais, do chão e do ar
Alimento ou remédio da vida

Ananás , cabeça-de-nego, buriti
Mama-de-cadela, cagaita, cajuzinho
Coquinho, coco indaiá, grão-de-galo
O pequi... Pode passar fome?

Alcanfor, sambaíba, angiquinho, aroeira
Assa-peixe, arnica-do-mato, barbatimão
Batata-de-purga, carapiá, ipê roxo e... e
Cada casca, raiz ou flor, a vida segue.

.E dos bichos, só de amostra:
Tatu, veado, lobo, ema e seriema, onça
Tamanduá, raposa, gambá, anta e paca
Peixes e sucuri no brejado do buritizal.

Preciso ver, sentir é preciso - o cerrado
Pairar no mar de nanicas árvores, buritis...
Ouvir o canto que entoam os gerais
E aí, então, terá de dizer: Deus-cerrado.

***


CÔMORO

Deixando as serranias para os vãos
Ainda nos platôs como no deserto
Os cômoros vão se mostrando
Como dunas quebrando monotonia

As extensas rechãs nas abruptas caídas
Destampam noutro plano, o vale
Apinhado de cômoros como chapéus
Que saltam pelo vão até chegar ao rio

Aqui e ali assomam formando cocurutos
Saindo da mata seca dos umbuzeiros
Pequenas cordilheiras desnudas
Mirantes para buscar os horizontes

O cômoro sem ser uma montanha
É uma sensação do ensaio das alturas
Lembra os sinais que tem do platô
Mas na mata é uma curva da terra

Quanta gente na vida como o cômoro
Quer ser planície para ir longe
Quer ser montanha para ter o céu
Mas nunca sai do lugar.

***


COROA

O rio não é só de água como se vê.
Tem a companhia da coroa.
É preciso ser lembrado das origens,
O ninho deixado nos além nos gerais.

A coroa, como o rio, nasceu da terra,
Também em suas entranhas gerada.
Vem dos grãos que rolam e ficam,
Ainda que tivessem a sina do mar.

Coroa e suas serventias, como a praia.
Férteis vazantes capazes do alimento:
A abóbora para o pirão com a curimatã,
O milho e o feijão catador para fritura

O pouso para o corpo tostado do pescador,
O sítio macio para a donzela dourar a pele,
O quentinho para o ninho do quem-quem,
O colchão para o jacaré tomar sol em paz.

A coroa hoje não mais cumpre sua sina,
O seu modo de chegar, com o rio, no mar,
Das belas praias cobertas de coqueiros.
Não pode acompanhar a leva das águas.

Estancaram seu deslizar para dar serventia,
Outras serventias para a companheira água.
Fica para trás pela mansidão escorrer,
No retido de tantas barreiras levantadas.

Os grãozinhos perdem a viagem da descida
Na água parada-paradinha quase sem ir.
O grãozinho assim não passa nas goelas,
Na passagem da água para o mar..

As coroas ficaram para trás, em um porto,
Ali por tempo só mudando de lugar.
É como fico, na vida, querendo um mar,
Mas mal posso mudar de lugar, fico.

***


FOJO

O que tem no fundo do fojo?
A boca disfarçada
Em um tapete sutil
Perigo escondido
Sombra impérvia
Aos olhos do curioso

Fios brancos
Fios baços
Fios negros
Rede véu
Camuflagem
Armadilha das aranhas

Escuro tão escuro
O não sabido
O escondido
Tem fundo?
Não tem fundo.
É o fojo.

Olhos estatelados
Abrem-se as pupilas
Buscam o fundo
Mas o fundo não vêem
O fundo no fundo
São apenas sombras

Bichos e fantasmas
Seres da terra
Cobras no ninho
Caranguejo peludo
Antenas arrebitadas
Ferrão vermelho

Mistério. Horripilante
Se fosse pelo ouro
Se ouro tivesse
Seria a aventura do ir.
Eu entraria no fojo
Somente por um sonho

***


GROTA

No abrupto estender da rechã
Um fino risco fere a terra
Não mais que um trilho
Que se acentua com o tempo.

Chuvas e chuvas - sopita o leito
A enxurrada suave vira torrente
Explode acima da penedia e rugindo
despenca pela ribanceira abaixo.

Um vale se abre no ventre da terra
Vorazmente devora o chão e o mato
Um longo caminho aberto ao céu
Buscando as margens de um rio.

No rigor da seca um leito de areia
Barrancos nus, torres de areia
De raríssimo verde senão do mato
E sem lembrança das frescuras.

Não tem modo de esconso e mistério
Menos ainda escuridão e umidade
Não tem cores e alegria
Só a tristeza dos barrancos lavados.

Grotas sem beleza e mistério, nada
Mas guardo sentimento por duas
Paiol no Carinhanha da minha infância
E a Surucucu do Mestre Minervino

Conheci uma numa aventura imberbe
Quando vivia de sonhos e fantasias
Outra por ter encontrado a genialidade
No mais simples dos seres um artista.

Podemos ter também uma vida
Sem serventia como uma grota
Mas também, por ser um acidente,
Guardar, sempre, muitas saudades

***


GRUTA

Pedra lisa, pedra frisada
Monte de pó do tempo
Teias de aranha em fiapos
Cortinas tétricas a bailar
Bocarra escancarando
As entranhas da serra.
Com o hálito fétido
Restos de morcegos
Repugnância remontada
De tantas noites passadas

Sombras do mistério
Receio do desconhecido.
A boca engole o homem
No ir da aventura.
O sangue da terra escorre
Das paredes úmidas
O calor sufoca
A derme fica pegajosa
O ar diminui
O peito aperta

Tem onça dormindo?
Tem cascavel enrolada?
Bicho separado do mundo
O escuro aumenta.
Não se vê mais longe
O arrojo arrasta os pés
Quanto mais longe vai
O quadro se repete
A natureza dorme
Secularmente quieta

A gruta é corroída
Pelo que vem de fora
A enxurrada
Fúria rasgando a pedra
Escoando o que brota
O vento fustigante
O bicho que mija
O homem que quebra.
Que arranha
Pinta o nome da estupidez

O que mostra a natureza?
A barriga da serra.
Pedras coloridas
Todas as cores reluzem
Como pétalas de rosas
Na incidência da luz
Lâminas afiadas
Descendo
Subindo
Nas pedras encrespadas

Eu vejo na gruta
Sonhos esquecidos
Que teimo salvar
Na teia da vida.

***


ILHA

A ilha é mundo no mundo
O barro que ficou vindo da água
Por isso tem seus horizontes
Fincados nas correntes eternas

Estágio de modos de vida no tempo
Não remonta a distante passado
Não tem a certeza da vida futura
Ilha é estar, é tão só o presente

A ilha é tolerância do rio
Ele dá, ele tira, quando quer
E na relação umbilical
Só ela tem quatro barrancas

Na ilha a poesia se repete
No dia o esplendor do sol
Nas noites miríades de estrelas
E o brilho prateado da lua

Pulsa nela o universo físico
E mundo renascendo
A natureza se manifestando nos sons
Que ferem os silêncio

Lajedo ponta lambendo o Pardo
União, Tapera, Bom Jardim da Prata
Mata do Engenho, Capivara e Acari
Cada ilha um nome e uma saudade

Sobe o feijão catador de verde sumo
Brotando das placas de húmus
A abóbora-jacaré, milho verdinho
Quiabo, maxixe e melancia da praia

Ilhas do meu São Francisco, ilhas
Acidentes dadivosos no meu rio
Nela repousa a vida, renasce a vida
Ilhas do meu São Francisco, ilhas.

***


LAGOA

O cricrilar dos grilos orquestreiros
Padovanam motu perpétuo noturno
Os sapos ressoam como trompas
Marcam a passagem dos compassos

Tal o fagote pontuando os graves
O sapo-boi ressoa soturno
As pererecas batem sinos
E levam a orquestra ao staccato.

No fundo da orquestra, na penumbra
O contra-fagote faz tremer a natureza
A orquestra se segura no staccato
Ronca grosso a sucuri dentro da noite

Na boca da mata, numa galha solitária
Fluí no éter o melífluo som do oboé
Melancólico o urutau chama a lua
Se cobrindo na sua paixão melodiosa.

A lagoa cai em sono profundo
A lua espelha-se na serenidade
Das águas fronteiras límbicas
Longe dos esconsos de mistério

O alvor lentamente desperta o dia
O passaredo ensaia a vida
Suaves frisos riscam o horizonte
O céu vai chegando todo de azul

Nos jenipapeiros mergulhões
Abrem as asas no acalento do sol
No ninhário como nuvem assentada
O espichar de pescoço anuncia a garça

O maestro invisível dá um sutil sinal
A lagoa é sacudida de ponta a ponta
Mergulhões em bandos ferem o espelho
E agitam as asas encurralando os peixes

Ágeis pescadores mergulham no fecho
Peixes trazem preso nos bicos fortes
No jenipapeiro com papo cheio esperam
Aliviam as sobras na folhagem verde

As garças pescam com calma filosofal
Piabas que dançam entre o água-pé
Esquecem-se do dia e comem sem parar
Depois alçam o vôo buscando o pouso.

E a vida vai reverberando em sons
O vento sopra a flor lilás da água-pé
E curimatá estrala o rabo em fuga
Das esfomeadas piranhas em bando

O jacaré deixa o banho sol e escorrega
Abrindo caminho entre o tapete verde
Busca um bicho distraído no comer
Antes que lhe roube a presa a sucuri

Depois chega o rei o que se impõe
Chega o que não observa o equilíbrio
Imbica a proa da canoa e joga a rede
Principia então a morte da lagoa

Como todos os bichos vivem bem
Filhos da natureza no seu mister
E, assim, eles vão tecendo a vida
Onde o homem é o desequilíbrio.

***


MATA SECA


Aprecio a mata seca
Por que ela é seca
E se assim não fosse
O verde não faria festa

Paus desprovidos da graça
De folhas que forram a fronde
Onde cantam a brisa e as aves
Natureza morta, um retrato.

As vaquetas são cambitos
O pau pereiro só o fruto
A mamoninha quase pelada
Verde só o algodão-seda

Na floração de calcário
Pedras espetadas ou colunas
A aroeira abraça a imburana
Elas são companheiras do agreste

Nas cavidades das rochas
Incham os verdes bulbos
Do portentoso umbuzeiro
Árvore sagrada do sertão.

Mistério da natureza
A flor branca do umbu
Só se vê na seca
Anunciando a chuva

Se chove transforma-se o mundo
Um novo cenário é estampado
O verde cerra as cortinas
A densa mata tudo cobre

É a beleza do sertão
Ensinando a vida:
É preciso ter o triste
Para o belo desfrutar.

***


PANTAME

A traíra negra sonolenta cevando
Como morta pousada no esconso
Do tapete de água-pé e taboas
No medo do jacaré ou da piranha

Água pouco se vê sabendo dela ali
Escondida sob o manto verde
Água-pé e taboa disputam espaço
Mandando raízes no fundo firmar

O tremer de folhas - sinal de vida
Quem busca a caça resvala de manso
Sem pressa e nem ganância - só jeito
De não perder o seu sustento ali

A sucuri ronca profundo sua presença
Os viventes aguçam os sentidos
Até jacaré caça outro porto de ficar
Ela é a dona dos esconsos com a traíra

Não tem canoa singrando
Nem rede e pouco se vê o anzol
Dorme tranquila a traíra e ceva
Só com medo do jacaré e da piranha.

Pantame - profundo mistério
Tem água, mas não é de se ver
Nele nem os bichos se mostram
Sorte: o homem passa ao largo

Minha alma, às vezes, é um pantame
Sem uma fresta para a luz passar
Escondendo tesouros e mistérios
Que homem algum há de conhecer

***


PONTAL

Pontal de cima
Pontal de baixo
Navegam os sonhos
Nas curvas do rio

Mistério da curva
Sensação do barco
deslizando alegrias
Vida de tanto esperada

Na curva do horizonte
O rio chega e vai
Do barranqueiro
Os sonhos leva

Pontal de cima
Pontal de baixo
Dois extremos
Dos braços do rio

Apertam o barranqueiro
Na sua contemplação
Para depois do vir
A vez do ir

Pontal é esperança
Que disfarça saudade
Nele a vida aponta
Nele ela se despede.

***


RIACHO

É como um sussurro...
A mãe-terra se abre
Numa loca buritizal
Nas grimpas da serra.
Chuá... chuá... chuá
E a canção cresce
O marulho que deixa a ramagem
Chega à boca do carrasco
E ao ouvido do caminheiro
Viajante solitário dos gerais.

Deixa a loca e escorre
Lavando raízes e folhagens.
Desce cantando a despedida
Da loca fria e sombreada.
Molhando pedras esmeraldas.
Dos barrancos a “salmoura”
O brotar do sangue da terra.
O riacho cresce e cresce,
Não é mais a pequena fonte.
Escorre em campo aberto.

Da paz da vereda sombria,
Estampa o céu aberto dos gerais.
As curvas de pedras, o sol,
De repente, uma queda.
Brilha como lâmina estirada
E despenca no vão.
Vai fincar num poço frio
Aberto na rocha com o tempo.
Serpenteia entre pedras
Buscando outro caminho.

Desce a serra, o boqueirão,
Corre abrindo passagem de manso,
Agitando cabelos finos de algas
Nas pequenas frias locas;
Vê dormitar velhas traíras
E o bailado de assanhadas piabas.
E, de repente, se agita de leve
Com as bicadas das garças
Varando suas águas
E vai descendo, fazendo barranco.

A pequena planície atravessada
Alcança, bem mais volumoso,
O baixio úmido, jeito de brejo.
Faz curvas curtas e longas
E escorre sem pressa.
Não é largo, vence-se de salto
Muita folhagem, matinho forrado.
Se mais largo se faz
Uma pinguela tosca, lisa
É a serventia da passagem.

De noite, depois da faina,
O homem nele se encosta
Para tentar o bagre
Num poço de água quase parada.
Natureza do córrego.
Mais um lanço vencido.
Ele chega à oficina
E enche o cocho do monjolo.
Ecoa ritmado chuá varando a noite
Que chega sonoro ao rancho.

O córrego atravessa o brejo
Camuflado no barro negro,
Vai depois virar ribeirão,
Lavar os barrancos altos,
Cavar neles o barro e a areia.
Manso vai servir à lavadeira.
Por onde correr planta a vida,
Depois de muito viajar vira rio.
E como rio faz jornada maior,
A de chegar ao mar seu destino.

Viajei com aquele filete
Brinquei com o riacho
Saltei e pesquei no córrego
Sentei pertinho para apreciar
O descer e o subir do monjolo
E virei, com ele, ribeirão.
Cheguei a ser rio
E, agora, já penso,
Estou indo para o mar.
Chego perto do meu mar.

***


TABULEIRO

Doce fragrância inunda o ar em rolos
O alívio caminha pelo peito
Remédio para todos os males
O carapiá que me ensinou Zé Guedes

O carapiá me levou ao tabuleiro
Onde se espalha como planta rasteira
Se faz tapete da farmácia do sertão
Universo de seiva, sementes e cascas

O tabuleiro é também tal como oásis
Nos recantos do cerrado às matas
Nas frescuras dos boqueirões
Veias que cortam as entranhas do chão

É de ter sombra bem formada
Da graça do jatobá-do-campo e sucupira
Do d’arco, peroba do campo e do tingui
Belas árvores intermediárias como ilha

O tabuleiro riqueza apreciada no sertão
É dádiva do raizeiro e descanso do gado
Refúgio de bichos do sol inclemente
Sombra fechada sem a graça da água

Tantas vezes quis ser tabuleiro
Para abrigar pessoas à sombra
Sendo refrigério nas inclemências
E, ainda assim, não fui lembrado.

***


VALE

Paredões alcantilados forrados de samambaias
Entrecortados de gretas marejantes de pérolas
Sombreado no topo pelas frondes de aroeiras
Que espalham suas garras pelo pouco de terra

Estendem-se dilacerando a serra sem rumo
Tornejando avançados e abruptos taludes
Braços da serra eternamente estendidos
Não mais se estreitam abrindo a passagem

É o caminho por onde escorrega a vida do cerrado
Por isso fonte da vida, frescura que verdeja
E vai irrigando raízes seculares e pedras lisas
Ganhando os modos de se fazer um belo rio

Os gerais criam, as montanhas agasalham
Depois abrem o corpo tal como o albatroz
Alimentam os vales para levar da natureza
A vida que será para sustentar a vida.

Eu tive uma existência de albatroz
Quantas vezes rasguei o peito
Para saciar a fome de um amigo
Repetindo-a cumpri meu destino.

***


VÃO

O vão tem a natureza das matas
É o caminho do deslizar dos rios
Onde se espraiam férteis várzeas
E as sementes se fazem lavouras

De um sopé ao outro das serras
Cortando extensa planície
É o mundo que torneja os gerais
Sem jamais um degrau subir

Vão dos capões e do carrasco
Das lagoas fartas de bichos
Das estradas poeirentas
O vão sempre acompanha o rio.

Também temos nossos limites
Mas podemos traçar rotas
Ir o quanto possível no caminhar
Em busca dos sonhos além.

***


VAU

Vau é vida
Caminho
Salvação
No seu tempo

Vau é vida
Ida e vinda
Sem o perigo
Da desdita

Mas tudo
Tem seu tempo
É preciso saber
Viver é o risco

O meu rio
Tem muitos vaus
De ida e vinda
Para o bem da vida

***


VEREDA

Vereda é sentir de vida
Encontro de rumos
Transição da alma árida
Para a esperança nascida

É o palácio do sertão
De ricas pilastras com capitéis
Enfeitados de verde e ouro
Ninho da vida do céu

É a cantiga do amanhecer
Quando chega a brisa matinal
É música dolente ao anoitecer
Quando a lua desponta rainha

Na vereda o buriti sagrado
Lenho, folhas, cerdas e frutos
Ponto de ficar do homem
Que procurou seu rumo

A vereda bebe água do cerrado
Junta tudo numa loca escondida
E solta aos poucos o tesouro
Tão guardado enquanto chovia

E os bichos da selva torta
Do carrasco árido esfogueado
Têm o refrigério da vida
E se refazem para outro viver

E o homem dela se farta
Mas o de melhor mesmo
É o tanto de amar e querer
Não vive ele sem o buriti

Nasce com o buriti
Vive com o buriti
E quando se encanta
Viaja com o buriti

A minha travessia tento
Vencer as margens é preciso
Se não der certo, planto raiz
Feliz fico eterno na vereda.



FIM.
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