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sábado, 14 de novembro de 2009

DO CERRADO ÀS BARRANCAS DO RIO SÃO FRANCISCO

ÍNDICE

Roteiro do Livro
A Inspiração do Livro
Prefácio
Cerrado
Grande Sertão:Veredas, o universo físico
Depressão são-franciscana
As Estradas
Ranchinho
O Buriti
Ai das Veredas
Ocaso de um paraíso
Caldeirão
Florada do Cerrado
Raízes e Raizadas
Pequi: Rei do Cerrado
Tingui
Os Bichos do Cerrado
Caçadores
Acari
Vieira
Locas do Bom Jardim
Lagoa Bonita
Mata Seca
Umbuzeiro
Brejo dos Angicos
Vale do Mangai
Pântano do Jatobá
Alma Barranqueira
A Lenda de Santo Antônio de Serra das Araras
As Danças do São Francisco
A Farinha de Mandioca
Minervino o Artesão da Viola
Agenor Panta
O Homem que conversa com os Bois
Lendário
Homem e o Rio
O Rio São Francisco seca
Elegia ao Rio São Francisco
Fechamento



Roteiro do Livro

“Se não possuímos o frescor do ar e o brilho da água, como é possível vendê-los? Essa idéia me parece estranha. Somos parte da terra e ela é parte de nós. Os picos rochosos, os sulcos úmidos nas Campinas, o calor do corpo do potro e o homem – todos pertencem à mesma família. Tudo o que acontecer com a terra acontecerá com os filhos da terra. Se os homens cospem no solo, estão cuspindo em si mesmos. Isso sabemos: a terra não pertence ao homem; o homem pertence à terra”.

O trecho acima é de uma carta escrita pelo chefe Seatle ao presidente dos Estados Unidos, em 1854, respondendo à proposta de compra do seu território
Tomo este trecho para apresentar este modesto trabalho à apreciação dos amigos na esperança maior de que ele possa servir de reflexão, muito especialmente no universo escolar.
Naquele ano o velho índio traçara reflexões ecológicas, quando ainda a palavra sequer fosse causa de preocupação no dia-a-dia dos homens. Ao mesmo tempo, o homem “civilizado” dava sinais de que o progresso marchava em direção contrária à sua relação com a Terra que teria de ser revolvida para mostrar a cara do ouro e outros metais e pedras preciosas; que as matas deveriam ser tombadas para dar espaço aos vastos campos de pastagens e sua madeira se transformar em energia. O homem já mostrava que, de fato, assumia o papel de um deus, o dono da terra, dos animais, dos rios, da flora, do ar. Atiçava.
O homem assumiu essa postura sem se cuidar que ele e “a terra são a mesma matéria...” e, agora, de repente, começa a perceber – na pele, no ar, nos campos, nos rios, em casa – que foi longe demais. Aí, a lição do velho índio, da metade do século XIX explode como uma verdadeira bomba em nossas vidas. Infelizmente, aqueles que ainda julgam ser os donos da Terra não foram tocados pela lição, pois seus interesses planam acima da realidade – vivem seu sonho ou ambição.
A ciência diz que nossa espécie apareceu há mais de 60 mil anos. No relógio da vida, nos últimos segundos, ou nas últimas décadas, depois da Revolução Industrial e, mais acentuadamente depois da Segunda Guerra Mundial, quando se abriram as porteiras da destruição, guardando a falsa crença – ou conveniência - que a terra resolve todos os problemas que lhes acarretam os homens – tudo se renova. Não é verdade, os sinais estão chegando e de maneira um tanto grave, desde as alterações do clima – efeito estufa, destruição da camada de ozônio, tudo com um selo: a destruição da natureza de maneira avassaladora. Aqui, aos nossos olhos, as centenas de veredas hoje secas, ribeirões extintos e o Rio São Francisco em estado lastimável, testemunham a ação deletéria do homem, exclusivamente do homem. Há sinais claros, insofismáveis, de que a água começa escassear-se.
Aqui me encontro, agora, diante de um quadro preocupante e dele só posso dizer o que viram meus olhos, pegaram minhas mãos e sentiram meu coração ao longo de vinte e quatro meses de caminhadas, tudo para resgatar quarenta anos que deixei para trás, percorrendo o sertão sem a visão do terrível mal que já o rondava Devo falar para que se abra um tempo de reflexão que possa nos levar às ações efetivas em defesa do meio ambiente, lembrando como fomos tão omissos permitindo o plantio de eucaliptos em nosso cerrado, de maneira extravagante, sem o mínimo manejo e respeito às nascentes; sem questionar; como assistimos à devastação do cerrado para produção de carvão, tudo com o resultado à vista: a destruição de dezenas de importantes veredas e córregos, nos gerais urucuianos e serranos.
Sem a sensibilidade do chefe Seattle só consegui perceber, de fato, a extensão do desastre, quando não vi o lago da vereda Prata, a água correndo no Vieira, o Acari entupido de areia e, o que é mais triste ainda, o campineiro forçado a (des)viver na cidade.
Como demorei a enxergar tudo isso. Não tenho como me penitenciar, pois o mal já foi feito. Dou, no entanto, minha pálida contribuição como registro, amparado pelos amigos Dr. Luiz Gandra Bittencourt Filho, José Alvino, João Botelho Neto, Zé Guedes e muitos jovens – com eles somei as horas, a cada dia de trabalho e forças para lançar o grito do nosso sertanejo e a dor do nosso cerrado. Que sejam eles capazes de despertar a sensibilidade daqueles que podem reverter essa situação, tal como puderam destruir nossos cerrados e nossos rios. Refazer é possível, destruir não.
Por favor, leia este pequeno livro com o coração.


A INSPIRAÇÃO DO LIVRO

O meu primeiro contato com o rio São Francisco se deu em dezembro de 1953, na minha adolescência. Eu e mais cinco colegas da Escola Caio Martins de Esmeraldas, concluintes do primeiro ano do Curso Normal Regional, fomos enviados para colaborar na implantação do Núcleo Colonial Vale do Carinhanha – uma escola avançada do sistema, na divisa com a Bahia, às margens então inóspitas do rio Carinhanha.
Numa velha jardineira, deixamos Montes Claros e, à noite, chegamos à Maria da Cruz, nas barrancas do Rio São Francisco com a notícia de que a jardineira não poderia prosseguir na viagem, pois a balsa que fazia a travessia estava quebrada. O final da viagem teria que ser em canoas. Foram horas de terror no meio da noite, num mundo de água sem enxergar nada. Além do medo do desconhecido, nossas mentes eram povoadas por histórias de vorazes piranhas, lembradas naquela hora por um “gozador” dizendo que elas infestavam as águas daquele rio que não víamos. Foi uma viagem terrivelmente longa. Então, passei e naveguei pelo Rio São Francisco sem sequer vê-lo.
Três meses foi o período de nossa ajuda ao Núcleo – tempo que imprimiu em mim as primeiras e fortes impressões daquela bravia região, coberta de densas matas, cortada pelos rios Carinhanha e Cochá, misteriosos, bonitos e selvagens.
De regresso a Esmeraldas voltei a fazer contato com o São Francisco em Jacaré (hoje Itacarambi), a caminho de Januária, naturalmente por outra estrada da usada na ida. Pela primeira vez comi uma posta de surubim e a famosa melancia de coroa que chamara muito mais a minha atenção do que o rio. Contudo, mais adiante, na travessia em Maria da Cruz, pude deixar meus olhos espraiarem sobre aquela imensidão de águas plácidas. Uma imagem que não morreria jamais. Muito mais tarde voltei a ver o São Francisco, em 1957, na cativante Pirapora com sua cachoeira cantante. De lá me embrenhei no sertão urucuiano, onde vivi por quase três anos nas barrancas do ribeirão da Conceição, tributário do rio Urucuia, dos maiores afluentes do São Francisco. Começava, de fato, ali, a minha vida barranqueira. Por fim vim pousar meus ideais em São Francisco, em 1960.
No Urucuia e em São Francisco o meu contato com o cerrado foi constante: viagens e mais viagens – a cavalo, de carro e trator. Vivi o sertão com toda intensidade, mas em momento algum cuidei de registrar, no papel, tudo o que via e experimentava – estava ali por estar e gostar. Foi uma universidade - a universidade rural, do sertão, do cerrado, das coisas do mundo então inóspito, esquecido, distante, inacessível. O tempo passava e eu, sem nenhuma preocupação, era apenas parte dele, o cerrado, sem ter a noção exata da sua importância. Eu sentia tudo aquilo, mas não imaginava que seria importante estudar e divulgar.
Um dia o fruto amadureceu: despertei-me para a realidade de que o cerrado era muito mais do que só beleza, mistério e vastidões – era a vida, “O Pai das Águas”, como apurou, com muita propriedade, Ivo das Chagas. Daí, dei de ver, de maneira diferente, o rio São Francisco, tal como definiu o mestre Saul Martins, dando vaza ao seu sentimento e paixão barranqueira: “O rio São Francisco é a alma do barranqueiro”. Foi quando iniciei, num certo tempo, viagens à pequena cidade de Pintópolis, atendendo a um chamado do jovem vereador Estandislau Martins Álvaro (meu aluno na Escola Técnica de Agropecuária da Fundação Caio Martins, em Esmeraldas, onde fui diretor) para assessorar a Câmara Municipal daquele município. Em cada viagem – duas vezes por mês – observava as constantes transformações do cerrado, especialmente a flora. Depois fui me interessando pelo regime das águas, ou seja, como estavam os mananciais e acabei descobrindo um mundo encantador, mas, ao mesmo tempo, as ameaças que pairavam sobre ele. Interessei-me mais pela vida do homem em relação ao cerrado – o sertanejo, chapadeiro ou simplesmente sertanejo. Por fim fui descobrir coisas sobre a fauna. Tudo me deixou extasiado, boquiaberto – nunca imaginei que vivia às margens de um mundo tão fantástico. Passei, então, a uma observação sistemática utilizando, inclusive o recurso fotográfico para os registros mais significativos. Por não ter conhecimentos específicos quanto à fauna e à flora busquei o apoio dos amigos Luiz Gandra Bittencourt Filho, engenheiro agrônomo que serviu por décadas à EMATER de São Francisco e José Alvino, técnico do IEF, ambos comprometidos com o CODEMA e projetos ambientais no município. Fui beber na fonte das pesquisas de João Botelho Neto, um prestigiado e respeitado sertanista e historiador e, ainda, no conhecimento empírico de Zé Guedes - raizeiro renomado e amigo. Sempre procurei tê-los comigo, em minhas viagens, para melhor identificar e entender os problemas relacionados ao meio ambiente e à natureza do cerrado. O sertanista Marcelino Pereira também foi meu informante precioso, assim como o taxista João Quexedé; os caçadores Rui Mendonça e Leão, com seus conhecimentos de anos de vigias e “espera”, entendendo o comportamento e a vida dos animais – hoje eles não caçam mais,contudo, em compensação, podem oferecer informações valiosas sobre o mundo animal no cerrado e o sistema das águas. Eles viram dois mundos: o da fartura e exuberância e o da degradação, do fim.
Das primeiras viagens – programadas para servirem de informação ao Seminário do Meio Ambiente realizado em São Francisco, em 1997 – com o apoio de Luiz e Alvino, foi elaborado um substancioso relatório, com dezenas de fotografias, mostrando a degradação ambiental provocada por empresas plantadoras de eucalipto (é comum chamá-las de companhias de reflorestamento, com o que não concordo, porque destruíram todo um ecossistema, com dezenas de espécies nativas para plantar uma só, e alienígena) e pelos carvoeiros. Na área percorrida atestamos a destruição de dezenas de cabeceiras de importantes veredas, fontes de alimentação do rio São Francisco. Elaboramos um relatório e, com o apoio do Rotary Club de São Francisco, o encaminhamos à Promotoria do Meio Ambiente do Estado. Providências foram tomadas e, depois, começaram a surtir efeito e o grande ganho veio com a criação das Promotorias de Justiça de Defesa do Rio São Francisco no que não pode ser esquecida a ação decisiva do Procurador de Justiça Jarbas Soares Júnior, um apaixonado defensor do rio São Francisco.
Não parei mais. Entendi ser necessário muito mais do que admirar o cerrado, suas fontes, sua fauna e flora; a vida do sertanejo e, por fim, o nosso rio São Francisco, onde temos a alma. O mínimo que poderia fazer – e estou fazendo – seria divulgar e denunciar tudo que estava vendo, e registrar um pouco da nossa história e da sua manifestação cultural.
Tomei com a alma e o coração esta empreitada.

NOTA: José Pereira Guedes – sertanista de São Francisco. Faleceu no dia 26.05.2002. Não esperou, aqui, para ver o livro que ajudou escrever. Noutras Veredas, por certo, ri das coisas vividas e contadas nestas histórias.


PREFÁCIO

Domingos Diniz
Membro Efetivo e ex-presidente da Comissão Mineira de Folclore

Sertão é sempre um lugar longe, aonde nunca se chega, como não se atingem o horizonte nem o futuro.
No Rio Grande do Sul e em Santa Catarina não se diz sertão, mas o continente. Aqueles estados foram colonizados, em grande parte, pelos açorianos, ilhéus dos Açores, para quem o interior era o continente.
O sertão ficou imortalizado nas penas de grandes escritores. José de Alencar, em O Sertanejo; Euclides da Cunha, em Os Sertões; Afonso Arinos em Pelo Sertão; Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas. Em sua trilogia O Tempo e o Vento, onde se retrata o Rio Grande do Sul, Érico Veríssimo escreveu O Continente e Já Simões Lopes, Contos Gauchescos.
Nos anos 60, quando estavam em voga o poema-processo e o poema-cartaz, o poeta baiano Felix Augusto Atayde resumiu toda a realidade do sertão neste poema-cartaz:

ser tão sem
sem ser tão
tão sem ser.

SER TÃO SEM cercas nem porteiras. Vastas terras que não acabam mais, cortadas por morros e morrotes. Banhadas por lagoas e veredas, veredinhas e veredões de buritizais que se perdem de vista. Lá onde os córregos e rios nascem e vão engrossar as águas do São Francisco. Os gerais de terra frouxa, onde a anta sapateira deixa vivas suas pegadas e bandos de emas se esporeiam com os próprios ferrões que trazem debaixo das asas, para correrem mais e mais nas campinas. Ao meio-dia com o sol quente, nos roçados, enquanto o sertanejo planta o milho, pássaros-pretos, nas grimpas das aroeiras, cantam “enfincam, enfincam, enfincam / arranco, arranco, arranco”. Nos beirais dos ranchos andorinhas fazem ninhos e nas laranjeiras do quintal tico-ticos pedem chuva “dai chuva, meu Deus / dai chuva, meu Deus”. Nas primeiras águas de outubro, o relâmpago clareia longe, o trovão ribomba e a chuva cai mansa. Bandos de ariris revoam por sobre as lagoas e a vaca geralista, tangida pelo mito João Vaqueiro, chega à porteira do curral, berrando, berrando.
SEM SER TÃO pobre o mundo do sertanejo, que trabalha na sua roça de milho, mandioca e cana. Cuida da família e toca viola, nas noites de lua, sentado no batente da porta da casa. Canta o “rio abaixo” e nas noites natalinas sai com a folia de Santos Reis. Dança o lundu, o guaiano, a suça e o carneiro.
TÃO SEM SER tomado de assalto pelos exóticos eucaliptos, que degradam as veredas. Sem as carvoeiras que dizimam, de forma intensiva e extensiva, o cerrado, vegetação autóctone, o “pai das águas”, no dizer do professor e barranqueiro Ivo das Chagas.
Este é o sertão que João Naves nos mostra por inteiro. O sertão que ele e nós queríamos que existisse hoje. Utopia e realidade onde o homem conviva harmoniosamente com a natureza e a tecnologia moderna. O
sertanejo assistido de todas as suas necessidades básicas. O cerrado, um vastíssimo pomar e jardim sem dono. Os córregos, lagoas, bongues, veredas e rios coalhados de peixes. Os animais todos de pena e de couro livres dos caçadores e dos agrotóxicos. O sertanejo em seu mundo e sua cultura.
João Naves calça as botas, põe o chapelão e embrenha-se no sertão da beira do São Francisco à Serra das Araras, passando pelas beiradas do Urucuia.
Vai de vereda a vereda, de córrego a córrego, das várzeas aos picos dos morros. Depois, salta o grande rio. De Pedras dos Angicos vai até aos confins dos limites do município de cima para baixo e de oeste a leste. Uma viagem pela história e geografia da cidade de São Francisco.O autor veio para o sertão por dever de ofício, ainda imberbe, como professor da Escola Caio Martins. Afeiçoou-se-lhe tanto que do sertão nunca mais saiu.
Fincou suas raízes afetivas e profissionais nas barrancas do São Francisco. O sertão só pode ser entendido a partir da própria cultura sertaneja. João Naves entendeu muito bem esta assertiva e não se limitou aos compêndios eruditos. Foi mais longe. Viveu e vive a cultura sertaneja. Bebeu e continua bebendo na fonte da sabedoria da experiência. O resultado são estas páginas que o leitor vai percorrer e deliciar-se com um estilo gostoso, claro, objetivo e poético.
O autor tem um poder descritivo infinito. Translúcido como a gota de orvalho que goteja da ponta das folhas do arrozal. Descreve um episódio ou uma paisagem minuciosamente, pormenorizadamente. Com uma vantagem. Não se faz repetitivo nem enfadonho.
O mestre Aires da Mata Machado Filho sempre dizia, que uma prosa para ser boa tem que ter uma pitada de poesia.
A prosa aqui é bem temperada de poesia e humor. É uma moqueca de surubim gordo com pimenta-de-cheiro, coentro e dendê.
Ao ler uma descrição de uma vereda, por exemplo, o autor nos põe dentro da vereda. Sentimo-lhe o frio da água nos pés. As piabinhas mordicam-nos as canelas. A sucuri cobreja por entre as folhagens e capins à espera da presa que vem matar a sede no poço. Farfalham as folhas dos buritizais, cujos frutos maduros cor de vinho/esmalte caem na concha das mãos do leitor, oferecendo-lhe a maior fonte natural de vitamina A. Sentem-se o cheiro do mato, a aspereza das folhas de sambaíba, o doce do mel de jataí. A ciganinha ganha novo encanto no cabelo da morena de coxas roliças e grossas.
João Naves pinta o homem sertanejo com tintas psicológicas. Sem o homem o sertão não seria o sertão. Seria, na verdade, o “tão sem ser” do poeta. Figuras humanas interessantíssimas habitam as paginas deste livro.
Pinico Seriema, que fazia com que o criminoso voltasse à cadeia. Panta, o que teve de virar cachorro e acuar a onça, até que seu companheiro Bastião chegasse com a espingarda e matar a bichana. Tibúrcio, o que não pedia esmola, cobrava juros. “Todos lhe deviam”, dizia. João Quexedé, caçador exímio.
Epifânio e seu “ginete” (jeep) amarelo. O menino, cuja alma ficou lá nos gerais. Minervino, o mestre artesão. Clementino, que fez de um buraco, sua casa. Agenor Panta, que se lembra, com saudade, de todas as árvores do cerrado, citando-lhe os nomes.
Este homem simples, honesto e trabalhador foi expulso do sertão. Hoje, vive com a família como párias nas periferias das cidades.
O autor, como estudioso da cultura popular tradicional, não deixa de nos falar das danças, das lendas, dos causos, dos mitos e dos folguedos – São Gonçalo, reis-de-bois, reis dos cacetes.
DO CERRADO ÀS BARRANCAS DO SÃO FRANCISCO é, ao mesmo tempo, um poema épico, uma reportagem fidelíssima da realidade de uma região e um libelo contra os desatinos que se cometem em nome do progresso, do pós-moderno, da globalização.
Um grito a favor da fauna e flora, das lagoas, das veredas e dos córregos. Um grito em favor do homem sertanejo.
Um grito lancinante em prol do Rio de São Francisco, caudal que se definha, que agoniza, que morre lentamente.
Há que se gritar por este rio de nome do santo de Assis e que, neste ano de 2001, comemora 500 anos de sua descoberta pelos navegadores portugueses, no dia 4 de outubro de 1501.
Será que os nossos pósteros irão repetir estas palavras apocalípticas de João Naves?
– “Meu filho, esse imenso trilho de areia que suas vistas hoje contemplam, outrora foi um majestoso rio, o mais importante do Brasil, o então falado ‘rio da unidade nacional’.”

Belo Horizonte, 5 de agosto de 2001.


O Cerrado



A literatura disponível sobre o cerrado em nosso País não é muito farta. Nas escolas é raro encontrar alguma publicação, senão meros boletins, estatísticas, cifras e dados pouco compreensíveis ao cidadão comum. Ainda é muito pouco o que se tem sobre o meio ambiente. Gerações chegam e passam sem dar importância ao mundo em que vivem e que dele dependem, incondicionalmente. Nas escolas, ao invés de disciplina obrigatória, do núcleo comum, o estudo é inserido como matéria transversal. É muito pouco, sabendo-se que o homem não pode viver sem os recursos colocados à sua disposição na Terra.
A análise técnica e educacional sobre o tema é de suma importância, mas não é o caso que busco com este modesto trabalho, fruto de anos vividos no sertão e com o sertanejo. Por viver e conhecer sua vida, o seu modo de ser, de compreender e passar a gostar de suas coisas, acabei por me transformar num apaixonado pelo sertão. Daí resolvi retratar algumas lembranças neste pequeno livro.
A minha experiência se deu numa região compreendida por vegetação de cerrado, mata de transição (catanduva) e mata seca, com pequenas incidências de matas de galeria e de vazantes. Nela pude observar, por alguns bem experimentados anos, como se dá a interação do homem com a terra, a natureza; como acontece a manifestação de sua alma - costumes e tradições; como é sua vida no dia a dia.
O cerrado, foi o caminho e a vivência. O pouco que aprendi me permite dizer que é importante considerar que a vegetação dos cerrados tem grande capacidade de regeneração e oferece inúmeras outras possibilidades exploratórias em sistema ordenado, única maneira capaz de conservar esta área natural tão típica de nossa comunidade vegetal e que está à espera da implantação de técnicas capazes, também, de incentivar o seu aproveitamento econômico.
O conhecimento humano a respeito das tipologias florestais heterogêneas deve ser divulgado com o propósito de estabelecer um sistema capaz de aproveitar toda a potencialidade tropical, conviver com a heterogeneidade e conservar, ao máximo, a paisagem, o meio físico e a biota.
Dentro da riqueza da flora do cerrado, cabe destacar as plantas medicinais: diversas espécies que têm sido usadas pelos povos indígenas da região por muitos anos e agora estão sendo comercializadas no País inteiro, entre elas a sucupira-branca (Pterodon pubescens), que combate infecções; o para-tudo (Gomphrena officinalis) conhecido como o "ginseng brasileiro"; catuaba (Anemopaegma arvense); tida como energética; o barbatimão (Stryphodendron barbatiman) que é cicatrizante e muitas outras. A flora do cerrado tem mais de oito mil espécies de plantas, representando uma fonte incalculável de drogas de uso medicinal.
E não deve ser desprezado o aproveitamento econômico do cerrado na implementação de grandes culturas, especialmente de grãos.
Não tenho pretensão, nem conhecimento técnico-científico para discorrer sobre esses aspectos tão interessantes, mesmo porque, em muitos casos, vejo em certas práticas a degradação total do cerrado e, por extensão, as causas da miséria do sertanejo.
Fico, por isso, apenas com o registro de um mundo especial encantado... e ameaçado, terrivelmente ameaçado por circunstâncias diversas, além da ganância do homem, é claro.


GRANDE SERTÃO:VEREDAS, O UNIVERSO FÍSICO


Na página inicial do livro de Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas – tem-se o primeiro contato com o universo físico do grande sertão; não uma definição apenas, mas o quadro daquilo que é, na configuração física, e do que foi, na manifestação da vida de grupos sociais: uma extensa faixa de terra que corre das barrancas do rio São Francisco, à sua esquerda, até às divisas de Goiás, adentrando no Planalto Central.
No primeiro parágrafo, nas palavras primeiras, há o impacto da descoberta do sertanejo urucuiano - um místico, atado às crendices, abusões e à simplicidade de um viver - “o bezerro com máscara de cachorro é de mau agouro”. Ora, ainda hoje existe fazendeiro que sacrifica as vacas que dão cria a dois bezerros, pois, se na segunda cria repetir o nascimento duplo, o seu dono vai morrer. No mesmo parágrafo pousamos no sertão: é o primeiro contato, o encontro da trilha que abre caminho por aquele mundo sem fim. “Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem de montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá - fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeira de grossura, até virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniões... O sertão está em toda parte”.
Em 1957, em companhia de 11 companheiros, professores recém-formados, cheguei ao sertão urucuiano, às margens do ribeirão da Conceição, veia do Urucuia, no pé da serra da Conceição, beiço dos gerais que debruçam sobre vãos, freando nos boqueirões cravados de aroeiras, onde há quase um século passado reinou dona Joaquina, soberana de mais de 12 mil alqueires de terra. Joaquina passou para a história graças à pena do januarense Manoel Ambrósio, no livro “A Ermida do Planalto”. Ali chegamos para instalar um Núcleo de Colonização das Escolas “Caio Martins”, com escola, remédio, novas técnicas agrícolas e muitas novidades para trabalhar os sertanejos e seus filhos.
Encontramos no Urucuia os resquícios de um passado não muito distante, pois suas marcas ainda eram impressionantes - é que ali o tempo parece não correr, não se mede o dia por calendários, ou pelo nascer e pôr-do-sol. O tempo não corre, marca passo na solidão do ontem. Era assim. Os pastos careciam de fechos e criminoso vivia o seu “cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridades”. Aquela região era o refúgio intocável de bandidos e criminosos foragidos da lei. Que polícia poderia adentrar naquele império e capturá-los sem custas de muitas vidas? Conheci núcleos e famílias de foragidos. Gente mudada então. Vestida de respeito; honrados e abastados fazendeiros. A fama deles corria o sertão e vai daí eles serem os mais respeitados. Chegamos ao Urucuia, plantamos o pé na fazenda Conceição, mas careceu de trabalho antes. Foi necessária uma operação-limpeza, um desarmamento geral, com promessas de nova ordem, de paz e de progresso... e isto sensibilizava aquela gente, ignorante que fosse, a pensar, pois vivia cansada de entreveros e de tantas mortes. Mesmo assim não eram raros os tiroteios. Prova disto é que depois dessas providências, ali grassou, ainda, por alguns anos, a turbulenta festa de Santa Cruz, no Riacho Doce. Nove dias de ladainhas e terços; nove dias de muita cachaça e tiroteios. A festa era em torno de um grande madeiro - uma cruz enorme erguida na clareira que esbarrava nas barrancas do riacho do mesmo nome. Como marcos, na praça da grande cruz, em maior número que as velas das mulheres piedosas, eram as pequenas cruzes, sinalizando o local onde tombaram tantos cabras violentos... e inocentes. De perto vi um desses. Era dia de festa e até hoje não sei como sai ileso da confusão, correndo pelo carrasco, sem bagagem alguma e aliviado por encontrar um cavalo cheio de pisaduras que no pêlo montei e parti de carreira, lembrando do facão que quase me riscou o pescoço - tudo porque não quis beber pinga e sair para o “arrasta-pé”.
Na fase de transição - das lutas para a ordem - enfrentamos o temor do iminente ataque de um bandoleiro, conhecido por Perneta, que cercado de jagunços aterrorizava o sertão. Assombrava mais o fato de correr a notícia que ele “tinha um pato com demônio”, justificado por suas sensacionais fugas das volantes que tentavam pegá-lo. O bando foi desbaratado, mas o Perneta fugiu outra vez. Ninguém mais ouviu dele coisinha alguma.
Em 1958 conheci melhor o sertão. Os gerais insondáveis de veredas sem fim; os chapadões, os vãos, as campinas, várzeas e aquela gente urucuiana. Foi durante seis meses que viajei no lombo de burros, recrutando eleitores. Cortei sertão de fazendões de fazendas: Poleiro-de-Pato, Riacho-Verde, Riacho-Morto, Riacho-do-Mato, Buriti-de-Baixo, Buriti-de-Cima, Buriti-do-Meio, Vargem-da-Galinha, Cabo-Verde, Maiad’alta, Rodeio, Confins, Barra-da-Onça, Capão-da-Cinza e a Vereda do Chico Véio, com suas cinco léguas de mistério, beleza luxuriante, roncos de sucuri e muita solidão. Na vereda do Chico Véio de gente vi só três famílias. Miséria sem igual. Choupanas plantadas no começo do carrasco, de porta virada para a vereda, na entrada da relva baixa, antes da pindaíba, caminho das antas na carreira da sucuri. Barulho só o chuá das águas e a orquestração de estridentes araras e galegos sem valor. No terreiro, de terra branca e fraca, a rocinha de milho, de maior de um metro não ia, com espigas magras, chochas e o mandiocal que mais parecia um mangote de peregrinos com braços magros estendidos para o alto, implorando a misericórdia do céu. Veredeiros que não sabiam o mundo e corriam dos intrusos com medo de serem recrutados para a guerra, os homens. Mais pobreza assim, só no Riacho do Mato, onde morador pobre comia só milho pubo, descido com garapa de cana espremida em dois paus rústicos. Coitados que levantam ranchos no meio das roças, só para vigiar a plantação, dormindo no meio de bichos – deles, pior era o rato: o roceiro, de pés cascudos, que nem precata tinha para defesa das espinhadas ou tropeçadas em tocos, dormia sem abrigo de coberta. À noite, chegava o rato, sorrateiro, e ia roendo o couro grosso dos seus pés deixando-os em chagas vivas. Raiava o dia. O homem não podia andar. Eram conhecidos como os “parraxá, os pés espalhados.
Mais tarde, nas páginas do Grande Sertão – Veredas, reencontrei-me com esses catrumanos: “eram só mulambos de miséria, quase não possuíam o respeito de roupas de vestir”.
Deixei o Urucuia. Do chapadão onde o boi berra. Dos gerais que caem em vãos estendidos pelos meandros dos rios, das vargens fartas de lembrar os “nateiros” do grande Nilo. Fui montar morada “na formosa cidade de São Francisco - que é a que o rio vê com melhor amor” - como está no Grande Sertão. Nem poderia ser diferente. Carecia sim de tanto capricho, pois a formosa cidade era filha do rio, tomando-lhe, dele sim, o nome de existência.
Deixei o Urucuia de Chichico, Onofre Mangaba, Tanazo, Zé Branco, Pidião, Panta, Juca do Boi, Avelino e João Baiano, nomes perfilados no Grande Sertão. O Urucuia dos Secundos - sertanejos que habitavam em perdidos gerais, alimentando-se de restos de animais mortos, com o patriarca do grupo alisando o bacamarte caseiro de tiro no rastilho da pólvora - arma tão maluca como a dos catrumanos que se espantaram e causaram espanto ao Riobaldo. Gente que fazia sua pólvora, raspando salitre nas paredes das grutas.
São Francisco (Pedras dos Angicos, antes Pedras de Cima para diferenciar de Pedras de Baixo, Maria da Cruz), Januária (Porto do Salgado), São Romão (a formosa Vila Risonha de Santo Antônio da Manga de São Romão), companheiras de epopéias sertanejas através dos séculos, desde o combate entre os índios Guaíbas, bandoleiros e bandeirantes, até que florescesse a civilização. Uma civilização das grandes antíteses vista no Grande Sertão: Amor-Ódio; Deus-Demônio.
Em muitas passagens viu-se que o egoísmo, a gana do poder, a incompreensão, o desatrelo do coletivo, por parte de alguns; e o misticismo, a submissão ou ignorância, por parte de outros, foram as causas maiores de tantas desditas na vida daquele povo.
São Francisco: dos alagadiços, várzeas, ipueiras e lagoas... À margem esquerda do Rio do Chico, a terra perde-se de vista por gerais sem fim até esbarrar nos chapadões de Serra da Araras e aí ganhando outros planos rumo de Goiás ou esbarrando no rio Pardo; cortando o Acari, Vieira, Catarina até às beiras do Urucuia ou Areia. Tudo numa vastidão sem fim. Terras que abrigaram bandos dos facínoras de Antônio Dó, políticos (coronéis foragidos das refregas armadas de São Francisco), chefes de levantes; terras queimadas pelas patas dos cavalos da Coluna Prestes que a tudo destruía - “Quem foi que disse que a revolta envém, capano os home e as muié tomém”- até hoje o urucuiano teme a Coluna. Terras que abrigaram, também, Riobaldo Tatarana e Diadorim.
Antes, em 1871, aquele mundo era maior. Um despropósito. São Romão, Capão Redondo (hoje Santa Fé de Minas) e Paredão (onde morreu Diadorim), tudo era município de São Francisco. Era um mundo sem fim, onde jagunço grassava sem arrocho da lei. Antônio Dó foi um exemplo terrível. Um tormento para São Francisco e outras plagas: Brasília de Minas, São João da Ponte, Lontra, Serra das Araras (seu Quartel-General), São Romão, Januária e Paracatu, em Minas; Carinhanha e Cocos, na Bahia; Sítio da Abadia, Posse e Riachão, em Goiás - uma trilha por onde perlustrou Tatarana com os bebelos. Este, Riobaldo, conheceu Antônio Dó na Vargem Bonita, município de São Francisco, onde tinha fazenda, como conta o livro Grande Sertão.
Antônio Dó, jagunço por perseguição política; desafeto da polícia, vítima de muita incompreensão. Homem muito forte, pacato, porém de muita coragem. Sofreu humilhações de um delegado e, na própria Delegacia, acabou dando-lhe esporadas na cacunda. Facções políticas de São Francisco também tiveram participação. Dó foi para a luta muito bem armado, cercado de jagunços. Transformou-se no senhor dos sertões, o terror da cidade que invadia exigindo pesados resgates. O povo, quando ele se aproximava, fugia espavorido - abandonava tudo e se embrenhava no mato e lá ficava até que não mais notícias dele tivesse. As volantes partiam em seu encalço pelas trilhas do sertão: emboscadas e morticínio. Povoados e fazendas eram destruídos, quando se suspeitavam que davam proteção ao jagunço. O sangue lavou a terra e muita honra foi enxovalhada. Dó acabou-se à mão-de-pilão, traído por dois capangas que o acompanhavam na velhice. Por dinheiro só, que se dizia que ele tinha guardado... Mas as lutas ainda continuaram, pois Dó não era todo o perigo. Gaviões e Morcegos ateavam fogo em São Francisco. Prefeitos tomavam posse e eram destituídos. Muitos políticos fugiam para o sertão, abrigando-se de perseguições e pondo sua família a salvo. O Cel Oscar Caetano Gomes, prefeito eleito numa certa quadra, viu-se forçado a tornar-se um foragido de São Francisco - depois de forte tiroteio, no famoso “Barulho de 1924” - na fazenda Santa Cruz, onde desenvolveu importante trabalho social. Mais tarde, convidado pelo Presidente Olegário Maciel, teve volta triunfal, para dirigir o município como interventor. Isso fez por 14 anos, num regime forte que lhe deu oportunidade de restaurar a ordem e colocar São Francisco na senda do progresso. E veio a paz.
São Francisco, Januária - com os Luzeiros e Escureiros; Manga, com o Cel. Bem-Bem; São Romão, onde fazendas foram construídas com sangue corrido de inocentes. O sertão sem limites parecia não ter tréguas. “Viver é muito perigoso”.
Esse o sertão que conheci e que falo, sem arte e conhecimento maior de autoridade no assunto. Esse sertão urucuiano, onde o boi berra, esbarrando nas fraldas do Planalto Central por onde Riobaldo teve trilha na arte comovente de Guimarães Rosa. Um retrato, sim, senhor.
O rio São Francisco - “rio maior”- foi o ponto maximé de reverência do Grande Sertão. Das suas margens, passando pelas vargens inundáveis, ganhando planícies, campinas, as terras vão se elevando e embrenhando-se pelos carrascos nos gerais sem fim, cortadas de estradas brancas, de areia fina. E os olhos levam emoções ao coração. Veredas destampam-se em clareiras abertas, num inesperado: “o senhor estude: o buriti é das margens, dele caem os cocos na vereda - as águas levam - em beiras, o coquinho as águas mesmo replantam; dá o buritizal, de um lado e do outro se alinhando, acompanhando que nem um cálculo”. As palmas febriscadas para céu, num abrir de lanças para jorrar o verde tenro dos flabelos que cantam a canção do vento, o flap-flap que acompanha os gritos das araras azuis, vermelhas e amarelas; dos papagaios, das jandaias e periquitos arrelientos se aninhando no topo das palmeiras sem copa. A vereda é uma dádiva do céu. Na sequidão dos gerais, um oásis de muita sombra e água pura, branquinha de se ver o fundo. O buriti é vida. O homem põe morada onde tem água (como no Grande Sertão é nos rios que o roteiro de Tatarana está sempre ligado) - os veredeiros fincam choupanas de palha ao longo das veredas, onde criam gado na solta para o patrão; nas beiras de riachos, ribeirões e rios, onde podem plantar a rocinha de sustento com a sobra para catirar com o sal, querosene e se der, com o corte fazenda rústica, mais sempre cheia de cores. Até na beira das lagoas, onde bandos de carões, jaburus, inhaumas, garças, quem-quens, ariris, patos e muito mais voadores vão pousar onde há peixes com fartura. Os gerais vão esbarrar nas chapadas altaneiras - tabuleiros ou morros, de areia e argila, ou calcário e granito. Quando o sertão aponta para a Bahia, descendo o do Chico, no lado do Urucuia-território, os maciços calcários sobem do chão com suas escarpas e picos, que nem torres de catedrais, escondendo grutas escuras e profundas que já foram locas de índios. Só em Guarda-Mór, município de Januária, existem quatorze. E os morros famosos que indicam lugares: Itapiraçaba, Januária; Morro do Chapéu, Maria da Cruz; Itacarambi, a cidade do mesmo nome, antes Jacaré. Depois do grande maciço calcário, antes do morro Itacarambi, nos gerais mais secos, recoberto de canela-de-ema, sem água alguma, há uma passagem. Lá na cabeceira do Peruassu e do Carinhanha. É um caminho liso, sem fecho, trilha para a Bahia. Liso da Campanha, Liso da Campina, Liso do Suçuarão.
Pela margem direita do São Francisco o sertão é outro. Muita serra e pouca água; terra mais vermelha e de barro. Sem veredas. Um pouco do município de São Francisco, e mais Brasília de Minas, São João da Ponte, Montes Claros, Monte Azul, Janaúba, Grão Mogol e tantas cidades. Terras altas. É diferente do sertão urucuiano. Neste lado o progresso chegou primeiro e já faz tempo que acabou o vestígio do sertão / roseano.
Subindo pelo rio o sertão urucuiano some. Urucuia, Paracatu, Jequitaí, das Velhas e vai indo, subindo devagar. Lá na extrema de fim de gerais, onde no escorrer o caminho derradeiro do rio das Velhas, é que tem começo a história do Grande Sertão de Guimarães Rosa - nos gerais de Lassance.
Isso que vi é parte do sertão, do Grande Sertão. Não é todo. A terra e o homem ainda podem ser vistos com resquício do Grande Sertão. Não analiso o livro. Não posso, que é empreita maior. Mostro o que vi, senti e vivi. Foi lá que Riobaldo também andou. Sabe?
Assunta, agora, que o homem urucuiano, companheiro que tive por tantas eras, carece de uma lembrança. O que vi no Grande Sertão? O que vi vivendo? Misturam-se os dois. Guimarães Rosa, com sua arte viveu e reviveu aquele universo. Não tirou do nada, no Grande Sertão - recriou. Mais arte que antropologia, mas é uma síntese - o sertão e o homem, a gente vê. Do Urucuia ele repetiu, criou também, reinventou, fez jogo de vocábulos, burilando sintaxe que às vezes não se ouve, mas que encanta. Criou formas e bisou outras ditas de tantas bocas, repetidas ainda hoje, ainda que mesclado de costume e coisas de outros povos. É que, também lá a miscigenação é fato: mineiro-baiano-goiano e tantos nordestinos. Creia. O Urucuia foi refúgio de gentes tantas, nem se questiona de que horizontes. Recebe tudo e cria. O Urucuia é. “O sertão está em toda parte”.
O sertanejo urucuiano é bom, dócil, hospitaleiro, submisso, mas tem rasgo de brabezas - é só afetar os seus laços, seus entes e aderentes. Defende tudo até à morte se preciso. No conversar ele é minguado de palavras, quase monossilábico. Responde curto às perguntas e é pobre de comunicação, recorrendo a imagens, figuras e faz, muitas vezes, de uma palavra, a sentença que desejava. “É sim”. “É não”.
Às vezes a linguagem usada parece estranha - parecença só. Meus filhos e minha esposa, essa principalmente, eram novidades em Belo Horizonte, quando lá morei, com seu sotaque. Os garotos muitas vezes não eram entendidos pelos colegas de escola, quando soltavam pérolas como trisca, arriba, dilino, sussega, sprita. E lá, ainda hoje, no sertão, ouvem-se coisas como afacera e amaia, no trato de bois, e no falar comum, termos como lodaça, mandiga, treta, andaço, finfinho e a supressão de letras tão comum, como no caso de martelo e vale por martel e val. E ninguém fala corretamente o gerúndio: falando-falano; catando-cantano. As tônicas também são variadas – sótão, por sotão; pântano, por pantame.
O urucuiano vive de superstições, abusões, crendices; tem sua medicina caseira e sua arte própria. Tão isolado e distante, não poderia viver de outro modo. É um mundo próprio. No Grande Sertão, Riobaldo cisma com o demônio e a idéia do pacto o espanta e angustia, numa perseguição constante. Ele acaba por se arriscar a ir a uma encruzilhada, nas horas mortas, para tomar conhecimento da verdade. No sertão urucuiano dão notícias da lenda do Famaliá (o diabinho preso numa garrafa que já fez ricos muitos fazendeiros), o Romãozinho que ainda vive de estripulias nas fazendas dos gerais. O fazendeiro arrenega, mas não nega. Diadorim, de uma feita, ferido depois de um combate, afastou-se para se curar com raízes e folhas. O urucuiano tem receita para tudo. O receituário é grande, tão grande como o sertão.
Outro aspecto interessante de sua vida, é o das festas: as do ciclo natalino - folias, bois-de-reis, pastorinhas; as festas de São João, Divino Espírito Santo, São Gonçalo, São Sebastião, Bom Jesus da Lapa - quando mandam pelo rio barquinhos enfeitados de velas e com pedras para a Lapa. Na folia as casas do sertão ficam em festa. Saudação, visita da bandeira - entrada - e o agradecimento da esmola com as danças do quatro, lundu, baiana e catira. O tan-tan das caixas, o rem-rem das rabecas, volteios das violas, cheque-cheque dos reco-recos e balainhos. Harmonia bonita e doce, cheia de saudade. Folião de toalha enrolada no pescoço, chapéu pendido na testa e os olhos cerrados de sono e cachaça, no caminho do sertão.
Sertão é gostoso de se viver. Sertão é muita coisa. O livro de Guimarães Rosa um universo. Tenho que ficar aqui. Agora.
Fecho a porta desses gerais por onde acabo de caminhar com uma amostragem do sertão, por muitos lugares que Riobaldo e a Diadorim trilharam. Paisagens do livro de Guimarães Rosa. Sertão mesmo.

(1) O território do município de São Francisco tem hoje a área de 3.299,80 km2..


DEPRESSÃO SÂO-FRANCISCANA


Deixando o talvegue, na divisa dos municípios de São Francisco e Luislândia, onde outrora corria farto o córrego Guaíbas, se ganha, pela rodovia de acesso a Montes Claros, um altiplano rumo à cidade de São Francisco. Depois de passar pela serra da Bocaina, o ponto mais alto do município, com 805 m, as vistas alcançam o mais famoso cômoro daquele alto e dos vãos além, o que deu nome à Vila tangenciada pela rodovia: Vila do Morro. Depois, um declive suave até à ponte sobre o córrego do Morro, de minguadas águas e, dali, alcança-se a serra da Boa Vista – serra no modo de dizer, pois o que se tem é o beiço da chapada que ali desaba, de modo chanfrado, num formidável desvão que anuncia ao viajante, numa visão longa de sul a norte, a depressão do Rio São Francisco.
A serra da Boa Vista (bem de acordo com o nome), naquele local, sugere um ponto de espia: as vistas, ao longe, alcançam a curva do rio, a montante, um espelho refletindo o sol. À noite brilha aos olhos o luzeiro intenso da cidade de São Francisco quase debaixo dos pés, brotando da escuridão onde, outrora, reinaram densas matas. Muito além um maciço azulado, imponente paredão, quebra a linha do horizonte: a serra das Araras. Retomando o rumo do Urucuia os olhos correm numa linha espichada no horizonte, sem obstáculos de qualquer relevo, a quase voltar no eixo de partida.
A descensão da Boa Vista é o prosseguimento da serrania desbastada que desce de Montes Claros, observando a atenuação de todos os acidentes – “serranias que se arredondam e suavizam as linhas dos taludes fracionados em morros e encostas” (Euclides da Cunha, Os Sertões), seqüência de um ondear longínquo de chapadas.
O primeiro plano, após a decaída, passa liso sem qualquer acidente, senão o caixão do rio São Francisco que escorre, coleando as terras baixas em busca de seu destino final.
Na saída da vazante, no começo do grosso cerrado, a planície, como as estradas ali existentes, toma dois rumos distintos: uma linha segue para Serra das Araras, outra para Urucuia-Arinos.
Acompanhando a estrada de Serra das Araras, por campos levemente ondulados, chega-se a um paredão que debrua o cerrado que até ali se estende. Galgando-o chega-se a uma chapada numa planura a perder de vistas, baldeando rumo ao Estado de Goiás. De pouco tempo, ali, num cerrado pobre, de terra fraca e sem nenhum sinal de água, implantou-se uma colônia de gaúchos, hoje cidade: Chapada Gaúcha. A coragem e determinação daquela gente, que num lugar esquecido, desprezado, sertão árido, sem água, onde difícil seria viver até mesmo a lagartixa, num dizer regional, ali se plantou a vida. Nas voltas daquelas imensas paredes a natureza criou muitos vales que, olhados do alto, são verdes e planos, imitando baías que agraciam os mares. O lugar ganhou nome local: “os buracos”, vivenda dos mineiros – lá na chapada, de maioria, os gaúchos. Os primeiros voltados para a cria de animais, pelas frescuras do ar e passagens de águas que facilitam o brotar e rebrotar do capim de raiz, favorecendo engorda do gado na solta. No alto só a agricultura de extensão, no caso a soja, a mais propícia, facilitada pela planura de sumir no horizonte, possível de se trabalhar com muitas e muitas máquinas ao mesmo tempo.
Pela esquerda, a planície, vazada por suaves depressões e talvegues das veredas Prata e Caldeirão, passa pelo caixão do Acari que faz lembrar o rio Jordão pelos meandros que é forçado descrever, tanta é a planura das terras que corta, para escorrer suas águas buscando o rio São Francisco; dali segue, ainda, atravessando um cerrado de extravagantes riqueza e beleza, ultrapassando o Riacho Fundo (Pintópolis), agora minguado de água, até despencar nas quebradas que se estendem depois da fazenda Jatobá. É o segundo degrau da planície que lá trás, na Boa Vista, teve a primeira rebaixada em terras são-franciscanas.
A quebrada do Jatobá é conhecida como cais, e deva de ser por evocar os cais do rio São Francisco, imensos e carcomidos barrancos. Uma paisagem estranha, diferente do comum no sertão, com aspecto lunar: uma linha que torneja o cerrado, lá embaixo, modificando a paisagem com seu capricho.
O talude é de pobreza vegetal. Na ponta da chapada, a terra parece despencar como água de uma enorme bacia – escorrega de vez. Em uns pontos a queda é abrupta, noutros com uma leve inclinação. O solo é estéril, quase limpo, pouquíssimas árvores, tortas, anãs, com raízes agarradas nos veios de terra incrustada no meio do cascalho ou pedras; a vegetação rasteira é esparsa, poucas touceiras de capim de raiz, tão teimoso que é. Em alguns trechos, totalmente lavados, sem vegetação, percebe-se a ação do calor e do frio – dia e noite – moendo o tauá, granulado em partes e, noutros, feito em pó matizado – vermelho e ferro. Os sinais da enxurrada lavando aquela terra sem cobertura estão à mostra: rasgos vermelhos, desnudando pontas de pedras negras e veios de cascalho coloridos; rasgos e crateras disformes escancaram a terra vermelha em diversos pontos, como bocarras abertas ao céu. Não são tantos os buracos e nem eles crescem muito porque a chuva é pouca no cerrado que, sendo conservado, não oferece o risco das volumosas enxurradas possíveis de provocar a voçoroca.
Antes da caída, de vez, chega-se a alguns degraus - socalcos que vão se formando com a ação dos anos, onde surgem pequenas moitas de sempre-vivas - mimosas flores agrestes que sugerem ser de pano de tão secas, porém incrivelmente bonitas e singelas. Nesses socalcos os olhos e as mãos podem acompanhar o trabalho da natureza sobre as pedras, a terra e o mato. Faz lembrar Euclides da Cunha em Os Sertões.
“Sem linhas de cumeadas, as maiores serranias nada mais são que planuras altas, extensas rechãs terminando de chofre em encostas abruptas, na molduragem golpeante do regime torrencial sobre o terreno permeável e móvel. Caindo por ali há séculos as fortes enxurradas, derivando a princípio em linhas divagantes de drenagem, foram pouco a pouco reprofundando-as, talhando-as em quebradas que se fizeram canyons, e se fizeram vales em declive, até orlarem de escarpamentos e despenhadeiros aqueles plainos soerguidos...”.
O vão que se abre, descido aquele talude, ultrapassa o rio Urucuia, o rio moreno de Guimarães Rosa, e se estende, de um lado até alcançar as fraldas das Bocainas, em Arinos, onde, tempos passados, Afonso Arinos exaltou o “buriti perdido”; pela frente, passando por Riachinho, esbarra nas serras do Tatu, Confins, Novo Mundo e Santo André, onde, ganhando a chapada vai além em terras de João Pinheiro e Paracatu até se perder no Alto Paranaíba e escorregar para o Planalto Central; tendendo à esquerda, tangencia as linhas das serras São João do Boqueirão e Conceição, ganhando, depois, as alturas das campinas de São Romão, voltando às barrancas do rio São Francisco – a montante Pirapora e a jusante São Francisco.
Ao longe, na linha do horizonte, aquelas serras se confundem com o céu, azuladas que ficam. É uma paisagem fascinante, bela, profunda, parecendo encerrar um quê de mistérios. O cais, ali, é de modo coleante e extenso. A estrada São Francisco-Urucuia (Brasília-DF) corta-lhe o meio, descendo em curvas e rampas suaves. Tomando-se a estrada como eixo, tem-se que o cais debruça para os dois lados, e, tornejando, no fundo de suas reentrâncias, vai formando pequenos vales encurralados que permitem a ressonância dos gritos do menino arteiro ou do boiadeiro em busca da rês desgarrada. É de se ver, mesmo na aparência de solidão e gradual decomposição, como é belo e chocante o cais. Dá sensação de ruína, coisas desgastadas pela ação dos anos, como o nariz de esfinge ou beiradas de pirâmides do milenar Egito. É corpo descascado, pelado, exibindo parte das entranhas. Não fossem as poucas e teimosas árvores e as touceiras de capim, as jazidas de pedras e veios de agregado cascalho, toda aquela encosta se abriria num só rasgo, numa imensa garganta vermelha, toda manchada de sangue, o sangue da terra.
Da espia vêem-se, ainda as copas das variadas árvores do cerrado, com clareiras abertas a esmo - umas naturais outras resultantes da lâmina do machado para dar origem ao carvão, de pouco que seja, tudo denunciado pela fumacinha subindo ao céu, em pontos diferentes. Pouco é o sinal de vida - pontinhos brancos por onde corre o ribeirão do Bonito, o que deu nome à fazenda que se estende por boa parte daquela depressão. Por fora não tem água, por isso rancho nem é presença, só aparecendo mais além, nas proximidades dos córregos Riacho das Pedras, Gameleira, Tabocas ou já nas barrancas do Urucuia, que, descrevendo uma grande parábola, desce voltando rumo ao cais para ganhar o rio Grande dividindo as terras de Urucuia e Pintópolis.
É interessante registrar, depois dessa viagem, o que resulta quanto aos recursos hídricos, no grande cerrado, na margem esquerda do rio São Francisco e as matas secas ou catanduvas, na outra margem. No primeiro há água com abundância, brotando no cerrado, dando forma e vida a formosos rios: Paracatu, Urucuia, Pardo, Pandeiros e Carinhanha, e um sem número de exuberantes veredas, às dezenas (não considerando, é evidente, a degradação que tem sofrido, minguando, por isso, suas águas). No outro a pobreza hídrica: só córregos temporários, muitos extintos há anos.
E, retrato feito, conclui-se: como foi generoso o Criador nos dando tanta vida; como tem sido egoísta o homem, predador compulsivo, destruindo-a.


AS ESTRADAS


Tempos voltados, antes da chegada dos veículos automotores, as estradas eram próprias tão somente para os andantes, cavaleiros ou para passagem de sonolento carro de bois. Trilhas que, de costume e necessidade, coleavam os córregos, veredas ou vertentes, para não fugir das águas, pois ninguém se aventurava nas longas jornadas varando o sertão sem a certeza de suas frescuras por perto.
Nos carros de bois ou tropas de muares, indispensável era a tralha da cozinha: panelas, chocolateiras, canecas e pratos esmaltados, garfos e colheres; o mantimento – tiras de toucinho, sal, carne-seca, arroz, farinha, rapadura e pó de café. Tudo necessário, pois mais do que uma viagem, quando jornadeavam de Urucuia ou de distantes regiões perdidas no vale do ribeirão de Areia, para as Pedras (São Francisco) era uma jornada de quase um mês – nessas viagens o carro de bois vencia, no muito, quatro léguas por dia. Cada viagem era um acontecimento na fazenda, de partida. Os carros levavam de tudo para comercializar: feijão, arroz, farinha de mandioca, rapadura, peles de animais silvestres, penas de ema, mamona, algodão, queijo e requeijão; toucinho, ovos, galinhas - o sertão abastecia a cidade. Retornavam levando o que não podia ser produzido no sertão: sal, querosene, creolina e arame – uma novidade que poupou matas e mais matas de aroeiras que eram transformadas em achas para levantar cercas e currais, no tempo da fartura. Viagem muito penosa aquele arrastar por bancos de areia, subindo nos cais cravados de pedras ou avançando pelos cocurutos de chapadas secas, pasto das seriemas. No tombar do sol, os pousos à beira das veredas, onde se armava a tenda da cozinha, levantando-se o poiá ou fincando forquilhas sobre a areia branca, em que logo se colocava a panela, de fundo preto, cascuda, o que era comum por ser aquele serviço de cozinhar, no comboio, sempre de homem desacostumado com a tarefa de arear. A comida, no almoço, era de sair ligeirinho, mas cabia uns dedos de prosa sobre a viagem, o que fariam na cidade das Pedras ou para derramar causos do sertão, da vida.
Nas noites era feita a diferença: espichavam as conversas e ensaiavam cantos tristes à beira do fogo, para, depois, se estenderem sobre a relva, cobertos pelo manto das estrelas.
Estradas, caminho de cavaleiros, escoteiros ou em grupos, em jornadas de viagens comuns ou nas grandes romarias.
Já fiz viagem de romeiro. Foram dois dias para chegar ao povoado de Serra das Araras, onde singela igrejinha guarda, até hoje, a imagem de Santo Antônio encontrada no alto da serra ali na frente do povoado empinada, cheia de buracos vermelhos nos taludes, mais nua que vestida de vegetação por obra de muitas pedras. Viajei por uma estradinha estreita, bonita, coberta de areia, branquinha, quando alcançava as cabeceiras ou travessias de veredas, ou então como ouro, no cerrado aberto. Difícil era ver barro, só mesmo nas barrancas de córregos maiores como o Feio e o Catirina. A viagem de romeiro não tinha pressa. Era sair para chegar, quando desse, pois de tudo ia nos teréns do comboio. Dava de chegar numa vereda bonita, armava-se o acampamento: a fogueira era ajeitada e os espetos logo cobertos de nacos de carne, geralmente (naquele tempo) de dois pêlos; punha-se a bebericar pinga, enquanto o violão plangia melodiosos acordes que subiam às palmas dos buritis para sacudir o sertão.
O tempo passou e as estradas não são as mesmas, mesmo as vicinais, obras das prefeituras. Antanho eram apenas duas de uso dos carros movidos a motor, as outras todas cavaleiras ou trilhas de carro de bois. Hoje são tantas que parecem veias riscando o sertão. Tem delas que chegam a passar sobre as outras em muitos pontos – veias brancas entrelaçadas no verde capim de raiz. Pode-se ir a um determinado lugar viajando por dois ou mais ramais – é de passar, a estrada, sempre, na casa de um bom eleitor. Mesmo essas estradas são melhores que as antigas, servindo ao tráfego de ônibus, caminhões das carvoeiras ou carros pequenos – não se vê mais, por elas, o carro de bois que ficou resumido aos pequenos trabalhos nas fazendas – só por ali mesmo.
Estradas maiores, bonitas, imponentes, com grossas camadas de cascalho e levantadas do chão (grade) são as que rasgam o cerrado para chegar a Chapada Gaúcha e de lá para Januária e Arinos – quer dizer para o Brasil todo; outra vai rasgando sertão para o Urucuia, passando por Pintópolis, por onde corria, antes, carro-de-bois e tropas de mulas. De Urucuia a bonita estrada abre galho para romper rumo a João Pinheiro, Riachinho, Bonfinópolis, Pirapora e outro ramal segue para Arinos, Brasília-DF, Unaí... É estrada de não acabar, com enormes pontes de cimento. Postes altos ganharam das árvores ao longo das beiradas das rodovias, levando energia para o sertão, onde antes só se conhecia luz, aforante a do sol, a das candeias alimentadas pelo óleo de mamona, depois, muito depois, pelo querosene. Tempos mudados. Diz-se, dos mais entendidos de Governo, que era coisa de Israel Pinheiro, que ali fez tantas mudanças.
Melhorou ou tornou o mundão bem pior? Quem sabe? Pode saber o que o vive, todo dia...
A estrada de hoje, resultado da engenharia moderna, não serpenteia em busca de córregos e veredas, nem precisa livrar-se dos buracos e morrotes – ela é quase sempre reta. Tem cascalho de todo tamanho, fininho de brilhar ao sol com um xibiu ou grande de estrondar no fundo do carro, quando levantado pelos pneus; não tem as surpresas de tantas curvas, onde sempre se esperava uma nova paisagem para ter que se assombrar com tanta beleza, mas retas de sumir de vista e dar cansaço nos olhos de até provocar cochilo.
É tudo sem graça e diferenciação? Qual o quê. A gente tem surpresa, pois os bichos do cerrado vão se ambientando às mudanças. Para uns, muito ruim, pois desacostumados com os carros, principalmente à noite, quando são "hipnotizados" pelos faróis, têm a vida ceifada; outros, impulsionados pela necessidade da sobrevivência mudam de hábitos. A pomba-verdadeira, em tempos passados, mais de comum ficava entretida, enchendo o papo com as frutinhas silvestres; não era vista beirando as estradas, só de longe para dar de apreciar a sua elegância de vôo, sempre acompanhado do comentário: "que arisca!" Hoje é comum encontrá-la em bandos, ao longo da rodovia de onde só levanta o majestoso vôo com a chegada dos carros, mas não é nem mesmo aquele vôo arisco, de ir longe, ligeiro como um tiro, tão cantado pelo sertanejo - rufla as fortes asas um pouco ao alto e volteja logo ao leito da estrada sem mostrar temência do objeto barulhento. A muitos escapa o motivo daquele procedimento – na verdade, grande parte dos ali passantes, nem dá por conta de coisa alguma -, mas para o atento sertanejo logo foi encontrada a razão da mudança, observador que ele é da vida que o cerca: " a verdadeira aquieta, ali, pra catá a soja ou milho que cai das carroçarias dos caminhões...". É isso, os grãos produzidos na região avançam muito à capacidade dos velhos carros de boi, onde eram transportados em sacos. Hoje há imensa fartura nos campos de sumir de vista, nas chapadas de além Serra das Araras, em lugar antes ermo que não servia de morada nem mesmo para catengo. Daquela sequidão, por obra de gaúchos trabalhadores da terra, como gigantes, saem toneladas e mais toneladas de soja e milho, nos nunca vistos, antes, caminhões graneleiros. E benditos buraquinhos nas carroçarias, pequenos por onde escapolem grãos de soja e milho, que vão encher o papo de centenas de verdadeiras. E mais precisão, o que sempre tiveram elas: “verdadeira necessita inguli pedrinhas pra mode limpá a muela”. O cascalho que forra as estradas, hoje, propicia a catação das pedrinhas sem esforço de ciscar beira dos córregos, sujeita de ser surpreendida por sucuri ou outros predadores.
O carcará também mudou de costumes. Desacompanha um pouco o gavião que fica mais de espia no cerrado, lá no píncaro das maiores árvores. Qualquer sinal de fuminhos ascendendo leve ao céu, resultado do início de uma queimada no cerrado, percebe-se as revoadas dos gaviões. O instinto lhe preparou para a caça do desespero: bicho miúdo - voadores, roedores, rastejantes, ou que fosse -, quando deixava sua toca ou ninho, em fuga desesperada, em razão do fogo, tornava-se presa fácil das fortes e penetrantes garras e dos bicos que nem ferro do gavião. Comida garantida. Hoje se vê o carcará, não nas alturas, mas como a “verdadeira” saltitando ao longo da rodovia, quando, depois de uma chuva mansa, chegam as patrolas para alisá-la. Revolvida a terra, desenterrados são os bichinhos escondidos do mundo – anelídeos nunca vistos, muitos que nem nos damos conta, sem saber de sua existência: ali ficam os carcarás, como galinhas, ciscando e bicando até encher o papo. Tem mais: os danados, como ave de rapina que são, espiam a rodovia, toda manhã, para descobrir o que fez o carro com o incauto bichinho do cerrado, à noite, e, quase sempre, ali está a se fartar de carnes estraçalhadas de um coelho, um preá ou até mesma de uma raposa.
Na passagem, além daquele espetáculo novo no sertão, dá para sentir a doce e agradável fragrância exalada das raízes cortadas, um perfume guardado no fundo da terra, só para as coisas ali existentes. Então, sente-se o gosto de mais vida, mais pujança, mais frescor do mundo que nos parece, às vezes, tão árido. Terra molhada, terra fresca, ninhos de insetos, raízes tenras ou mais fornidas, capim macerado – de tudo, um perfume que a poucos é dado sorver fundo enchendo os pulmões para saciar-se na virgindade da vida, de como ela veio de séculos e séculos...


RANCHINHO


Nos primeiros tempos em que vivi no Urucuia, uma visão que muito me machucava era a dos ranchinhos fincados à entrada de veredas, nos boqueirões, nas abas dos córregos ou nas altas barrancas dos ribeirões. Uma visão triste, solitária, com jeito de abandono. Tinha para mim que vida dos sertanejos era pior que a índios, que, pelo menos, viviam em grupos, numa comunidade organizada, com padrões definidos. No ranchinho, o sertanejo estava só, esquecido, abandonado: ele a mulher e um monte de filhos. Olhava a terra que ele tinha para plantar, que dó: tão pouca de cultura e mais de areia branca. Produzir mesmo só mandioca, com mais vantagem e, em certas faixas, o feijão catador. O milho era só amostra de espigas desdentadas, pela pobreza do solo. Possível de ter uma moitinha de cana e covas de banana.
Compungido eu escrevia páginas usando o expressivo título: O Homem das Choupanas. Carregava no sentimento de dor diante da pobreza que via. Eram os tópicos principais: A Necessidade da Queimada; A Choupana; Cooperativismo-nato; A Necessidade Financeira; Família Grande; As Catiras; Supertição; A Baiana; As Festas; A Saúde; A Educação e o Amparo do Povo.
Lendo o que escrevi no fim da década de 50, posso sentir como era minha angústia e como buscava caminhos, imbuído de nobres sentimentos de educador, ainda que tão jovem, um menino, quase.
O tempo passou, o mundo se transformou. Hoje lembro de tudo e...
A maioria dos ranchos que visitei e horas passei, ficava nas orlas de veredas. Tomado de tanto sentimento de dó, não atentei para alguns fatos que hoje, revivendo na memória (e na saudade), posso melhor entender e me consolar daquela tão imprópria comiseração.
Vou tomar a lembrança de um caso: o rancho estava na beirada de uma vereda, no meio do cerrado. Pois bem, água havia, sempre, com fartura, porque bravo, rico e virgem era o sertão, nas inóspitas cabeceiras das veredas, com água brotando a fazer marulho. Tinha ele a fartura da pindaíba,
aroeira ou sucupira para fazer a armação do rancho e de palhas para cobri-lo e fazer os tapumes. Do buriti ele tinha a matéria prima para fabricar seus móveis – modestos, mas adequados – camas, mesas, bancos ou redes. O chão era batido. Não ficava muito em casa, pois tempo maior ocupava na rocinha, no mato caçando ou pelos cerrados apanhando frutas para se suprir de vitaminas ou raízes para preparar xaropadas. Podia ser vaqueiro de um fazendeiro de morada mais longe e ficar por ali, nos gerais, assuntando gado da solta: um pouco de sal hoje, uma olhada, se preciso, em caso de bicheiras – muito raras, porque era mínima a incidência de pragas na chapada, de clima seco. Era deixar o tempo escorrer. Vinha sol; ia sol. Uma vez por mês a imensa lua a banhar de luz prateada a imensidão – ao longe as copas das árvores retorcidas do cerrado davam de parecer luzinhas balançando e do alto dos buritis, os flabelos, nas cantigas da brisa da noite, faziam balé como fantasmas prateados suspensos no mundo. Se a lua não tinha seu tempo, horas antes de colocar o cansado corpo na rede ou no abençoado catre, para aumentar a prole do mundo, ele podia divisar as milhares de pintas no céu, de parecer cocás, infindáveis, lá longe, cobrindo o manto negro do sertão: miríades de estrelas. Na vereda, uma vez por ano, tinha a fartura do fruto vermelho do buriti: de roer, de fazer licor, vinho e doce. Os meninos tinham as graças dos brinquedos, pequenos artesãos na maciez dos talos das palmeiras. Indo para o cerrado, a imensa fartura, variada no correr do ano: jatobá-do-campo, pequi, murici, cagaita, mama-cadela, cabeça-de-nego, cajuzinho, baru, mangaba, bacupari, goiabinha, abacaxi-do-cerrado, canafiche, coco-indaiá, coroa-de-frade, grão-de-galo, jurubeba, murta, sapotá. Raízes, cascas e flores, um sem número para atalhar seus males de saúde. Tudo com abundância e sem ter que despender um tostão sequer, nenhum – só bastante seria andar, conhecer e buscar.
Homem da Choupana cobria minhas fantasias. Talvez por vê-lo num ranchinho rasgado pelos raios do sol ou da lua, e varado pela chuva; talvez porque não tinha luz elétrica, um radinho para ouvir músicas, notícias ou novelas... talvez porque não fosse sua casinha de tijolos, bonitinha, rebocada e branca, coberta de telhas de barro, protegida de bichos peçonhentos ou insetos; talvez porque ele não fosse como eu, ou pensasse como eu.
Hoje, quando vejo o sertanejo que veio para a cidade, que deixou seu ranchinho (choupana como imaginei cheio de dó), ainda que tenha uma casinha dada pelo governo - de tijolos, caiada, com telha de barro e luz -, o que vejo em seu rosto é a profunda tristeza de quem está desamparado no mundo, com a sua alma vagando pelo sertão.
Como estava tão distante de enxergar a felicidade, a alegria, a paz, a liberdade e o prazer na vida do Homem da Choupana, em seu ranchinho de palhas, soprado pela brisa da vereda no meio de uma campina, no meio do mundo, debaixo de imenso e profundo céu. A vida é o que é e não o que se
tem.
Ou “viver é uma predestinação”?



O BURITI

“Buriti, minha palmeira,
Lá na vereda de lá:
Casinha da banda esquerda,
Olhos de onda do mar”.

Guimarães Rosa –


Há de se ver nos gerais a beleza que se forma, quando se esbarra em certas depressões ou alguns vales: ali prospera o buriti, a bela palmeira para cima de vinte e cinco metros de altura, capaz de fruto carnoso, oleoso, de cor castanho-avermelhada, quando maduro. As palmeiras, ajuntando-se de comprido, no jeito de fila, acompanhadas de embaúbas, pindaíbas e a vegetação de moita, formam, num imenso brejo, o paraíso dos gerais: as veredas. Ali plantadas como divisoras de cerrados, elas se transformam em bacias recolhedoras das águas absorvidas pelos platôs adjacentes, funcionando como vias de drenagem e, pelo aterro gradual, aliado ao tipo de solo e à umidade existente, ganham forma típica de floresta, com espécies características, de porte não muito desenvolvidos, conhecidas como matas-de-alagado.
As veredas têm história no sertão. Passam dos olhos e do coração dos sertanejos, suprindo seus quereres e necessidades, para invadir a sensibilidade de poetas e escritores e arrancar tons de músicas de violas - são testemunhas de passagens e travessias. Não se contam os sertões, os gerais, se não beber da cristalina água, sorver o ar puro, se fartar do verde luxuriante e tomar na face os beijos da brisa, tudo o que forma o quadro paradisíaco dos gerais - as veredas.
Guimarães Rosa, no seu maior romance – e o nome já diz tudo – Grande Sertão: Veredas – escreve e descreve, em quase todas as páginas, o nome e as impressões: buriti, veredas. E o faz com jeito de ser do sertanejo: “... e demos com a primeira vereda – dividindo as chapadas -: o flaflo de vento agarrado nos buritis, franzindo no gradeal de suas folhas altas; e, sassafrazal – como o da alfazema, um cheiro que refresca; e aguadas que molham sempre. Vento que vem de toda parte. Dando no meu corpo, aquele ar me falou em gritos de liberdade.”.

Afonso Arinos destacou o buriti como um herói, de porte gigante, a contar histórias como o “Buriti Perdido” em PELO SERTÃO.

“No meio da campina verde, de um verde esmaiado e merencório, onde tremeluzem às vezes as florinhas douradas do alecrim do campo, tu te ergues altaneira, levantando ao céu as palmas tesas, - velho guerreiro petrificado em meio da peleja!”.

E, com uma singeleza sem par, em curta sentença, ele foi capaz de cantar ao mundo, toda a beleza escondida (ou perdida?) do buriti:

“Poeta dos desertos, cantor mudo da natureza virgem dos sertões, evohé!”.

E quando escrevia esta página sobre o buriti, com o meu coração todinho nos gerais, sentindo o “vento que vem de toda parte”, tive a sorte de encontrar um recorte do jornal Estado de Minas, 12.06.90, que me fora passado pelo amigo Dirceu Lelis de Moura, outro amante do sertão. O recorte trazia o texto “Buriti, a Palmeira Sagrada dos Gerais” de Domingos Diniz, barranqueiro de Pirapora. Uma bela descrições das veredas e do buriti, uma página de derramado amor à sagrada palmeira.
Passou-me, ainda, pela lembrança, o nome de Audálio Lisboa, um januarense-sertanista que foi diretor do Núcleo da Escola Caio Martins, fazenda Conceição, Urucuia, no final da década de 50. Ele desmanchava e construía o buriti em palavras, soberbo de paixão e encantamento, mostrando suas utilidades, ou mais, de como ele era de ser na vida do sertanejo. Daí, desde então, o buriti caminhou no meu pensar e pousou no meu coração.
A relação do homem urucuiano com o buriti é do nascimento ao morrer. Dele faz sua casa, seu berço, sua cama, mesa e cadeiras, o chapéu (indefectível e inseparável chapéu, pois lá, quem anda sem ele é considerado
doido, o que vale dizer tratar-se de mais um exemplo de sabedoria no trato da saúde que recomenda ao homem manter os pés quentes e a cabeça fresca), a capa (carocha), corda, laço, cesto, balaio, gaiola, brinquedo, a rede que vai levá-lo à última morada e a cruz que vai marcar seu leito eterno. O buriti ainda lhe dá o fruto saboroso para licores e doces.
E diz Domingos Diniz:

“Da medula extrai-se uma fécula parecida com sagu, muito usada pelos índios; do tronco ou espique tiram-se talas para cercas, para fazer ninhos de galinha. Do pecíolo – popularmente chamado ´braça´ pelos sertanejos – faz-se variado artesanato (gaiola, alçapão, brinquedos, miniaturas dos vapores do São Francisco). Da folha, o broto ainda fechado, tira-se a seda, fibra resistente para fazer rede, cabestro, corda para usos diversos, bocapi, esteira. Com as folhas maduras, tiradas sempre na lua crescente, cobrem-se as casas ou ranchos. Da popa faz a saieta (ou sageta ou sagita) – depois de seca ao sol, junta-se-lhe rapadura ou açúcar; com a água quente ou fria obtém-se a jacuba. Do caule extrai-se um líquido adocicado que os sertanejos dão o nome de vinho. Da amêndoa obtém-se um óleo, uma das maiores fontes de vitamina A. Da espata da palmeira faz-se o barrileiro, onde se faz a decoada para o sabão. Usa-se, ainda, para bicas de água”.

Zé Guedes completa: a “carrasca do buriti serve para mulher bater roupa”.
Buriti, vereda, água - vida dos gerais. As veredas estão para os gerais assim como o oásis está para o deserto. No oásis a tamareira, raízes ficadas em dadivosos e abençoados poços; aqui, o buriti - o que anuncia onde nasce água, a fonte da vida, que vai escorrer e lamber cerrados para formosear-se em rios, como o nosso mais amado São Francisco.
Os anos passaram e hoje me encontro às voltas com os problemas que envolvem o cerrado, as veredas, o buriti, tudo correndo sério risco de extinção – e isso já contava Domingos em sua página, nos idos de 90, sobre imensos buritizais no trecho entre Pirapora e São Romão, dizendo:
“(...) à margem esquerda do São Francisco, a vegetação do cerrado não há. Os buritizais despidos de suas folhas. As veredas tornando-se melancólicos filetes d´água. São mais de 150 quilômetros de eucaliptos e carvoeiras.”


AI DAS VEREDAS!


O cerrado, se sabe, é o “pai das águas” do nosso grande Rio São Francisco. Vêm dos gerais todas as águas que o alimentam, entra ano e sai ano – quinhentos anos de tempos passados. Podem ser pequenos filetes, escorrendo nas calhas esquecidas, naqueles capãozinhos que cortam as campinas, mostrando verdura e frescura. Dá também de ser daqueles de mais volume e de mais alto chuá, rodeando raízes de buritis e embaúbas sacudindo as ramagens variadas que disputam as frescuras de água para ganhar vida em formosas veredas – um poço azul nos lugares mais fundos escondendo sucuris nos esconsos - tão formosas, perfumadas e cheias de aragem. É de verdade certa, a vereda é a fonte, só dela nascem todas as águas no sertão.
Chegou o tempo moderno. Ai das veredas! O homem, que não é o sertanejo, ali de perto enraizado, fincou tenda e ao seu modo de ganância muita, inaugurou o machado, as motoserras e os tratores cheios de correntes, comendo o cerrado de não deixar uma só lembrança. O pior ele fez com as veredas. Pode-se até enumerar, uma por uma, aonde ele chegou com sua vontade de ganhar dinheiro e a tudo destruir:

Cabeceira do Salto – o benfazejo córrego Bom Jardim ali tem origem, escorrendo depois até beijar o São Francisco, passando por longos caminhos, irrigando campos e fazendas; matando sede de homens e bichos. O Bom Jardim que já teve lugar de importância na história de São Francisco, por correr nas extensas terras do Cel. Oscar Caetano Gomes e saber da fuga de muitos caboclos nos tempos do "Barulho". Na Cabeceira do Salto existia uma lagoa, era funda e dava muito peixe – "num dava pra travessá ela de cavalo", diz Antônio, sertanejo dali, com a voz carregada de tristeza, de pé, no pião da lagoa, no barro gretado que dela sobrou. e, testemunha, um solitário buriti, a evocar o “buriti perdido de Afonso Arinos. De ver só bancos de areia arrastados das quadras de eucalipto.

Cabeceira das Lajes – o ribeirão das Lajes é afamado; atravessa grandes fazendas do município e vai desaguar no Acari. Já foi ribeirão de muitas águas e peixes, hoje é caixa de areia. O primeiro sinal, a muitos metros de chegada dos primeiros buritis, é o imenso canteiro de quaresmeiras, carregadas de flores tristes, como a contar a morte do sertão, ali plantadas no areão. Chegando à cabeceira da vereda o quadro que se depara é arrasador: a areia escorrendo pelo caminho das águas que ali antes brotavam, lentamente, ao sabor do vento e das chuvas, toma conta do mato e cobrindo os pequenos buritis nascentes e crescentes. Para saber da água ou de sua existência, preciso é abrir fundo buraco – sente-se, apenas, a umidade, pois a água nem tem força para subir, “breboiar”.

Cabeceira do Cedro - Uma bonita vereda que fica a poucos metros depois do rancho de Agenor Panta, velho sertanejo que dali não arredou o pé e luta contra todas as adversidades herdadas dos eucaliptos. Provocado ele evoca um passado ainda recente: "isso aqui era um lugar bonito, com fartura de água e muito verdume, tantão de peixe, mais a traíra. Escorria água o tempo todo pelos gerais abaixo, fazendo o córrego Cedro muito formoso e cheio de vida. Com a chegada dos eucalipto e dos carvoeiro a água foi minguando, minguando até secar. Hoje no Cedro a gente só vê água de mais fartura, quando é tempo de chuva. Na seca só restam os bancos de areia. É uma tristeza só".

Brejo das Contendas - Foi vereda respeitada, muito bonita e de fartura d´água a não mais poder. Fazia caminho de frescura por suave encosta, cortando uma imensa vazante, embrejando léguas de terra. Era um mundo de promissão, com muita gente vivendo por perto e outros chegando a cada tempo. Da vazante a água corrente da vereda ia cair no Cubango e, dele, engrossava o Bom Jardim para ganhar o caminho maior: o São Francisco. Hoje só resta a calha - a água ficou pelo meio do caminho. Mal brotada na cabeceira, morre, fraquinha nos bancos de areia. Ali por perto de sua cabeceira, num ponto mais alto, o cerrado foi dizimado, subindo na areia branca, o eucalipto, só estrangeiro eucalipto. O chão ficou liso, sem folhas, sem raízes, sem capim de ano, sem as plantinhas miúdas que viviam enroscadas nos troncos dos pequizeiros, pau santo, cagaiteiras e todas as espécies dadivosas do cerrado, tudo liso. Em linhas, as varas de eucalipto querendo o céu, sem verde de folhas, comidas que foram pelas formigas – só galhos secos, uma paisagem triste, muito triste. O chão eivado, todo riscado, caminho de enxurrada. Aquela areia branca foi sendo arrastada dos mais altos pontos e, com o tempo, empurrada para dentro da vereda. Caminha-se metros e mais metros nos bancos de areia de mais de metro de altura. Folhinhas de buriti, pés que vinham para ganhar o céu do sertão, restaram em nada mais do que pontinhas escapadas do afogamento querendo respirar. O tronco frágil fora soterrado pela areia. Da sagrada água, nem mais a umidade. Mais para baixo, a angústia: já não corre a tão dadivosa Contenda. Restam para se verem pequenos poços, aqui e acolá, nada mais, nada, e o homem, depois de esgotar suas cacimbas, se vê forçado a buscar, como os nômades do deserto, um outro ponto, longe de suas raízes, de sua vida e seus amores de terra-céu-cerrado, para recomeçar a vida – ou desvida? Ali por perto, formando muitos galhos, ainda se vêem os sinais da Vereda de Águas Quentes e do Machado, agora secas, tão secas, como um deserto, depois dos desmatamentos que devoraram o cerrado para alimentar distantes usinas.

Vertente Laje – Cedro – Antônio, nosso guia sertanejo, nos colocou num ponto ligeiramente elevado – um quase nada de se perceber. Olhando para um lado a campina descia suavemente até alcançar os primeiros pés de buritis – vertente do Cedro. Olhando para o outro lado o mesmo quadro de rara beleza: os primeiros buritis da vertente das Lajes. Não mais de 400 metros o espaço, o ponto culminante da vertente das duas importantes veredas. Uma só fonte e duas veredas determinando caminhos diferentes para o correr da fresca água até ao São Francisco. Antônio contava: "isso aqui já foi muito mais bonito. Era só capim e buriti, muita passarada, muito verde. Descia água de se ouvir o chuá-chuá de tão forte. Dava gosto. Hoje é isso aí. Tá acabano tudo". Bancos de areia cobriam as nascentes. Uma estrada despontando do cerrado, numa leve inclinação, se fez em boca larga vomitando golfadas de areia naquela cabeceira; do outro lado, outra estrada, provocando o mesmo efeito. Dali, daqueles imensos bancos, a areia escorria lenta e inexoravelmente para o interior das duas veredas, cobrindo as mudinhas de buriti, embaúba, samambaias e os olhos d´água.
Princípio do fim.

Galho do Chico – uma bonita e alongada comprida vereda com os dias contados: está numa calha entre duas quadras de eucalipto. Será, como já vem sendo, depositária de toda a areia daquelas quadras, que vai afogar os buritis e olhos d´água e a vida para o sempre, amém.

Cabaceira da Marimba – No sopé do cais, na caída das águas da Marimba, lá dos gerais, o seu Gildo, há muitos anos passados plantou vida – primeiro ele e, com o tempo, novos casais, conseqüência da chegada dos filhos seguindo o mesmo caminho da perpetuação da espécie. Casas levantadas em torno da primeira, vida tranqüila e pachorrenta, do jeito de parecer que o tempo não escorria, nem precisão havia, pois o mundo naqueles tempos era mesmo muito lento – até para chegar à cidade, levava dias, só no pêlo do cavalo ou caminhando atrás do carro-de-boi. O tempo era regulado pelo sol, o dia; e o mês pela chegada da lua cheia. A passagem de ano despertava interesse por causa do ajuntamento das pessoas nas festas do nascimento do Menino Jesus e das Folias de Reis. Vida cheia de paz, terra boa, com planta segura, comida farta e muitas e boas aguadas – de um lado o Marimbas e de outro o Veredinha. O encontro dos dois córregos era ali mesmo, perto da sua casa. Mas o que aconteceu com esse tempo? Ele passou? Passou e ninguém viu, só restaram os tristes efeitos - um quadro que se pinta terrivelmente assustador: a água já não escorre com tanta fartura e, em tempo de seca mais esticada, míngua tanto que não dá continuidade, vão ficando poças aqui e mais ali. Seu Gil, com os olhos cansados e perdidos no passado quase se queda no pensamento, sossega em pausa triste e depois, cadenciadamente diz, quase balbuciando, com medo das palavras: "De uns tempo atrás quem ganhava a cabeceira das Marimbas esbarrava num pantame que num dava para passá nele de jeito nenhum, nem de pé, nem de animá. Se temasse atolava até no pescoço ou sumia na lama e água. De lá brotava a fartura de água de escorrer ano inteiro, lambendo os barrancos aqui embaixo. Hoje, faz dó. Depois dos plantio dos eucalipto o pantame virou terra esturricada, dura qui nem vidro; a gente pode passá nele de inté carro de boi. Cê sabe, o eucalipto tomém num deu nada. Num vigô, mas acabô com o pantame e as cabecêra do Marimba. Daquela quadra pra cá tem fartado, cada vez mais, a água para alimentá o Marimba e o Veredinha".
Foi tudo obra dos “projetos” de plantio de eucalipto, acusam os moradores locais. O plantio não vingou, mas o projeto deixou sua herança: a destruição.

Cabeceira Calunga, Porcos, Acari, Brejo Grande – estão no fim, à beira da morte, cercadas por lotes de eucalipto.





VEREDA DA PRATA

Os tempos não vão longe. Na década de sessenta era comum o arrastar de muitas caravanas pela estrada poeirenta do Urucuia até se esbarrar num paraíso, logo na entrada dos gerais: a vereda da Prata. A estrada, muito estreita, atravessava a vereda, invadindo a trilha dos buritis, cortando a água cristalina que avançava sobre a areia branca de brilhar lá no fundo, esverdeada em fiapos de lodo nas beiradas. À direita da passagem (montante) abriu-se uma enseada, formando um belo lago, onde muita gente, nos finais de semana, fincava acampamento em busca de aconchego na natureza. Eram improvisados fogões de pedras para esquentar o almoço, quase sempre arroz com carne picada ou galinhada. O tempo mesmo tinha que ser reservado para as horas e mais horas de mergulhos naquela água pura, deliciosamente fresca. Disputavam-se espaços com piabinhas, que sempre apareciam para beliscar os pés dos banhistas. Era dia de regalo, céu aberto, sorvendo os ares perfumados e inebriantes trazidos pela brisa do interior do cerrado, acompanhando o vôo de majestosas araras ou assanhadas maritacas que chegavam sempre em busca do fruto vermelho do buriti. Ninguém avançava muito meio aos troncos de altaneiros buritis, rodeados de embaúbas, pindaíbas, avencas e moitas que cobriam a cristalina água – os esconsos possíveis de guardar sonolentos sucuris. Lugar de respeito, de se admirar ao longe. Era um quadro comparável ao paraíso, das descrições que se vê, de tão belo: as palmas dos buritis, tremendo e cantando ao vento, tocadas pelas copas das pindaibas, lá no alto erguidas, pelos troncos finos e compridos; as aves do céu, em grandes bandos, sempre por lá voejando sem parar, alegres, cantadeiras; por baixo, outra doce cantiga: o chuá das águas cristalinas, geladas, avançando entre fiapos de raízes, troncos caídos e camadas de verde lodo. De um lado e de outro, daquela vala tão fresca e verde, depois de um limpo ocupado por vegetação rasteira, quase sempre capim de raiz, barba-de-bode, panacã ia-se adentrando no cerrado, passando pela pimenta de macaco, sambaíba, quaresmeira, as plantas mais próximas do fresco, anunciadoras de água. Depois é cerrado fechado, encantado e riquezas benfazejas.

Era assim...

Hoje quem passa por ali, tendo antes conhecido o sítio, é possível deixar escapar "uma lágrima furtiva" de saudade, dor e decepção. Que fez o homem! Não resta nada, nadinha. Montes e mais montes de areia, de altura incomum, cobrem a bacia que antanho era um espelho cristalino; troncos de buriti se encontram estendidos ao longo do chão, apodrecendo lentamente para lembrar que já foi árvore erguida, abrigo das aves do céu, possível de produzir frutos e belezas incomparáveis – hoje tronco cheio de formigas e cupins; ao lado, onde frescura ainda corre de lembranças passadas, uma e outra moita solitária, com pequenos pés de buriti teimando a vida sem poder ir para frente por não ter a água benfazeja a lamber-lhes as raízes que não sabem sugar seiva da terra seca. Uma desolação, aquele enorme buraco, aberto ao céu sem qualquer sinal de vida...
Mais embaixo, um sítio de nome bonito: Bom Jardim da Prata, na fazenda de Henrique Ribas, para onde ainda escapam, em fins de semana, muitos são-franciscanos e gente de fora – é para se lembrar do banho na Prata. Um fiapo de água ainda teima umedecer a vereda de buritis raleados. Dizem, conhecedores da região, que aquela água é nascida muito longe, sumindo na terra no meio do caminho para brotar ali – para cima não há mais nem vestígio de água, é tudo seco. Milagre do cerrado na sua ânsia de querer alimentar o rio com sua água. É pouca, porém. Mas embaixo uma enorme lagoa, toda coberta de plantas aquáticas. Felizmente não tem ainda a taboa. A cobertura vegetal não deixa ver a beleza do espelho d’água e assuntar a profundidade do lago. Dizem moradores da região que ela não seca. É viveiro de muitos jacarés, sem dúvida de sucuri também, e ponto de chegada de muitas aves: garças, inhumas, jaburus, ariris, paturis, mergulhões e outras. Muitas não voltam aos céus, apanhadas que são pelos predadores. Em volta da lagoa muita madeira, árvores bem fornidas, com profusão maior os barus carregados de sementes tão apreciadas, torradas que nem amendoim ou numa gostosa paçoca.
Olhando aquela imensa lagoa é de se imaginar que, da Prata, água fresca ainda chega ao rio São Francisco ou Grande Rio, o comum para o povo dali? Chega não, foi o que constamos, eu, Dirceu e Zé Guedes, noutra viagem. Não conseguimos fotografar a foz da Prata no São Francisco, ou melhor, fotografamos o buraco no barranco, onde nos informaram: "é aqui que deságua a Prata". Havia só o buraco... seco.
A Prata não mais alimenta o rio São Francisco. É pouquinho de água de nascer e morrer no meio do caminho, no leito do cerrado.


CALDEIRÕES



Nos gerais são-franciscanos um santuário insiste: a vereda do Caldeirão. À sua passagem não há quem não contemple com prazer o veio de água prateada escorrendo sobre areia branca, sacudindo fiapos de algas para desaparecer debaixo das moitas que formam um imenso jardim rodeando os troncos de majestosos buritis, espigados caules das embaúbas ou mastros compridos de pindaíbas. A imediata sensação é de querer se refrescar, aliviar uma sede sentida sem necessidade física, mas de gozo do espírito. Muitos param o carro, descem e chegam até a uma pequena bacia, onde a água dá idéia de parar em leve redemoinho, uma pequena poça. Logo as mãos já se fazem em conchas e vão fundo, sentindo as frescuras correntes e voltam, respingando, aos lábios que se saciam do néctar do cerrado. Só aquele ato produz uma emoção rara e diferente – de retorno às origens da vida, à água que nos cobriu por nove meses depois da geração até ganhar o mundo. Podem os olhos, também, encontrar um grande refrigério alcançando, ali pertinho, as palmas dos buritis escondendo enormes cachos de frutas vermelhas, reluzindo à luz filtrada do sol. Os ouvidos também são agraciados com uma das canções do cerrado: o sopro da brisa nos flabelos daquelas palmas, acompanhadas, ainda, de gorjeios de aves escondidas ou dos gritos das araras em busca de ninhos...
Por muitos e muitos anos o Caldeirão foi parada obrigada do meu amigo Zé Alberto (Caçapa) que, viajando para sua fazenda no Vieira, ali parava para encher os camburões com a água que ele dizia ser a mais pura e saborosa do sertão. Foi com ele que ganhei o gosto por ela. Ele tinha razão. Hoje, sempre que por ali passo, tenho duas referências a agitar a minha alma: a natureza tão gentil e a lembrança saudosa do meu amigo e irmão Caçapa.
No mês de julho de 2000, eu, meu amigo Dirceu Lelis e o sertanista Zé Guedes, fizemos uma incursão por aquela e outras veredas da região. Primeiro buscamos a foz da vereda do Caldeirão no ribeirão Acari. Não conseguimos, pois esbarramos numa fazenda há poucos quilômetros da estrada da Ruralminas (à jusante). Ali obstruíram a vereda construindo uma barragem, suporte de projeto de irrigação de plantio no cerrado. O projeto não vingou – é uma história que precisa ser vista e revista, como muitas coisas deste País que acontecem com o dinheiro público, um desperdício acompanhado de destruição. A vereda foi interrompida no seu curso normal – dezenas de buritis morreram, restando apenas troncos espetados no meio da represa, estacas carecendo de folhas. O mal é menor porque o curso do Caldeirão não foi desviado e, assim, sua água ainda pode banhar os buritis e outras vegetações à jusante, cortando, com toda frescura o cerrado até chegar ao Acari, não muito longe dali.
A vereda do Caldeirão, por toda extensão da fazenda onde encontramos a represa, corta um trecho de cerrado com mais de 80% de sua massa derrubada para ceder lugar ao pasto ou projeto agrícola. Noutras palavras: a proteção ciliar não existia - e o financiamento do projeto agropecuário foi feito pelo Governo.
Deixando a fazenda penetramos na vereda à altura da estrada da Ruralminas, acompanhando-a por um bom trecho, rumo abaixo. Por onde passamos, felizmente, o cerrado está intacto. Umbu d´anta, carregado de frutos; pau-santo, caraíba, gonçalo, sucupira, sambaíba, jatobá-do-cerrado, piúna, pimenta-de-macaco, uma variedade enorme de árvores, cobrindo a vegetação rasteira formada de capim de raiz, tucum, capim barba-de-bode, quaresmeira, moitas de murici e outros verdes. Aqui e acolá uma enseada - ponto de chegada dos moradores da região para lavar roupa, tomar banho ou simplesmente buscar água para o consumo. Era, também, ponto de travessia, a modo de pinguela: troncos atirados de barranco a barranco, com a barriga lambida pela prateada água. Por comum elas represam um pouco a água, interrompendo o curso livre do córrego, formando um pequeno lago, de onde é possível o nado distraído de dezenas de piabas e, com sorte, é possível contemplar traíras cochilando meio ao lodo que vai formando colônias imensas com fiapos esgarçados, dançando ao sabor da correnteza - um balé de rara graça e beleza.
Outros sinais do homem: trilhas, certamente vindas dos ranchos plantados na região ou caminho de gado que as tomam (ou fizeram com o repisar de muitas jornadas) para chegar à aguada. As trilhas são em curva de nível natural, certamente em razão das comodidades de caminhar mais no plano que enfrentar as descidas de vez. O chegar é mais delongado, mas não se cansa tanto e, ainda acrescenta a vantagem de diminuir o risco da erosão e, conseqüentemente, o arrastar de areia para assorear o leito da vereda. Daí, de comum, as águas das veredas lamberem muito mais o barro branco na sua descida. Pouco à frente, no curso da caminhada, nos surpreendeu uma agressão ao ambiente bravio: uma estrada carreira vindo do cerrado, em linha reta, descendo para o leito da vereda – é um caminho certo para a voçoroca e, dela, o arrastar de toneladas de areia para o leito da vereda. O homem, quando altera o ambiente, se não o faz respeitando as condições naturais, estraga tudo, compromete a vida (e bem que podia ter aprendido com o gado).
Fomos informados que na área acima da rodovia estão sendo instaladas pequenas vivendas em perfeita integração com o meio ambiente. Mais acima, na cabeceira, uma séria ameaça: presença de uma empresa de reflorestamento. Risco permanente, apesar de se dizer que a área foi declarada de preservação, pelo IBAMA, pois como se diz por aqui: "Se pagar a licença pode derrubar”.
Por enquanto a vereda do Caldeirão permanece como um santuário, uma das últimas fontes de água do Velho Chico, no misterioso, exuberante e surpreendente sertão são-franciscano.


FLORADA DO CERRADO


Cerrado é bonito de se ver e gostar. Parece triste, no outono, com sua roupagem amarronzada, galhos desfolhados, estendidos aos céus, clamando por chuva; capim seco propenso de fogo; desprovido de frutinhas nas árvores, muitas delas pequenas e retorcidas por natureza, outras mais altaneiras, de sorte dos veios de terra mais rica – por isso mais raras. De comum, no maior de se ver, aquelas plantas parecem pecas, não por doença, mas por sua própria natureza.
Julho principia as diferenças. Primeiro sinal a romper a natureza pálida, descolorida e recoberta de fina poeira, vem com as florzinhas brancas do pequizeiro, a árvore sagrada do sertão. É dos primeiros bocejos do cerrado. Logo elas atraem as aves que chegam esvoaçando de lonjuras tantas, tão certas de farturas; são atrativos especiais, também, para a bicharada das horas quietas, guiadas pelo perfume daquelas bondades. É ele, verdade-verdadeira, a primeira árvore a se vestir de suave e esperançoso verde, e a se colorir de delicadas florzinhas brancas, visitadas, logo ao exalar dos primeiros perfumes, pelas abelhas zunideiras. Alimentam, à fartura, passarinhos e insetos, quando estão se abrindo, e depois, quando se desprendem dos galhos, formando um tapete cheiroso num colchão de folhas, vão servir de suave repasto para veados, pacas, saruê e até o gado da solta.
Uma plantinha muito agreste, que, no comum, chega ser feia pela aspereza de suas folhas e pelo tronco de cascas marrons, encrespadas e eriçadas que se soltam em fragmentos, quando tocadas pelas aves ou bicho trepador, atrás de insetos, tem nome sem atrativo: "lixeira". Em julho, ela é outra, se veste de rainha – é, então, a sambaíba de flores brancas mimosas, docemente perfumadas, berçário enxameado de abelhas. É planta de muitos remédios para as dores do homem – a casca tem a propriedade de contrair os tecidos, sendo utilizada em infusões para sarar feridas, e, também, para curtir couro; as folhas ricas em tanino e matéria silicosa, sendo tomada também como lixa em todos os seus usos; delas também se faz chá para tratar de dores do estômago e resfriado; as flores têm igual serventia para deter o resfriado; e da raiz é feito chá para dores pulmonares. Na cozinha suas folhas ainda satisfazem as donas de casa, no sertão, usadas que são para limpar panelas.
Chega agosto. Já foi tempo de muita fumaça, de tristeza, do solo ficar tremendo com o beijo quente dos raios do sol escaldante. Mês aziago, no sertão. Mudou muito. Agosto, agora, tem recebido frias correntes de ar em suas madrugadas e o céu fica sempre azul. O que não mudou, para alegria do sertanejo e dos bichos do cerrado, foi a florada da caraíba: o sertão se pinta de amarelo – fica, ali, simbolizado em cores, o nosso Brasil: o azul no céu, o verde no pequizeiro, o branco na sambaíba e o amarelo na formosa caraíba de pernas e braços tortos. É uma festa para os veados campeiros
Agosto para setembro: se vem a chuva, a mudança se dá da noite para o dia. O cerrado se veste como um bando de meninas, antes escondidas dentro de casa, desarrumadas e, que, por um toque de mágica, logo-logo se mostram banhadas, vestidas de novo e cheirosas com todos perfumes do sertão. É verde rebentando por todos os galhos num festival incomum de múltiplas tonalidades de rara beleza. Mas se não vem a chuva, a abençoada chuva, basta a mudança da temperatura, os anúncios da primavera, com o ar cheirando a água, na passagem de nuvens solitárias no azul do céu. Deve, também, de acontecer, que uma corrente de umidade perpasse por veios misteriosos, no interior do chão, cerrado afora, dando toques nas raízes mais profundas. Então, a natureza, por força invisível, vai se transformando, como se um pintor ali ficasse, distraidamente a dar, aqui e acolá, mágicas pinceladas. Nas abas das estradas os olhos logo alcançam as amarelinhas arrebentando meio a poeira assentada – dão a cor da alegria que, por serem como o ouro, destacam-se sobremaneira e possível ter a graça de ver também, mas escasseada nessa quadra, a ciganinha, com seu vermelho carmim deslumbrante – pronta para enfeitar as "tranças de frívolas ciganas", como cantada no belíssimo soneto "Flores da Primavera" do mestre Saul Martins. Mais além do leito da estrada balançam flores brancas que cobrem a galharada, até então seca, das cagaiteiras – mimosas, alegres e puras a causar impressão de quererem vestir o cerrado de noiva para o casamento da vida nova que se inaugura. Mais além os olhos alcançam a grande exibição do cerrado, um espetáculo de luxúria, a explosão mais colorida ainda da vida: a florada da sucupira-preta. Imponente árvore, tronco bem formado, indo além dos dez metros de altura, copa arredondada, folhagem densa, de verde carregado que, num curto passar de tempo, a quase não se perceber, se transforma em fundo do majestoso painel que o cerrado exibe com o aparecimento de flores roxas, a granel, que vão se entrelaçando ao verde da copa. Aí, o privilegiado mortal que deparar com aquele gracioso espetáculo da natureza, chega ao suspiro, em enlevada emoção. E tem mais: mesmo sem tantos atrativos, na elegância e extravagância das cores, e de nome desprovido de encanto, vestem nova roupagem e se colocam também mais frescas e bonitas, as folhas-largas.
O cerrado ainda não bebeu da água, mas o tempo vai avançando na primavera. Não aconteceu, ainda, o rebentar de verde, o trocar geral de roupa com toda pujança, naquela diversidade de plantas, de modo a dar àquele mundo a alegria de verdume fresco, liso, cheiroso, suave e um jeito de paraíso. Tão agreste e tão adversa a natureza se não vem a chuva. É milagre do cerrado: nesse cenário, quando chega essa época, algo incomum acontece nos recônditos, nos escondidos veios, caminhos e correntes, que o homem não percebe de onde e como vem - uma força espetacular que faz explodir a vida, uma aparição fantástica nasce-se, pronto! Brota a vida no cerrado, como pequenas ilhas. Caso propício de chover antes, de agosto para setembro – a chuva dos brotos, o incontido explode de uma só vez. Os cipós, tão pródigos em flores variadas e matizadas, como o feijão-de-porco, papo-de-peru, maracujá-do-mato, e uma infinidade de leguminosas vão se enroscando nos galhos das árvores, tomando-os como imensos varais para explodirem em flores roxas, amarelas, brancas, vermelhas... agitadas como bandeirolas no vasto sertão, exibindo a vida inaugurada. Na beira das estradas, nos frescos recantos de matas ciliares ou de galerias, às passagens de veredas ou riachos, atapetando os braços de rústicas pontes, formam vergéis que não se reproduzem nos meios urbanos. Flores diversas se abrem ao sol e em taças esperam o beijo fresco da madrugada que chega com o suave cicio da brisa, precursora de dóceis abelhas que se anunciam com seu alegre bailado para libar tanto néctar.
A espera não é, contudo, decretada a toda vida vegetal do cerrado – aquelas existem que, como já foi contado, explodem apenas com a mudança do ar, a frescura da passagem de uma nuvem e pela umidade corrida num veio fundo do solo. É aí que surge, então, a piúna - ela avança na secura e precipita a beleza no mundo, então descolorido, só mudado antes pelo pequizeiro, caraíba e sucupira. Vem, contudo, em maior profusão do que suas precursoras, as anunciantes das belezas possíveis do cerrado. Como chega tão bela e fresca naquela aridez mostrando a sua roupagem branca! - folhas miúdas cobrindo a sua copa por inteiro, até à ponta dos galhos, como pingentes de prata, querendo parecer, com o sol brilhante da matina, gotas de orvalho esquecidas de derreter. A visão de uma piúna, nas abas da estrada, nos coloca diante de uma miragem: parece surgir de uma imensa tela um vestido de noiva, translúcido, recoberto de tiras brilhantes, como centenas de cordões que não se entrelaçam e ficam a balançar-balançar, suavemente, ao toque da brisa mansa, quase imperceptível do cerrado. As flores se vêem num só corpo. Separadas, de tão miúdas e reluzentes, tornam-se transparentes. Juntinhas formam o buquê da noiva, buquê de querer de qualquer rica noiva, por ser o arranjo consagrado pelas mãos do Criador.
Isso nos dá, de graça, aos olhos e ao coração, o cerrado.
Como muita coisa que vem acontecendo no mundo, arrastando a humanidade de volta ao princípio de tudo, essa riqueza parece ter seus dias contados. Esse imenso jardim e exuberante tesouro, alimento do corpo e da alma do sertanejo e de todos nós, está sendo consumido em brasa e tombado para dar espaço a uma cheirosa árvore, desprovida de beleza e grandeza no nosso sertão..


RAÍZES E RAIZADAS

"Tenho oitenta e quatro anos e nunca tomei remédio de farmácia, só de raiz. Coisa do meu pai que ensinou. E ele morreu cum quase cem anos" - segredou Revalino para Quintão, sentados, os dois, num banco de cimento, numa praça de Pintópolis, pequena cidade plantada na entrada do sertão urucuiano, nascida nas barrancas do Riacho Fundo e que já foi parte de São Francisco. Ali estavam, como sempre ficavam, pachorrentamente, jogando conversa fora, atando as reminiscências quase comuns ou trocando experiências tradicionais, até dar a hora de receber "o aposento" – do INSS.
Estando perto, ouvi a conversa e quis saber mais. Seu Revalino me disse, então, que como quase todo mundo da roça, "num tem dinheiro, nem tempo pra arrumá remédio de farmácia. Intão é ir se cuidano de privinição, tomando remédio todo dia, de garrafada. Sinhô sabe, tem remédio para tudo e se a gente toma direito num adoece”. De lado, seu Quintão, como que distraído desfiou as importâncias das raízes e suas forças milagrosas.
Lembrei-me, então, dos “estudos” do meu amigo Zé Guedes. Ele chegou a catalogar mais de duzentas variedades de plantas do cerrado que são utilizadas como medicamentos, indicando as doenças para as quais eram recomendadas. Não vou repetir todas, porém registrar as mais importantes, pois pelo rumo que vão as coisas no cerrado, segundo ele conta e foi confirmado por Revalino e Quintão, daqui uns tempos, cadê raiz? O cerrado está sendo devorado pelo homem, no todo, virando cinza, areia e pó.

As plantas

Alcaçuz – chá da raiz para problemas de garganta e o xarope, feito da raiz, usado para gripe, tosse e expectorante.
Alcafor-do-campo – o chá da raiz para inflamação dos olhos. Sem açúcar, o chá é também usado para desidratação e má digestão.
Amarelinha – o chá da raiz para picada de escorpião. Faz-se também o uso externo, lavando o local da picada. No caso de emergência mastiga-se o pedaço da raiz.
Angiquinho – o chá das folhas para inflamações uterinas e dores de dente.
Araticum – a semente é utilizada como inseticida.
Aroeira – o chá das folhas e das cascas: para dores de estômago e problemas dos rins.
Assa-peixe – o chá da planta inteira para gripe. Externamente em machucados, em forma de emplastro.
Barba-de-bode – o chá da planta inteira para resfriado e febre alta.
Barbatimão – chá da casca para problemas intestinais e dores em geral e como cicatrizante de úlceras; a casca macerada é usada como cicatrizante de feridas externas.
Baru – a castanha tem propriedades revigorantes e estimulantes do suor e menstruação. É um excelente alimento, in natura, torrado como amendoim ou na forma de paçoca (com farinha de mandioca).
Batata-de-purga – o chá da raiz para prisão de ventre e purgativo. Utiliza-se a raiz também na forma de doce caseiro.
Bolié (mama-cadela) – o chá da raiz para dores de estômago e problemas intestinais.
Buriti – a raiz curtida em vinho doce é tida como anti-reumática
Cagaiteira – o chá da folha é usado como antidisentérico. O chá da flor para problemas da bexiga e dos rins.
Canela-de-ema – o chá da casca e da raiz é usado como anti-reumático e utilizado para dores de coluna. O chá da raiz, juntamente com o da pinha-de-guará é utilizado para problemas nos rins.
Cangerana – a casca é tônica e antifebril
Caraíba – o chá da casca como expectorante
Carapiá – o chá da raiz para resfriado e febre alta.
Carobinha – o chá da raiz para dores intestinais e banhos no tratamento de sarna.
Ciganinha – o chá da raiz como regulador menstrual e a flor macerada é extremamente empregada para problemas na pele.
Coroa-de-frade – o chá da planta macerada (tiram-se os espinhos e cascas) é usado para problemas dos rins e intestinos. O miolo da planta é usado na fabricação de doce caseiro.
Embaúba – o chá da casca e das folhas novas: expectorante.
Enxerto-de-passarinho – o chá das folhas: para inflamação de garganta. O sumo das folhas, misturado em água morna, é usado para irritação dos olhos.
Fava-Danta (faveiro, favela) – a entrecasca, curtida com água fria ou o chá, é usada externamente como cicatrizante. O fruto contém uma substância de grande interesse para a indústria farmacêutica: a rutina, que associada à vitamina C, confere resistência e permeabilidade às paredes dos capilares.
Folha-Larga ou Bate-Caixa – o chá das flores para problemas de gases e má digestão. O chá das folhas para dores de coluna. O chá da casca é recomendado para tosse.
Grão-de-galo – o chá da raiz e casca serve como vermífugo e antidisentérico.
Infalível – o chá da raiz macerada para tosse e dores de estômago. Usa-se, também, no caso de picada de cobra: mastigar um pedaço de raiz.
Ipê-do-cerrado – a entrecasca possui propriedades diuréticas.
Jacarandá – o chá das folhas como vermífugo. O óleo da casca para dores de dentes.
Jatobá - O chá da resina e entrecasca para problemas respiratórios> A resina aquecida é usada externamente como expectorante; a casca na cachaça é utilizada como estimulante do apetite. O chá da entrecasca é empregado para sanar problemas de rins, fígado, infecção intestinal e como cicatrizante.
Jurubeba – o chá da folha e fruto: para problemas de fígado.
Marcela – o chá da planta inteira é utilizado para resfriado. O chá da flor para dores de estômago.
Miroró – O chá das folhas é usado como anti-reumático, anti-hemorrágico, para problemas dos rins, dores da coluna e inchaço do corpo. Uma aplicação especial do chá é para os regimes de emagrecimento. Curiosidade: se bater em animal com vara de miroró ele emagrecendo (seca) até morrer.
Papaconha – o chá da raiz como purgativo e para febre e resfriado.
Para-tudo – o chá da raiz para febre, asma, bronquite e picada de cobra.
Pau-doce – o chá da entrecasca para resfriado. Usado também como vermífugo, antidisentérico e para combater inflamação nos olhos.
Pau-d´óleo – o óleo extraído do tronco é usado para tosse, resfriado, dores de garganta, como cicatrizante e anti-reumático. É utilizado no café para prevenção de derrame cerebral.
Pau-santo – A casca curtida em água fria é utilizada externamente para irritação dos olhos. O chá da entrecasca é usado como antidisentérico e o chá da raiz como vermífugo.
Pau-terra – o chá da folha para problemas digestivos, intestinais e como cicatrizantes na forma de banhos. O chá da casca é anti-séptico – uso externo.
Pequi – folhas – adstringentes que estimulam a secreção da bílis. O fruto contém proteínas, açúcares, vitamina A, tiamina, sais de cálcio, ferro e cobre. É empregado no combate à gripe e resfriados e tem propriedades afrodisíacas.
Pimenta-de-macaco – o chá do fruto macerado é usado para dores musculares. A semente é usada como tempero, semelhante à pimenta-do-reino.
Pinha-de-Guará – Beladona - o chá da raiz é calmante, anti-reumático e para dores nos rins e de coluna.
Poaia – o chá da planta inteira é utilizado para febre e resfriado. A raiz seca, reduzida a pó, é usada como purgante.
Quina-Branca – o chá da entrecasca para cólicas intestinais de recém-nascido e como abortivo. É utilizada, na forma de banhos, para facilitar o trabalho de parto.
Raiz de perdiz – o chá da raiz para inflamações uterinas e problemas durante a menopausa.
Retrato-de-Teiú (Tiuzinho) – o chá da folha macerada é usado como regulador menstrual e externamente utilizado para lavar ferimentos, auxiliando na cicatrização. Em excesso é abortivo.
Sambaíba – a resina da casca para enxaqueca, sinusite e dores de cabeça. O chá das folhas para dores de estômago e resfriado e o chá das flores para resfriado e o chá da raiz para dores pulmonares.
Sambaibinha – a folha macerada é externamente usada em ferimentos. O chá da raiz é utilizado para hemorróidas. A cataplasma, feito a partir da raiz, é usado para problemas de hérnia.
São-Gonçalo – o chá da raiz para inflamações uterinas e cólicas menstruais. O chá da folha, feito juntamente com o sumo do mastruz, é externamente utilizado para machucados.
Sucupira-branca – o chá da semente macerada e da entrecasca é usado no combate às infecções da garganta; usado também para sinusite. A casca, quando curtida em água fria, juntamente com a casca da tartarena, é usada para cólicas intestinais.
Sucupira-preta – a casca é utilizada contra a sífilis e diabetes. A raiz serve como medicamento anti-reumático e depurativo.
Tatarena – o chá da entrecasca é usado nas dores de estômago e problemas intestinais. A casca é também utilizada externamente, na forma de banhos, para ferimentos.
Tiborna – o chá da folha é utilizado para úlcera e gastrite. O látex é utilizado como vermífugo.
Tingui – A resina da casca é tida como inseticida e usada para matar piolho.
Unha-d’anta – o chá da casca para dores em geral, em especial dos rins.
Velame – o chá da raiz para febre e dores intestinais.
Vergateza – o chá da raiz como afrodisíaco masculino e feminino.

PEQUI: REI DO CERRADO


Setembro, 2001, cortando os gerais, rumo a Pintópolis, por uma estrada muito bonita, de extensas retas e suaves curvas o carro zoava, como uma seta traspassando um dos mais belos e luxuriantes cerrados da região - dava para enxergar longe naquela vastidão dos gerais urucuiano.
O motorista da viagem um sertanejo experimentado, João Quexedé, hoje proprietário de alguns táxis - ontem rurícula estabelecido. Ele conhece e gosta dos gerais, das matas e vazantes, dos animais e gentes. Fala sobre o cerrado derramando paixão, de maneira especial quando o assunto chega no pequi que ele chama de "rei do cerrado”. Naquela viagem ele falava sobre o pequi sem parar, sem deixar brecha para que eu participasse do gostar.
"Pode vê, o pequi é a primeira árvore a ficar toda verde e cheia de flores. De julho para cá ele faz a alegria dos bichos e dos caçadores, quando começa enflorar. É uma planta sagrada. Assunta só! A flor alimenta passarinhos e insetos, quando está se abrindo, toda branquinha e bonita, quando cai, vira comida dos veados, paca, gado e saruê. O fruto quando cresce é roído pelas araras, papagaios, maritacas e periquitos – eles se fartam comendo a grossa casca verde; quando cai é comido pelos veados e gado. A carne é também alimento para animais, no chão, mas quem mais dela aprecia é o homem, na mesa.”
É verdade, o tempo de pequi em São Francisco é todo especial e só se fala dele nos mercados, feiras, beira de estradas ou à porta das casas, com a meninada carregando latinhas cheirosas a repetir o pregão: "Oia o pequi, dona!". Quem passa pela rua é fácil de perceber onde ele está sendo cozido para o almoço pelo cheiro forte, inconfundível,
flui com a fumaça e alcança a rua, os ares e a tudo impregna. Tem muito jeito de prepará-lo, com outros pratos, dependendo da arte, dos recursos, tempo e ciência. De comum mesmo é colocar um montão deles cozidos, numa gamela ou travessa, no meio da mesa para que cada um vá se servindo ao seu gosto, com as mãos, para roer com prazer. Aquele amarelo ouro, reluzente, é, deveras, um convite ao lento repasto. Também, de comum, ele é cozido no arroz, com carne ou escoteiro. Da popa ainda faz pasta e licor; pode ela, ainda, ser colocada para secar, servindo de alimento esfarelado para galinhas – para muitos isso é um esperdício, mas no sertão ele há com fartura e para todos os fins.
A castanha é muito apreciada também - serve para fazer paçoca e óleo comestível. A capa, toda espinhenta, é usada na roça para cocção de alimentos - queima como gasolina.
O pequi começa enflorar em junho e vai até setembro. Ocorre, também, o temporão, com a floração no mês de maio, para anunciar as delícias dos gerais. São poucos, mas tem deles. Floração é a temporada da caça-de-espera (era, pois hoje ela é proibida). Os caçadores passavam a noite agasalhados numa rede para esperar os campeiros...
Existem muitas histórias sobre o pequi. Uma delas é comprovada pelo que se vê todo ano: nove meses depois da colheita, aumenta-se o número de partos nos gerais. Dizem que o fruto sagrado do sertão é afrodisíaco.
Uma coisa é certa e dela todos sabem: na época da frutificação a fome da pobreza é menor. Todos se fartam à vontade do pequi, roendo-o cozido com sal ou saboreando-o cozido no arroz ou com carne, no caso dos mais remediados. Tem casos contados de gente que na época do pequi deixa a cidade e se embrenha no cerrado levando uma lata, um pacotinho de sal e uma coberta para passar as noites que são muitas, só comendo pequi.
Tem mais utilidade: o emprego da castanha na fabricação de sabão, quer dizer, era, pois muitas coisas estão sendo mudadas no sertão.Agora, triste, mas muito triste mesmo é derrubar o pequizeiro para fazer carvão. É uma maldade sem igual, de quem não sabe do valor do pequi e do quanto o povo do sertão precisa dele. É um absurdo o desmantelo que se faz no cerrado para alimentar a boca dos fornos de usinas distantes que não sabem do nosso verde, do nosso sertanejo e bicharada de Deus.
Histórias faladas, João Quexedé arrematou, já chegando a Pintópolis: “Viu só como o pequi é uma árvore muito importante, porque ele é o rei do cerrado?
Pouco ou quase nada falei, na viagem, mas apreciei e aprendi gostar mais ainda do sertão.


TINGUI


O tingui não tem propósito de beleza. Seu maior favorecimento é de possuir muita sombra, de cobrir os estrados dos serradores de toras e tábuas e dar refrigério para os caminheiros do sertão, quando crescidos nas abas das trilhas poeirentas ou de servir de estação para abrigar o carro de bois do sol ou sereno, quando no repouso. Onde estive, no Urucuia, a primeira sala de aula foi debaixo de um enorme tinguizeiro. Que sagrada serventia! É grande, de muito gosto. Sua verdura não é brilhosa e ele é desprovido das mimosas flores que colorem os tabuleiros e cerrados. O seu fruto é de cor amarronzada - faz comparação com o pequi, mas não é palatável e, por isso, não desperta os olhares de gostar, fica quase despercebido, pendido das galhas fortes, onde dança ao sopro do vento ou das pancadas de chuva grossa. Passa o tempo todo livre de pauladas ou pedradas, cai de maduro. Contudo o fruto é de muita serventia no sertão: a de propiciar o sabão. Tudo começa em agosto, quando maduros os frutos são recolhidos pelas mulheres e crianças e levados para o rancho onde são quebrados, geralmente com malhos, sobre uma pedra, até mostrar as sementes – trinta ou mais bagos, distribuídos em três compartimentos em forma de triângulo, um capricho da natureza. As sementes apuradas são levadas a uma vasilha d´água onde ficam de molho por uma noite. No outro dia o trabalho é retirar a sobrepeliz de cada semente, descobrindo totalmente a gema que é levada no caldeirão, ao fogo. É, toda ela, levada a ferver por um ou dois dias, até restar apenas o óleo (gordura) da semente, envolvendo a massa. O modo a seguir, ainda com o caldeirão no fogo, é adicionar decoada, quanto mais forte melhor – ela faz o mesmo efeito da soda cáustica na fabricação do sabão. Depois é ir mexendo e mexendo sem parar. Quando não restar sinal de óleo, está pronto o sabão – é deixar esfriar e cortar os tabletes ou então fazer os bolos que são enrolados em palha de milho para serem guardados.
Há de se ter muito cuidado e ciência com a decoada – ela é que vai determinar a qualidade do sabão. O processo se inicia com a escolha da madeira para preparar a cinza - tem que ser verde, bem verde mesmo. Faz-se, com ela, uma fogueira e a deixa arder até consumir o último taco de pau, restando o monte de cinza que, depois de esfriada, é umedecida e colocada no distilador - uma espécie de vaso, em forma de cone, feito de carrasca de buriti (ou achas de aroeira). No fundo do distilador é colocado um pedaço de pano ou um pouco de capim para segurar a cinza umedecida que vai sendo colocada em pequenas camadas e, depois, levemente socada com a mão-de-pilão. Com destilador cheio, adiciona-se água, moderadamente, até perceber que o vaso está bem encharcado. Em pouco tempo um líquido grosso e escurecido flui pingo por pingo, caindo numa lata colocada debaixo da ponta do cone. A melhor é a decoada das primeiras recolhidas, mais forte e propícia de dar o sabão de qualidade, não sendo recomendado usar a fraca. A decoada tem um cheiro forte e desagradável. Ela é extremamente perigosa, não podendo estar em contato com a pele e, de maneira alguma ser ingerida. Há casos no sertão de pessoas do juízo fraco que dão cabo à vida tomando doses dela, como, também, toma-se soda cáustica em igual e triste circunstância. “A dicuada rói as entranha do desinfeliz, num sobra nada...”, dizem. Para saber se a decoada está no ponto é bastante colocar fubá ou farinha de milho numa vasilha e, depois adicioná-la. Se cozinhar a farinha, formando um bolo, ela está no ponto.
O sabão do tingui tem um perfume agradável e por isso melhor serve às mulheres que apreciam o sabão de decoada para lavar os cabelos – é o xampu do sertão. Até mesmo as da cidade o encomendam sempre, declarando sua excelência. Tem mais: a utilidade medicinal, como observa Zé Guedes - não tem igual para curar a cafubira (sarna) e todo tipo de coceira do corpo. Para lavar roupa é dos melhores, diz Dona Antônia Guedes, esposa do Zé Guedes – “se for feito com dicuada das melhores, basta passar uma vez na roupa, e se a água for boa (faz-se referência àquela que vem de poço tubular, em certos lugares, com alto teor de calcário que elimina os efeitos do sabão – essa não é boa) não tem sujo que resiste, tudo fica limpo num instante”
Hoje, faz até dó de ver: o sabão está sendo vendido em caixinhas embrulhados em plástico nas vendinhas que foram pontilhando as estradas do sertão. Ficou mais fácil de se ter, mas estrangulou a utilidade do tingui e a habilidade da mulher que acabou facilitada pela modernidade.
O tingui tem ainda mais serventia. A resina da casca é tida como inseticida e usada para matar piolho e o tronco, madeira de respeito pela dureza, é usado, como esticador, para segurar o rijo arame farpado das cercas que varavam os gerais de quilômetros de se perder – hoje ficou encostado porque tem império o arame liso. Tudo ficou mais facilitado, mais jeitoso, não carece de paus tão fornidos pois, para prendê-lo, suficientes são umas lasquinhas de aroeira com cinco furos, por onde ele corre para ser preso lá nas pontas de cada rolo, em bonitas catracas, afixadas em estacas de aroeiras reforçadas por dois espeques – um de cada lado - por não terem as grossuras dos esticadores como tinguis. E tem de se ver o que colocam no lugar dos paus intermediários: finas ripas ou até mesmo arame retorcido. Ficou mais ligeiro, fácil para se fazer a cerca, mas sem graça por não ter que envolver muita gente – o ofício de levantar cerca, conforme o estirão, era oportunidade de ter um mangote de homens: o carreiro e o guia; os cavadores de buracos para esticador e paus de meio; o esticador de arame e o rebatedor de grampo. Era ocasião para contar causos do sertão, para se divertir e fazer convívios. A faina era dura e exigia treino e arte para deixar os paus bem aprumados, manter o alinhamento, preparar os diamantes nas cabeças dos paus, modo de fazer escorrer a chuva sem o risco da água penetrar no miolo do poste causando brocas. O caboclo tinha de ser bom no fio do machado. Mais do que força era preciso ciência e jeito para esticar o arame - uma ponta era presa com fortes grampos num esticador de saída e, de lá, buscava na frente, uns cem metros, o próximo esticador; aí dois cabras tomavam o fio, enrolando-o numa forte forquilha que dava uma meia volta no esticador, puxando o arame para frente até ficar tenso, a ponto de tocar música; aí vinha o pregador, rebatendo os grampos até sumirem no tronco. Depois, era aprumar e socar os postes intermediários, numa distância curta de 5 a 6 metros, para que os fios de arame - de comum cinco - ficassem bem retinidos a modo de não dar brecha aos intentos de gado bravio fugir dos cercados e invadir terras alheias, arrumando confusão.


OS BICHOS DO CERRADO


Nos meus tempos primeiros de andar pelo cerrado, nas extensas campinas e de molhar os pés nas veredas, apenas por passar, por circunstâncias da vida, mesmo tendo por ele grande gosto de ver e sentir, não cultivei sua imensa riqueza – vagava só pelo mundão. Jamais imaginei do quanto de animais ele guardava nas suas moitas, locas, campinas, veredas e esconsos de carrascos. Quedei-me pasmo, quando os amigos Rui e Leão, antigos e experientes caçadores, homens que passavam dias e noites embrenhados no cerrado, dependurados nos pés de caraíba, pequi, ou metidos em locas, à espera da boa caça, abriram, aos meus olhos, o cerrado, com a exuberante e formidável fauna. Não imaginava, nem de longe, que naquele pedaço de mundo tão agreste, às vezes triste, pudesse pulular a vida animal com tanta profusão. Rui e Leão, de convivência duradoura nos campos, gravaram na cabeça, pela máquina dos olhos, todos os bichos do cerrado e deles sabem de tudo - seus hábitos, utilidades, procriação e como funciona, ali, a cadeia da vida. Com a descoberta, entende-se melhor a natureza, a vida, a grandeza de Deus.
Rui e Leão, num bate-papo, me passaram uma extensa relação dos pequenos e grandes animais que conheceram ao longo de tantos e tantos anos. Muitos deles já extintos, outros em fase de extinção. Os nomes são os conhecidos popularmente, de como são identificados pelo chapadeiro no cerrado, nas veredas e nas entradas das matas de vazantes.
Trata-se de um registro singelo, como se nos encontrássemos – Rui, Leão e eu, conversando, largados num banco liso de jatobá.

Mamíferos

Anta, cachorrinho-do-mato, capivara, coelho, gambá, gato pardo e pintado, gato mourisco, jaguatirica, lobo guará, luís-cacheiro, melete, (tamanduá-colete), mico, onça-pintada e parda, paca, quati, raposa, saruê, tamanduá, tatu: bola, bolinha, canastra (o maior deles, podendo pesar até 80 kg), galinha, peba (tem o pequeno, vermelho, papa-defunto e o grande que não come defunto e pesa até 10 kg), veado: campeiro (galheiro), catingueiro, catingueiro-churé (pequeno do saco grande), suaçuapara vive no pântano, só sai para pastar.

Aves

Acauã, anu-branco e preto, arara-azul, amarela e vermelha, ariri, beija-flor, canário, chorró, codorna, coruja-de-cupim, curiangu, curió, ema, galinha d´água, garça-vaqueira, garricha, gavião – pinhém, carcará, penacho, inhambu, jacu-pemba (pequeno), jandaia, joão-congo, joão-de-barro, juriti, mãe-da-lua (urutau), martim-pescador, mergulhão, papagaio, pássaro-preto, pato-preto, pêga (ave grande e agourenta), perdiz, periquito, pica-pau (cabeça vermelha e bico torto), pomba-verdadeira (trocal), rolinha parda e pedrez (carinhosamente chamada de galinha de Nossa Senhora de tão mimosa que é), sangue-de-boi, seriema, socó, tico-tico, tucano, urubu.

Répteis

Jacaré-preto e teiú,

Ofídios

Caninana, cascavel-da-chapada, cobra-cipó, cobra-verde, coral, jararaca-da-campina e de cupim, jararacussu, quatro-presas e sucuri.

Batráquios

Jia, rã e sapo

Abelhas

Borá – mansa e brava (pau), cupinheira (cupim), arapuá (casa em galhos de árvores), europa (pau), jataí (pau), lambe-lambe (pau), mandassaia (chão), tataira (pau), tubi (pau), uruçaí (pau e chão),

Peixe (vereda)

Bagre, gongo, piaba, pintadinho e traíra.
A pesca é pouco comum, pois o acesso aos poços, no meio da vereda é muito difícil. É comum o sertanejo abrir buracos em alguns pontos nas margens para pegar os peixes.


CAÇADORES


Espírito da Natureza - deveria ser o título desta narrativa para repetir o modo das histórias contadas, aqui e acolá, pelos amigos do sertão, e das prosas dos antigos caçadores-de-espera.
O relato, aqui, é sobre a lenda criada pelos caçadores: "o Espírito da Noite”.
É mês de junho. Estamos cortando cerrado. Quem o vê nessa era, assim tão seco, todo jeito de tristeza, não sabe das belezas que ele encerra, a vida que ali regurgita, além da exuberante flora. Veado, raposa, lobo-guará, tatu, coelho, tamanduá, saruê, melete e outros bichos de quatro patas; ema, seriema, jacu, zabelê, inhambu, perdiz, coruja, arara, papagaio, jandaia e periquito – das aves; das cobras tem a jararaca-amarela e quatro-presas, que o homem "arrenega", mas que é essencial ao ciclo da vida. Tem o danado do ratinho miúdo...
Dos tipos de veados o campeiro é o que se vê beirando as campinas e veredas - pouco menor que o mateiro (comum das matas), tem o pêlo amarelo e o rabo branco e é, também, conhecido como galheiro - porque tem o chifre com muitas galhas, alguns até com doze ramificações. Outro é o catingueiro, de cor avermelhada, menor que o campeiro e com o rabo da cor da pele. As fêmeas do campeiro e do catingueiro são mochas.
O galheiro tem o costume de roçar o chifre nas árvores – é para tirar o cabelo que nasce nele – até ficar liso e branquinho. O bom caçador evita comer a sua carne, nessa fase - quando o chifre está sendo despelado ou está caindo, se teima em comê-la a sua urina fica com uma catinga que ninguém agüenta, dá até para ficar constrangido. Serve o chifre para fazer remédio - dos melhores é o pó para estancar hemorragia. Outra serventia: ornamentação de casa ou servir de chapeleiro. Hoje isto não tem a menor graça, mas no passado a explicação era plausível.
Saindo dos gerais e ganhando as matas e vazantes, chega-se ao ambiente do mateiro, que é um veado de porte maior, do tamanho de bezerro de ano e meio. A cor dele é castanho ou vermelho bem escuro, com o rabo da cor da pele.
Dos bichos, modo estranho tem o saruê (rabo pelado) que sobe nos paus à procura de ninhos de passarinhos, alimentando-se de seus ovos e filhotes. Do jeito que sobe ele desce, isto é, volta de costas, sem virar o corpo. Ele invade, também, os galinheiros, em busca de ovos e pintinhos. É um bichinho sonso, não se importa com o caçador na espera, rasteja sobre seu corpo. O gambá também sobe nas árvores para comer sementes, frutas e cupim. Ele é perigoso, gosta de atacar o homem com os dentes, mas a sua arma mais terrível é o gás que solta quando é acuado ou pressente qualquer situação de perigo – é um fedor que fica impregnado na roupa e que sabão e água não tiram, tem que jogá-la fora ou queimar.
Dos tatus, preciso é saber escolher. O peba – o cabeça-chata é o verdadeiro, é grande e se alimenta de mandioca, batata e raízes em geral; o pequeno, cabeludo, é o papa-defunto. Ninguém come, é fedorento; o preto e o galinha, muito apreciados. A farofa de tatu já teve seus tempos áureos, acompanhada de uma boa branquinha. Agora, dá prisão.
Há uma dúvida entre os caçadores: o tamanduá mata cachorro com a língua ou com as garras? O que todos dizem é que, quando se vê acuado, ele atraca o primeiro cachorro que se distrair e o abraça fortemente – é o famoso "abraço de tamanduá". Ali, quando ele crava as pontudas garras nas costas do cachorro, é que ele o mata – é o abraço mortal. Outros entendem diferente: que ele abraça o cachorro fortemente, mas só o mata quando enfia a comprida língua pelo focinho adentro do pobre animal – mata-o por asfixia. De certo são três coisas: uma - que seu abraço é terrível (se abraçar um homem, não o matando, só o solta quando ribombar um sino de igreja ou troar um trovão); outra - que sua língua é muito comprida e penetrante (ele a enfia nos formigueiros para recolhê-la cheia de formigas, o seu prato predileto), três – é um fato, ele mata o cachorro com que atraca.
No tempo da caçada livre, permitida de lei, era comum um caçador passar a noite aboletado numa rede esticada nas galhas de uma árvore, na espera – caraíba, pequi, mamoninha, embaré, barriguda, imbu-d´anta, pau-d´arco. Lá para as tantas, quando tudo sossegava, vinha o silêncio mortal e, então, o caçador sentia o "espírito da noite". Silêncio sepulcral – o "pesado silêncio das ausências!" Só isso, para alguns, era motivo de medo, principalmente os novatos da arte. Estrelas longe, muito longe, no céu, a única claridade, tudo um breu só. Quietude! Um estalar de dedo troaria como forte trovão, ribombando, ainda, mato adentro, rompendo o silêncio massacrante. De repente o espírito da noite bocejava, abria os braços e os sons estranhos, ampliados, iam se sucedendo. De todos os lados chegavam os mais variados sons, barulhão mesmo. O ouvido desacostumado levava a pessoa ao pânico e não são poucas as histórias contadas de caçadores de primeira noite que meteram a cabeça debaixo da coberta, perdendo a passagem de gordos cervos abaixo da espera, até mesmo saboreando, sossegados, camadas de flores da caraíba. Outras que aos berros acabavam com a espera dos companheiros, e outros, o que era pior, que desciam da rede com as calças borradas ou molhadas. Não é nada de fantástico ou exagerado, basta ficar numa noite escura, pendurado numa rede, no meio do mato, lá pelas tantas da noite.
E de onde vem tanto barulho amedrontador? Foi o João Quexedé, outrora caçador exímio, dos mais afamados, que me explicou a história: "é o corujão na espreita dos ratinhos – encontrados fora dos garranchos ou das tocas, num tem escapatória, ele sacode com força as asas e, zap, pega o bicho. O bater de suas asas no correr do dia não se ouve, mas à noite parece o bramir de uma folha de latão. E, quando o rato se movimenta nos gravetos, dá impressão de bicho pesado correndo, os galhos estrondam como se fosse o tombo de uma árvore. De espantar é o uivo da raposa – comprido e triste - no espírito da noite parece o urro de um grande animal; o caim de um cachorro, vindo de um rancho distante, parece estar no coração da mata... o som espalha muito e estronda".
O caçador acostuma, assimila o espírito da noite e passa a ser parte dela e, com sua astúcia, vence os animais. É o homem! Ele sabe distinguir cada ruído; até as mudanças dos cupins, debaixo das folhas – o ruído imita o chacoalhar da cascavel. O coelho indo de toca em toca, em cada galho que pisa, ou pulinho que dá, parece estar dando pancadas de machado nos paus; o passo do porco-do-mato, sem muito cuidado, ou o deslizar suave de uma onça, até o explodir da frutinha do miroró parece trovão, tudo, aos ouvidos acostumados dá para perceber do que se trata. O caçador se acostuma, assimila o espírito da noite e passa a ser parte dela.
Hoje a caça é proibida. Não sem razão, pois ela se tornou predatória, sem motivo e, em muitos casos, como dizem sem compaixão: um esporte
Antes não, o homem-sertanejo respeitava a natureza. Caçava sim, mas o estritamente necessário à sua alimentação e saúde. O animal não era apenas o alimento, era também o remédio: o óleo de capivara, do sucuri – remédios para muitos males; o chifre do veado; a bolsa do gambá; o casco do tatu; o dente do guará... quantos remédios tão benéficos e salvadores de vidas no sertão. Não abatia além do necessário, apenas para a sua sobrevivência - equilíbrio natural que vem do princípio do mundo.


ACARI

A história do rio São Francisco principiou no dia 4 de outubro de 1501, na mirada de navegantes portugueses. Com o passar dos anos ele foi sendo revelado aos homens, conseqüência da entrada rumo à sua cabeceira de modo diferente das Bandeiras – não foram as pedras preciosas e o ouro, a causa, mas as fazendas de gado.
O sertão bravio passou a ter donos e o Opará, Rio Grande, o São Francisco, ficou mais conhecido como “rio dos Currais”. Bandeirantes, e deles remanescentes, ocuparam as suas barrancas e, depois, o sertão, nascedouro de suas águas. Imensas fazendas, sesmarias até, para dar de ocupar tanta terra, em nome da Coroa, foram estabelecidas. Foi daí que teve início o importante ciclo do couro na outra ponta do ciclo do ouro, no Sul.
Depois da Conjuração do São Francisco, a Revolta dos Reinós, em São Romão, em 1736, também chamada Revolta do Sertão, a primeira acontecida na Colônia contra a Coroa, Manoel Pires Maciel deixou o Brejo dos Amparos (Januária), com sua família, homens e índios escravos, para se estabelecer numa extensa área numa região que se estendia de Serra das Araras ao Rio Urucuia. Recebeu mais: o pomposo título de “Senhor do Acari”. É possível que com sua presença tenha dado causa a dois fatos pouco relevados na região. Um deles está registrado por Diogo Vasconcelos: Domingos libertou os índios escravos que, livres, guiados pelo instinto sentiram o chamamento das matas e das águas do grande rio, onde, acostumados nas pirogas, duros embates enfrentaram a favor do seu senhor e, antes, cumpriram sua vida selvagem. A fazenda, embora virgem, mas por toda extensão só era servida de cerrado e algumas matas de galeria. Era farta de água de veredas, pouco propícias ao peixe e impossível do uso da canoa, o que contrariava o modo de vida dos índios, pois que viviam da caça e pesca. Isso se deu e, prevalecendo a força atávica, eles desceram o Acari até à sua foz, onde encontraram uma formidável barreira, ali fincando sua aldeia – o lugar recebeu o apropriado nome de “Barreira dos Índios”. Uma bela e extensa parede de barro levantada de dentro do rio a uma altura de mais de vinte metros, um belo ponto de espia, sem igual, nas barrancas do rio São Francisco. Aquele paredão feito de barro azulado, com nesgas ou manchas de ocre, também recebia em dezenas de locas bandos de jandaias e corujas no ajeito de seus ninhos.
Outro fato – sem registro histórico, mas passado pela fantasia criada, de geração a geração, com certo fundamento pelo que se vê na História de Minas Gerais de Diogo Vasconcelos - ali, na região, saindo também das abas da Serra das Araras, se estende uma formosa vereda, de águas puras e cristalinas, adornadas de praias brancas como algodão, a Catarina ou Catirina, para o sertanejo. Pois bem, Domingos era casado com uma princesa índia, mulher de rara beleza, que atendia pelo belo nome de Catarina. Fácil de imaginar porque aquela vereda recebeu este belo nome - nome da princesa índia. É factível.
De ouvir o que contam moradores da região e sertanistas, antigos caçadores (Rui e Leão), meu sentir fez a imagem do Rio Acari de antanho, assim: quase esbarrando nas fraldas da fascinante serra que risca aquela região, uma vereda maior encosta seu galho principal à pouca distância da vereda da Aldeia e, mais longe, à vereda do Feio. Ali um poço escuro, escondido no meio de moitas de capim e cercado de algas de verde-sumo, borbulha cristalina água – é a fonte principal de um belo ribeiro. Mais abaixo, de outras e tantas outras veredas, fiapos de água escorrem entre ramagens para engrossar o tronco principal e tem-se o formoso Ribeirão do Acari. Não muito corrido e ele já está a mostrar farturas de água, fortes correntes, todo propício de peixes e até jacaré; vira berçário de aves aquáticas e recebe, nas margens, no topo de imensas árvores, os ninhos das mais variadas aves do sertão. Corre em cascalho, rolando seixos brilhantes, ou sobre lajes lisas, escuras, abrindo locas como pilão; lambe o barro das barrancas, onde é de carreira mansa, quase parando por causa do modo de curvas demoradas, dando de querer estancar a jornada. Ali se formam os esconsos, lugares profundos no pé de elevados paredões, de cada lado, com acesso dificultado. Muito peixe. Muita caça.
Desce o Acari rasgando o cerrado e recolhendo as águas de tantas veredas: Mutuca, Cabeça de Negão, Barrocão, Onça, Marimbas e D´anta, as mais importantes e famosas. Recebe o Vieira e o Lajes, córregos mais aguados. Lá embaixo, já quase no ocaso da jornada, tem o beijo do paradisíaco Caldeirão para, por fim, deitar águas no seu destino, o Rio Grande, o São Francisco.
Acari - tantas e tantas histórias, uma lenda no sertão são-franciscano. Suas águas saciaram a sede do famigerado jagunço Antônio Dó e seu bando que assentaram quartel general em Serra das Araras; refrigeraram os soldados da Coluna Prestes na sua passagem pelo sertão serrano e, por certo, fantasiaram os olhos de Guimarães Rosa, quando traçou a trilha de Riobaldo Tartarana e Diadorim; molharam e alimentaram fazendas e fazendolas, dando vida ao sertão, ajudando a fazer riquezas e dar vida a muitos homens.
Acari de fartura de peixes – surubim até. Acari dos diamantes, faisqueiro famoso que foi, dado à graça do xibiu à formosa gema.
Hoje o Acari é de provocar dor machucante. A visão de seu leito de águas esmilinguidas, escorrendo com dificuldades entre bancos de areia. Osso só. Onde havia ponte para passagem de carro e cavaleiro, hoje se passa de pé sem a água molhar o joelho.
Lá dos cerrados, onde plantaram tantas quadras de eucalipto, onde tombaram eitos e mais eitos de paus, com correntões ou motoserras, a areia veio correndo com a água da chuva, uma violenta enxurrada para entupir o leito do ribeirão. Nas barrancas, as antes formosas barrancas de altaneiras e sombreadas árvores, de fartura de capim, escorre a areia, pois o homem resolveu levar o pasto e a roça a lamber as suas águas – nem um cordãozinho de árvores, arbusto ou capim braço-duro, como proteção, garantia para reter o entupimento.
O Acari está por cumprir a sua sina e o homem que o margeou por tantos anos já tem procurado os rumos urbanos.


VIEIRA


O ribeirão Vieira já foi valente tributário do Acari. Teve nome de importância e respeito no sertão serrano, cortando férteis terras, imensas largas de erar boi. Debruavam suas barrancas densas matas de copas fechadas a modo sombrear suas águas.
Na década de setenta por lá andei, em visita à fazenda de meu grande amigo Jarbas, nas vizinhanças de outro grande amigo, Zé Caçapa. Vi água com fartura e ouvi histórias fantásticas sobre a valentia do pequeno ribeirão que já causou muito susto e prejuízos a incautos motoristas. Naquele tempo, atravessá-lo exigia cuidados e muitos cuidados, pois seu leito era forrado de traiçoeira areia – se errasse a passagem ou se permitisse que o carro parasse a marcha, por um instante que fosse, era um problema: ele começava a ser tragado, lenta e inexoravelmente pela areia movediça. Podia dar sorte de conseguir umas juntas de bois e resgatá-lo antes que afundasse de todo na areia fina. O Vieira era surpreendente. Podia ser que, sem mais e nem menos, ele fosse tomado de violentas cabeças d´água que carregavam tudo que estivesse no seu leito ou que tudo tragasse de vez. Isso aconteceu com muitos carros. A última notícia, quando ele ainda se mostrava valente, foi o soterramento de um caminhão. O motorista não conhecia a pequena e traiçoeira travessia e bobeou o suficiente para que o caminhão ficasse preso. Aconteceu tudo muito rápido e o caminhão foi se afundando e afundando a ponto de não poder sair só com a força do motor, com o adjutório dos braços dos ajudantes - dependia de conseguir bois e isso foi tentar o motorista. No tempo de seu afastamento chegou a cabeça d´água e quando ele voltou só restava de fora a ponta do malhal da carroçaria. Só tempos depois, de passadas as chuvas, é que puderam, com muito trabalho e até se valendo de uma pá-carregadeira, tirar o caminhão da passagem.
O Vieira servia de suporte às fazendas que se estendiam ao longo de suas margens no cerrado serrano, formando um complexo hídrico de grande importância com o Acari e dezenas de veredas. Hoje ele tem o leito coberto de areia que rola da cabeceira, entre barrancos cobrindo, de lado a lado, a antiga calha do córrego – levanta poeira à passagem das rodas dos carros. Aquele sertão servido das águas do Vieira para saciar a sede do chapadeiro, apoio para a fácil criação de animais e desenvolvimento de projetos agrícolas, perdeu o dom, a dádiva fluida do cerrado. Restou uma marca, fruto da própria insanidade do homem: um leito de areia.
Agora, o chapadeiro vive das águas profundas do interior do solo, depende dos poços tubulares. O sertão está furado, por tantas e tantas bandas, onde se descobre um bom lençol d´água. Resolve-se o problema, mas é triste, pois não se vê a água em curso, brilhando, cantando nas barrancas, cobrindo peixes e seixos. Pode ser, também, que muitas vezes a água que vem do interior da terra, chegue com tantos problemas, como o calcário ou flúor em excesso causando males à saúde e prejuízos ao bolso. Mas não é tudo, essa fonte também não é inesgotável. Pode secar, pois a reposição está sendo prejudicada pela falta das matas que serviam para reter as águas das chuvas, facilitando a infiltração por suas raízes e retenção feita pelo acúmulo de suas folhas no solo – as áreas, antes de recarga, são, hoje, trechos nus, a água da chuva passa de liso, vai embora, provocando enchentes, arrastando areia...
O fim do Vieira e da vereda da Prata anunciam, também, o fim do Acari, já bem adiantado, que, por sua vez, dá amostras do que se reserva ao São Francisco.
A natureza dá, a natureza ensina, a natureza cobra.

LOCAS DO BOM JARDIM


Moradores da região contam que um veio de rochas calcárias deixa o barranco do rio Grande, na barra da Prata e, atravessando vazantes, por baixo do chão, vai brotar no barranco do Bom Jardim, num cais cravado de locas, bem perto, de novo, do Rio Grande.
Numa nublada manhã de novembro fiz uma incursão àquele sítio, na companhia de Alvino. Atravessamos o São Francisco e seguimos uma trilha pela vazante, beirando o rio, cortando o alagadiço onde se viam os resquícios da grande mata que cobrira, outrora, aquela região – enormes paus pretos, tamboris e jatobás.
Na fazenda de José Batista, plantada na margem esquerda do rio, bem em frente à igreja matriz, imponente no outeiro onde em passado distante imperavam os angicos, sobre as rochas, ainda tão visíveis e belas – a igreja sinalizou a vida ali plantada: Pedras de Cima, depois Pedras dos Angicos, mais tarde Vila de São José dos Angicos e, por fim, São Francisco. Buscando o passado distante, seria possível visualizar os chacriabás na espia, amoitados no famoso outeiro, cuidando de acompanhar as barcaças que singravam o rio, ora vindo da Bahia, carregadas de víveres, ora descendo das minas de Ouro Preto, levando precioso metal rumo à Corte. Por causa deles e bandoleiros que vieram a infestar a região é que, se diz, nasceu a civilização, ali, onde hoje floresce uma belíssima cidade.
Esbarramos na fazenda em busca do Marcelino, que seria nosso guia naquela incursão – Marcelino Pereira da Silva, nascido e criado na beira da Lagoa do Pinhãozeiro, das mais belas e famosas do município, ali pertinho localizada; ele, por muitos anos, esteve à frente do Sindicato Rural, foi dos fundadores do MDB em São Francisco, e teve militância no PT. Ultimamente andava mais sossegado, cuidando dos seus. Ali ele não aparecera. Foi uma grande frustração, pois pouco antes havíamos perdido outro companheiro de viagem, João Botelho, um sertanista de ponta – com um atraso que houve na partida, ele, temendo que ela não mais acontecesse, com o céu coberto de nuvens que estava, acabou agendando outras viagens para visitar túmulos de parentes idos, pois era dia de finados. Não desistimos. Um rapaz nos indicou o caminho da casa de Marcelino e para lá nos rumamos. Pouco rodado chegamos a uma trilha estreita, cortando espesso alagadiço e ganhando uma suave subida, saindo da vazante, nos surpreendeu, em atirada carreira, numa velha bicicleta, o nosso guia: Marcelino. À visão inesperada do carro ele por pouco não se embrenhou pelo alagadiço – parou a bicicleta com dificuldade, quase caindo. Desculpas dadas seguimos rumo às locas do Bom Jardim. Primeiro passamos pela sede da fazenda Renascença formada pelo Cel. Oscar Caetano Gomes. Ela não guarda o brilho e a azáfama do passado, com dezenas de pessoas formigando pelo imenso terreiro, ruelas e estradas que levavam às casas de colonos e a outras fazendas da região. Muitos colonos eram retirantes baianos, motivo de interessantes histórias que me foram passadas, algumas, pelo vaqueiro do Coronel, o Casimiro.
Deixando a fazenda, alcançamos uma enorme ponte de madeira sobre o córrego Bom Jardim. Era ela muito alta e extensa para o minguado de água, quase um fiapo, a escorrer lá embaixo, tudo resultado do que vinha ocorrendo nas cabeceiras, no cerrado. Aí, Marcelino, explicou: "se chove com vontade, pode não parecer verdade, a água lambe e, às vezes, passa por cima da ponte, cobrindo toda a vazante dos lados..." Deve ser, é claro, coisa dos bons tempos, pois até a chuva tem sido tão escassa no sertão e o Bom Jardim, de costume, anda contido nos baixos barrancos.
Mais além da ponte atravessamos uma ponta de mata. Marcelino mais uma vez acudiu em noticiar: "esta fazenda é de um homem de fora, muito rico. São mais de 300 alqueires de mata, vazante e cerrado, tudo ainda virgem, com muito bicho, aves e plantas. Isso aqui dá para fazer um bruto parque ecológico". Dá mesmo. Num ponto percebemos que, por baixo das grandes árvores, a folhagem havia sido devorada pelas chamas – foi uma queimada ocorrida dias antes, cujos rolos de fumaça foram percebidos, com espanto, lá da cidade. Felizmente o estrago foi mínimo, só consumindo o lixo, sem afetar as grandes árvores. Num ponto da estrada tivemos que deixar o carro, pois ela fora bloqueada por árvores tombadas na última tempestade. Andamos quase três quilômetros beirando a cerca da fazenda agora da CROS (Construtora de Montes Claros que segundo Alvino, ali desenvolve um projeto agrícola sustentável) chegando às margens do córrego Bom Jardim, quase escondidas pelas folhagens de imensas árvores. Ali o barranco desce, em inclinação bem suave, até às águas do córrego que vão mais além, por baixo das folhagens espessas das galhas pendidas das árvores fincadas ao longo das duas margens. Dado a proximidade do rio São Francisco o Bom Jardim nos pareceu farto de água, um poço fundo e até mesmo de boa largura: a água esverdeada, refletindo a folhagem, estava quase parada. Não havia outro ponto de chegada às águas, com aquela facilidade, pois para baixo o mato era denso e as árvores tomavam conta do barranco e, acima, ele caia abruptamente ao leito. Nossa incursão seria a montante, em busca das grutas e logo o grau de dificuldade se mostrou, pois o trajeto teve que ser feito através de uma ladeira íngreme, segurando raízes, cipós e frágeis troncos de pequenas árvores que não conseguiram vencer a sombra, ficando para trás na busca do sol. Chegamos a uma densa alfombra com os pés afundando na folhagem seca, marronzada, e na terra úmida. Com custo chegamos às locas. Tantas. A principal delas tem uma boca singular, imitando um portal, perfeitamente retangular, com a altura de três metros e a largura de quatro ou cinco metros. Um pequeno salão e um túnel escuro, à esquerda. "Foi aqui – lembrou Marcelino – que Marciano encantou e por fim matou uma pintada. Diz o povo que ele entrou neste túnel apenas com a zagaia na mão" – Marciano era um grande caçador de onça, um tipo folclórico muito espirituoso que, de uma feita enveredou-se para política tentando a vereança. Dele é a frase célebre, na sua última tentativa, após alguns fracassos: “Se não houver sussura nem traiança dessa vez eu me alejo”. Lembramos do caso da onça e, em seguida, lamentamos um descuido: a lanterna ficara para trás, muito para trás e, assim, ninguém se aventurou adentrar na gruta, mesmo porque o Marcelino achara de evocar a história da onça do Marciano e, ainda, de remendar dizendo que ali era morada de cascavéis – bichonas que, de tão velhas e grandes, tinham até chifres. Ficamos, pois, no contato visual da entrada – com direito a retratos – e no olfato, com o fartum enjoativo que marcava a presença dos morcegos, senhores das trevas.
Das locas seguimos o Marcelino rumo ao cais – era preciso ver o cais, dizia ele com muita ênfase. Subimos mais barranco e ganhamos uma trilha no meio da mata. O ar era úmido, muito fresco, pois chovera dias antes e o céu ainda estava nublado. A mata parecia agradecer a grande dádiva – é deveras, sem ela, a chuva, nada acontece no sentido da vida e tudo leva rumo à morte. O sertão, a mata, tudo espera a água do céu, para se fazer de novo. Foi o que vimos vencendo a trilha escolhida pelo Marcelino: pau-preto, cedro, ipê, angico, putumuju (de madeira dura como aroeira), aroeira, jatobá, pereiro, todos de troncos bem fornidos e altas copas, mostrando a idade, dando conta da imponência daquela mata, exuberantemente verde e cheirosa. O chão úmido, forrado de folhas marrons e pretas, muitas carcomidas, em fase adiantada de decomposição, cobrindo sementes – calor e umidade, para ser possível a vida. Aqui, e mais além, um pau tombado, pela idade adiantada ou pela ação de um raio - sendo madeira branca, muito depressa vira húmus, se for aroeira, como algumas encontradas, resta o cerne bruto, duro como ferro, livre das gangas, uma testemunha de dezenas ou centenas de anos corridos no tempo.
Detemo-nos um bom tempo debaixo de imensas embarés - comumente elas são encontradas em grupos de três ou mais, como imensas torres, às vezes bem juntas, o que é facilitado por terem a copa muito pequena e rala, com maior destaque para os galhos semi-pelados que imitam braços magros erguidos ao céu. Ela tem o tronco dilatado, absurdamente dilatado em relação às outras espécies da mata – daí ser ela comumente chamada de barriguda – aqui se faz uma distinção: embaré é a bombacácea que tem o tronco grosso quase que por inteiro – é mais fino bem próximo do solo e, lá em cima, bem próximo da abertura da copa. A bombacácea que chamam por barriguda traz o tronco densamente coberto de acúleos e ostenta uma imensa barriga – imita a pessoa barriguda, ou seja, tem a base fina (como as pernas) a parte do meio proeminente como uma barrigona e a parte superior fina. Ali estávamos a admirar três imensas embarés, com sua copa raleada, de poucas folhas verdes, brotos recentes, talvez depois da chuva de dias atrás. No chão úmido, coberto de folhas, dezenas de sementes/flores – elas são especiais, são cápsulas aladas que nos levam a compará-las a algumas naves estelares de filme de ficção: um cilindro encerrando uma gelatina cor de ouro acondicionando o embrião que, ao tempo certo, fura a membrana e solta uma haste branca, a plantinha, e pequenas garras, as raízes, tão tenras e delicadas que nem é possível acreditar que, com o tempo, se transformarão numa imensa árvore; dela destacam-se cinco aletas, como asas de fina membrana, o que permite o vôo da flor, levando a semente para maiores distâncias, lugares propícios de nascer sem a concorrência de suas parentes. A cápsula tem uma cor amarelada, lembrando o ouro. Uma verdadeira obra de arte e de vida... Aprofundamos na trilha, procurando ficar longe das garras de variedades de espinhos, entre eles o terrível cansanção, até que nos chamou a atenção o Marcelino: "olhem aí duas mudas de embaré; essas aí se livraram do gado...” - o gado e os veados comem a flor, a semente e até a mudinha, com suas folhas tenras. É fascinante sentir e poder tocar na renovação da vida da mata. Não era um fato comum e, numa ocasião como aquela, eu precisava me aprofundar e viver aquele milagre – a perpetuação das espécies, o que acontece sempre à nossa volta e que pouco valorizamos, como se tudo fosse normal, casual. Voltei um pouco atrás e fotografei com admiração as vetustas árvores, destacando seus troncos grossos e a copa tão alta de expansão reduzida – o baobá do nosso sertão, como observou um dia o meu amigo Dirceu Lelis, que nada ficava a dever, em beleza e grandeza, à cantada árvore das savanas africanas, primas das nossas.. Colhi, do chão úmido três flores/sementes – numa delas se via o germinar da vida: um fiapo branco de raiz (ou haste do tronco) varava a cápsula que cobria a gelatina, para ganhar a luz. Fotografei-as, bem como uma pequena árvore, uma delicadíssima silhueta, uma haste com a grossura de pouco mais que um lápis de carpinteiro, sustentando uma copa de três ou quatro folhas, numa competição tão desigual com árvores crescidas, muitos cipós e tantos outros arbustos. Contudo, em pouco tempo, ela seria mais uma gigante na mata, lá no alto a receber, antes das outras, a luz do sol e a refletir o prateado da lua. Continuamos a jornada, encontrando na trilha uma camada de cascalho branco, liso e maior do que o comum. Marcelino disse que ele cobria toda a extensão conhecida da loca que visitáramos antes. Na trilha deparamos com um cipó conhecido como "Escada de Macaco". Marcelino logo adiantou, diante de nossa estranheza: "Da casca dele, raspada, é feito um remédio muito bom para tratar de dores da coluna". Interessante: o cipó, enquanto procura ganhar os galhos mais altos das árvores, vai formando várias escadinhas, por onde, certamente, sobem os macacos, o que justificaria o nome.
Chegamos ao cais: um enorme paredão com mais de duzentos metros de comprimento, visíveis, e seguramente uns dez a quinze de altura. Sítio muito bonito, agressivo e imponente. O cais é formado por imensas lajes de calcário, superpostas, tão coladas que sugerem ser um grande monólito; muitas reentrâncias formando covis de serpentes ou locas de pequenos animais, nos esconsos escuros; pequenas furnas abertas pela ação secular das águas do Bom Jardim em tempo de cheias sugerindo trabalho de escultor. Lá do alto, raízes de imensas árvores abertas ao céu, enquanto, em sentido contrário, os galhos se encontravam mergulhados nas águas profundas – muitas árvores foram arrancadas pelas enchentes ou tombadas pelo vento, só por terem nascidas nas fissuras das pedras, sem terra para firmar as raízes. Lá embaixo, um poço imenso de água de um verde muito carregado – tanto para cima como para baixo, o Bom Jardim era lambido pelos galhos tombados das árvores ou moitas espessas de capim, cujas raízes estavam cravadas no seu leito, ali no barranco. Aquele mistura de água e verde do mato dava uma impressão de ser bravio e virgem, aquele sítio, embora não o fosse, pois segundo o Marcelino - os moradores da região sempre para lá escorregam para pescar. Deve mesmo ser bom de peixe, pela profundidade das águas, pela proximidade do Rio São Francisco, pela quietude e abundância de frutinhas que caem naquelas águas.
Olhado, admirado e vivido cada minuto daquele sítio tão pródigo, luxuriante e virgem, voltamos ao ponto de partida. Passamos, antes, em um lugar bem afastado do cais, por uma caída de terreno, cercado de troncos de aroeira estendidos no chão e moitas de tipi (arbusto miúdo, de folhas verdes e de cheiro forte, imitando guiné, também usadas nas garrafadas de cachaça para curar uma infinidade de doenças): uma das saídas das locas antes vistas (ou entrada das águas). O fedor forte indicava a presença dos morcegos, o que apressou a nossa passagem. Seguimos o caminhar da volta. No arrastar das pernas, já extenuado, dando corda ao espírito, pedi ao Marcelino que falasse sobre a mata – como viviam os bichos próprios daquele habitat e como se alimentavam. Ele explicou: "Tudo tem seu tempo. Até agora, no rigor da seca, os macacos se refastelavam da mutamba que é abundante até à chegada das chuvas; tem ainda as floradas diversas: embaré, ipê, tamboril, que ainda fornece, com muita abundância, a semente; a resina do angico e jatobá; os cipós; o umbu, as raízes e uma infinidade de plantas que só eles sabem do sabor..." Eles quem? "Macacos, barbados, veados, capivaras, queixadas e a passarada...". E as onças? "As onças, quando aparecem, pois hoje são raridade, chegam para comer os bichinhos incautos que saboreiam as flores do chão, distraidamente. É o ciclo da vida...".
Em pouco tempo já rodávamos na trilha e eu ainda sentia na pele o frescor da mata, no espírito, a grandeza de Deus... e a pequenez do homem, quando os olhos esbarram nas cinzas de imensos troncos queimados no leito do mato...


LAGOA BONITA


Uma caburezinha, descansando no esteio de uma porteira, na fazenda Renascença, se disfarçava na espia do mundo, rodando a cabecinha como um periscópio, piando, piando, na expectativa de uma pequena caça. De repente, perturbada na sua paz, sem espanto, abriu um olho e alçou vôo sereno, como é comum às corujas, até a uma galha seca de xixá, mais além: foi a nossa chegada, regressando das locas do Bom Jardim. Atravessamos a porteira e tomamos a estrada que se estendia pelo topo da vazante antes percorrida, serpenteando o que em tempos recentes era só mata e agora guardava poucas lembranças: uma moita de surucaba, toda verdinha; pau preto de copa cerrada com a folhagem verde-sumo; tamboril recoberto de delicadas folhas de brilho cintilante por parecer filtrar a luz do sol e moitas de embarés. Pouco tempo avançado percebemos a mudança da vegetação: surgiu a roupagem do cerrado e a estrada que antes mostrava o leito de barro, cheia de buracos duros, parecia uma cama de areia branca, fina, macia e gostosa de nela rodar. De tantos em tantos metros, algumas poças d´água. Curioso: a areia que forra a estrada é branca e fina, mas por baixo é constituída de barro preto impermeável que segura a água das chuvas por mais tempo que a acumulada nos buracos das estradas de cascalho. A estradinha avançava pelo cerrado, torcendo e retorcendo, como cobra em deslizar distraído, preguiçoso de ir e sem pressa de esbarrar. Ao longo de suas abas um capricho da natureza, uma vistosa e rara aléia toda misturada de sambaíba, jacarandá, pau-santo, gonçalo, caraíba - das mais baixas, em primeiro plano - e, mais afastadas, imponentes em sua altura, naquele mundo de vegetação nanica, e com rara beleza, a sucupira, a piúna, a folha-larga e o pequizeiro, que, no ganho das flores, fazem dos gerais um jardim admirável. Mais chegado ao branco da estrada, distância a distância, encontramos solitárias ciganinhas, de vermelho aberto às abelhas, uma só flor a bailar na haste comprida e, ainda, arbustos mais fechados, com o verde pintado pelas as amarelinhas. A estradinha vai cortando trecho rumo à estrada São Francisco – Brasília-DF e Chapada Gaúcha, nos gerais denominados serranos, conhecida como Ruralminas.
Esbarramos numa bonita fazenda, de novidade o curral forrado de madeira – incomum na região que quase sempre é de estação seca e de poucas umidades. Parada abençoada, na casa do vaqueiro, de poder aplacar a sede com água fresca das profundezas do cerrado – água sem igual, carregada dos sabores filtrados de veredas de terras acima. Fiquei sabendo ser a fazenda de Luiz Carlos e de minha amiga Rose, - ali ela descansa, de quando em quando, das lides na secretaria do Fórum da Comarca; de ficar revigorada e abençoada pelas essências da mãe natureza em toda sua exuberância e pureza!
Viagem. A estrada, de repente, desemboca numa imensa clareira, sugerindo o início de uma campina, tão comum nos gerais. As árvores não vão além um passo ou uma cova, ficam perfiladas numa linha curiosamente bem delimitada. O capim ralo, de haste arredondada, espetado para cima, cobre a areia branca. "É aqui, chegamos na Lagoa Bonita", anunciou distraidamente, Marcelino. Desde o começo da viagem eu esperava aquele reencontro. Daí, cheios de emoção, os olhos descortinaram a lagoa, a Lagoa Bonita, perdida no coração do cerrado, sem buritis, pindaíbas, embaúbas. Água nascida e parada sem ganhar caminhos no rumo do rio.
Marcelino cuidou das histórias, talvez para disfarçar nossa decepção e tristeza por encontrar, da lagoa, só o vestígio. "Aqui, em quatorze, dizem os mais antigos, corria água com fartura, escorrendo por um grotão até atingir a lagoa do Pinhãozeiro, na vazante do rio. Contam outros que o nível dessa lagoa sempre variou de acordo com o nível das águas do Rio Grande (Marcelino só se refere ao rio São Francisco, como o Rio Grande, como fazem os moradores da região, os mais antigos) Se o nível subia no rio, o mesmo acontecia na lagoa; se descia lá, as águas da lagoa também baixavam. Para uns havia um tune debaixo da terra, bem fundo, ligando o rio e a lagoa, por onde passavam os peixes, tal era a fartura deles na lagoa." Marcelino deu um tempo, uma risada matreira e, depois, emendou com cara de quem avança no absurdo como fosse parte dele: "Mais misteriosa é a história guardada e passada pelos antigos da região e moradores aqui por perto: em certas noites escuras um vapor todo iluminado singrava as águas mansas da lagoa de um lado para o outro, por tempão sem fim e inté apitava saudades".
Essas aparições, fenômenos sobrenaturais ou encantamentos, têm raízes ou narrações similares em tempos distantes e plagas outras, além-mar até, nas origens da raça brasileira. Da Etiópia - de lembrar aqui - nos chegam notícias de rituais de fé e respeito ao Abay que enche o bucho do lago Lana, para com outros cursos, depois, dar forma ao grande Nilo Azul que rasga, em grande velocidade, sem parar, as terras áridas daquele país até serenar nas planícies do Sudão, juntando-se, então, ao Nilo Branco para buscarem o Mediterrâneo, levando as histórias africanas. Os ribeirinhos de lá contam que nas águas do Gihon (mais um nome dado ao Nilo Azul) vive um rei também chamado Gihon: "Há noites em que ele sobe à superfície, com todas as suas luzes. Se nesse momento ele vir alguém pode atacar. Por isso era preciso olhar para o outro lado".
As narrações, também, dão conta da existência de pequenos diabos nas profundezas de suas águas. Seres capazes de mudar de forma... Aqui, no Rio Grande, temos nossas entidades: caboclo d´água, surubim de cabelo do palácio encantado e, no cerrado adentro, o Romãozinho, o Famaliá e tantas outras...
As lendas sobre a Lagoa Bonita levam à idéia de que ela era imensa, no passado. Não sem razão se observados, hoje, os vestígios de sua aguada: a bacia lambia a borda do cerrado e, de lá até ao pinhão, vão muitos metros, possivelmente de duzentos a trezentos na largura e muito mais no cumprimento (partindo do piloto). Era ela imensa, para aquelas condições, em pleno cerrado, sem motivo a justificá-la: paus, plantas rasteiras, matas, nada... só o cerrado agreste, areia branca, paus tortos...
Marcelino lembrava com saudade, pelo que sabia por ver e por ouvir, dos tempos passados: "a vida tinha graça dentro e em volta da lagoa. Não acabava a festa dos bichos dos gerais. Dos céus chegavam, em bandos, os ariris, paturinhos, jaburus, garças, martim-pescadores e mergulhões que se fartavam, o quanto precisassem, de muitos peixes, plantas e bichinhos comuns das águas. Outros passarinhos chegavam para molhar as asas, agitando-as, acompanhando aquele exercício agradáveis piados. Bando de veados, pacas e capivaras, no aproveito da água fresca, abundante. Água farta para os animais de cria, para os homens da região toda e até mais: muito peixe para eles. Eta! que tempo bom!" Suspirou a saudade e continuou sonhando: "À tarde, era bonito de se ver a arribação das aves querendo os ninhos ou pousos, no abrigo da noite chegada; voavam para os lados do rio ou beiradas de lagoas ou até mesmo para os tabuleiros, em busca dos paus mais altos. Os ariris barulhentos, em vôos baixos; os jaburus em mais alto, bem mais alto, em majestoso vôo de cerração; as brancas garças de pescoço torto, ruflando as grandes asas com jeito de preguiça; os paturinhos, os mergulhões em duplas ou grupos, num vôo rápido, todos catando os últimos raios de sol que ainda inundavam o espelho da lagoa para não perderem o rumo do pouso. Vinha o silêncio da noite: o pio das aves noturnas, o quebrar de folhas dos coelhos, ratos e bichos noturnos, chegavam ao mundo da escuridão. E o homem, das frestas da janela, ficava na espia guardando vontade de ver o vapor iluminado”.
Tempos passados eu também vi um pouco dessa lagoa, ainda um belo espelho no meio do cerrado. Tenho ainda na lembrança o espanto pelo qual fui tomado quando, sem sinal nenhum, entrei nessa mesma clareira. De nada sabia, então. A lagoa, no meio do cerrado, àquela época me lembrou um oásis, no deserto e me ocupou de emoção.
Eis-me, mais uma vez diante dela, ou melhor, do que restou dela, depois do ciclo do carvão, por desdita, naquele cerrado. Lá estavam os vestígios do agente destruidor: um rancho abandonado à sombra de um pequeno bosque de eucaliptos, marcas registradas da degradação do cerrado. O que restou da Lagoa Bonita? Um fiapo de água rodeado de taboa; o barro rachado com gretas ainda umedecidas pelo sopro final das águas que desaparecem chão adentro ou em vapor feitas. Do pinhão até ao ponto onde antes era a borda da lagoa, apenas a terra preta, coberta de capim e moitas de sambaíba. Uma desolação.
Em pontos mais distantes do pinhão da lagoa vê-se algumas cacimbas que os moradores locais estão abrindo para se proverem de água, para o consumo e para dar aos animais que não podem chegar ao que restou da lagoa, pois podem ficar atolados no barro traiçoeiro, escondido debaixo da rala lâmina d´água e, ali, morrer como muito acontece nas eras de seca no sertão.
Levei anos para voltar à Lagoa Bonita, melhor seria que tivesse ficado apenas com a antiga visão. O boqueirão está seco há anos; agora foi a vez dela, como vem acontecendo com dezenas de veredas e, numa extensão muito maior, e mais grave: com o nosso Velho Chico.
Apenas para ludibriar a realidade e deixar-me nos sonhos e fantasias, fico com uma imagem apoiada no lendário, ainda que triste, na conclusão, porém menos catastrófica em relação às fontes do cerrado: a Lagoa Bonita não está cheia porque há muitos anos o rio São Francisco também não pega uma cheia. A ligação é entre os dois.
De volta a São Francisco um consolo na observação do companheiro Marcelino: "O cerrado já está vestido de novo, bastou um pouco de chuva. É diferente da mata que leva mais tempo para trocar de roupa".
Estava visto: de todas as árvores, grandes ou pequenas, tortas ou eretas, bonitas ou não, o verde explodia – ora viçoso; ora mais suave, porém numa alegria só.


MATA SECA



Minhas jornadas estavam sempre concentradas no cerrado. De uma feita, em companhia de professores pesquisadores da ONG PRESERVAR, de São Francisco, fiz uma incursão pelas bandas da margem direita do rio, rumo ao povoado de Santana de Minas (antiga Jibóia), passando pelo vale do Mocambo. O objetivo da excursão era acompanhar a transição da mata seca para o cerrado, permeada pela catanduva que se estende daqui até às regiões lindeiras da Bahia, sempre margeando o São Francisco. Uma paisagem oposta à do cerrado. Embora possam ser vistas árvores enormes e belas, como as aroeiras e as imburanas vermelhas - curiosamente elas sempre estão juntas, casadinhas - onde se vê uma lá está a outra, embora sejam de espécies distintas. A aroeira madeira especial para moirões, postes, armação de casa e peças para curral; a imburana madeira macia, muito utilizada para fazer caixas, violas, rabecas e todo tipo de escultura. E vê-se o majestoso umbuzeiro, moitas de algodão de seda que indica terreno árido. Sequidão de fazer dó, nenhum risquinho de água no chão. Tudo tem ser de obra dos poços tubulares ou tanques a céu aberto para receber a chuva, quando vem. A vaqueta, com suas folhas marronzadas presas aos caules finos, sem expressão. Ali e acolá um São Gonçalo de caule riscado, em tiras delicadas; a mamoninha, toda cheia de utilidade – diz Botelho que o óleo dela carece de ser estudado pelo tanto de uso que tem no sertão para cuidar da saúde do homem; de sobra é, ainda, excelente combustível. Chegando às depressões, por onde já correu água, em tempos passados, como o riacho do Mocambo, destaca-se a mata de galeria, mais verde e pujante que as outras. Ali as frutinhas abundantes da saboneteira imperam - servem para o sertanejo ensaboar-se. Estão se esbarrando nas gameleiras, jatobás viçosos e esplêndidos tamboris. Saindo-se daquela depressão, volta-se à mata seca que se estende até ao povoado de Santana de Minas. Para frente, o cerrado.
Outro contato que tive com a mata seca foi em uma viagem que fiz, em companhia do meu genro André, para acompanhar a Folia de Bom Jesus da Lapa e visitar a oficina do artesão Minervino, no Angical. No caminho esbarramos na casa do professor Pedro Vieira Soares, líder na região, Uma bonita e singela casa erguida na orla da mata que, mais acima, vai vestir a serra da região. Do lado da casa uma portentosa barriguda, fazendo figura com a antena parabólica, uma agressora da paisagem, hoje tão comum na região. Quando lá estive (agosto de 2000), no pico do inverno, o que se via era um sertão adusto, de flora decídua. A mata perde a vestimenta toda, é só braço nu estendido para o céu, nem uma folha sozinha – é a mata seca. Era ela cortada por uma estrada exposta à soalheira, desagregando partículas de areia ou pó, do barro antes liguento. A impressão passada é que tudo pode pegar fogo num estalido.
Postamo-nos à entrada da mata, quase debaixo de uma imensa gameleira desfolhada que estranhamente levantou o tronco por ali, com seus imensos braços abertos e pelados. Indescritível aquela beleza áspera, bravia, com a galharada seca, tão seca, em tom cinza brilhante. De quando em quando soprava suavemente o vento, vindo dos lados das fraldas da serra, era a canção da mata seca - ulos da brisa cortando aqueles braços esquálidos de árvores sedentas de chuva. Uma canção triste, mas, ainda assim, bonita e comovedora. Vinha do sopé de uma pequena elevação (no município de São Francisco não existem grandes elevações, só se contemplam gerais e vãos) lá para os lados do Angical. De repente, sentimos um brando cicio chegar aos ouvidos – era a brisa que vinha serpenteando a serra, rodopiando pelos boqueirões, sem pressa.
Uma batuta mágica por certo lhe indicou, a seguir, outro movimento, o crescendo, levando-a à volúpia das grandes sinfônicas no reunir de todos os instrumentos, em tonalidades diversas – a mata explodiu em música harmônica e melodiosa. A brisa, mais forte com os sopros quentes, rebatidos nos contrafortes da serra, buscava escape pela mata adentro, agitando os galhos secos e as folhas rasgadas das vaquetas – teimosas de cair à espera das primeiras chuvas – cascas secas eriçadas, sem pressa de deixar o tronco de sua vida; buracos cavados por pica-pau; um ninho de joão-graveto – majestosa arquitetura de paus secos - pendurado numa galha; a portinha da trabalhada casa do joão-de-barro; as luras de coelhos ou corujas – tudo produzia os mais variados sons, compondo uma bela e indescritível sinfonia, a música da mata-seca que não vai além de três excitantes minutos, mas que se transforma em eternidade no espírito de quem a sente e ouve. Êxtase!
Voltei à casa do Prof. Pedro, por capricho, no mês de janeiro, depois das chuvas – parcas, mas caídas. Tudo estava milagrosamente transformado. Inacreditável, não podia ser o mesmo local. A barriguda exibia folhas verdes que vieram substituir a delicada floração que se desprendera no ar; os braços da gameleira também estavam forrados de denso verde, estendendo-se além, sobre as vaquetas com seu verde pardo. Mais abaixo, o joá-mirim coberto de folhas verde-sumo, cheio de frutos a saciar os passarinhos. A estrada antes poeirenta, parecia uma estradinha de pintura, com suas abas forradas de verdes matos rasteiros e de arbustos, antes de cor cinza, agora verdes e até floridos, alguns. Chuva-água, a sagrada dádiva do sertão, faz a vida pular, saudar, dançar e cantar.


UMBUZEIRO


A mata seca tem suas dádivas e a maior delas, para o sertanejo, é o umbuzeiro. Euclides da Cunha, em suas incursões pelo sertão baiano, no contato permanente com o sertanejo e a agreste natureza, conheceu o umbuzeiro que cognominou “a árvore sagrada do sertão”.
O umbuzeiro aparece nos lugares mais secos, no meio das pedras, onde pouca planta viceja. Cresce sem capricho das formas, todo esgalhado, desajeitadamente, de copa imensa; é de pouca altura, atingindo de 3 a 5 metros. Os galhos finos envergam-se e alguns chegam a lamber o chão; outros avançam para os lados ou para cima, crescem desordenadamente. Não tem galho fornido de subida, é tudo como vara, verde, cheia de brilho. No correr do ano, como é comum às plantas da mata seca, caem-lhe partes das folhas, o que leva o sertanejo a uma engraçada observação – “na seca ele fica pelado, nas águas ele dá...”. As varas ficam à amostra. Isso, no entanto, é o prelúdio para explosão de uma das maiores belezas do sertão agreste, do mundo marronzado de folhas caídas: o umbuzeiro se veste de anjo, cobre-se de milhares de miúdas flores brancas, alvíssimas. Em agosto é que acontece. Então, ao entrar na mata seca ou cortar por regiões de pedreiras, depara-se com o vergel do paraíso. A natureza se transforma de admiração, tudo deixando ver aquelas pomposas árvores cobertas de branco, meio a cactus descoloridos com os dedos espetados para o céu ou troncos escapelados da imburana vermelha. Vem a chuva, pouca que seja, não importa muito, pois as raízes do umbuzeiro sabem o caminho das umidades e vão buscá-las longe, penetrando nas gretas, entre as pedras, ou no solo seco da catanduva e aquelas florzinhas mimosas vão se transformando em bagos verdinhos: vem chegando o umbu, o delicioso fruto. Miudinho ele já pode ser consumido, misturado ao sal: tem um azedinho todo especial, que apetece sem incômodo. Bonito de se ver é a cobertura dos frutinhos – a densa folhagem que explode com a mudança do tempo, de verde-sumo lustroso, que, maceradas, desprendem um cheiro agradável, boas de serem mascadas. O sertanejo a aprecia para refrescar e perfumar o hálito. Frutos formados começam a ser colhidos às mãos (ou latas) cheias e levados para os mercados ou para serem vendidos de porta em porta por um sem número de colhedeiras que deixam o campo, de madrugada, enfrentando, com sacrifício a estrada. O fluxo maior vem do Brejo dos Angicos e do Croá, cerca de 8 km da cidade – ali, meio às pedreiras, numa formosa mata seca, é elevada a incidência dos umbuzeiros, quase enfileirados, ao modo das veredas, com seu buriti. E tem de toda qualidade: do grande, pequeno, cabeludo, marronzado, doce e do azedo. É tempo de dinheirinho extra em casa, para os moradores daquela região.
O umbu é um fruto apreciadíssimo, in natura, ou como umbuzada – é cozido e ralado ou batido no liquidificador (na roça é passado na peneira), adicionando-se leite e açúcar. Tem sabor especialíssimo e é muito nutritivo. Pode ser feito, também, o suco. Do fruto é feito um delicioso doce que guarda suave e palatável acidez. Do fruto aproveita o homem, para o consumo, na roça, e para vender na cidade; aproveitam-no, ainda, o gado, o veado e outros bichos.
O umbuzeiro oferece mais, principalmente nas regiões muito secas, como no nordeste. Ele é resistente à seca, e suas raízes horizontais, tuberosas, bojudas, cujas intumescências, de textura fofa, armazenando grandes quantidades de água, socorrem o homem sedento, quando preciso.
E tem mais: nas grandes secas os tubérculos radiculares são transformados em uma farinha alimentícia ou cozido com outras raízes a que dão nome de brô..
Bendito sertão e abençoada mata seca, que compensam o homem sofrido, num mundo agreste, com tantas bondades e riquezas, tudo das mãos do Criador. É saber tratar e zelar para não acabar, como vem acontecendo com tudo que foi recebido de graça.


BREJO DOS ANGICOS






Uma incursão fiz no período da seca, mês de julho, na fazenda Brejo dos Angicos de Leonides Dourado, a treze quilômetros da cidade, entrando pelo Croá.
Foi uma caminhada de mais de três horas acompanhando o guia, Juarez, capataz da fazenda, fabricador de pinga e engordador de boi – entre eles um belíssimo exemplar de caracu. Deixando o curral, na frente da casa, toda enfeitada de hibisco, os olhos foram jogados para cima, pois a caminhada foi por trilhas, tortuosas trilhas, nos taludes e rampas forradas de tauá solto, beirando grotas profundas, abertas pela forte enxurrada que despenca lá do alto da serra e vai com valentia, rasgando a terra, desnudando pedras calcárias e arrancando árvores até esbarrar no Boi Morto, no talvegue da baixada que tinha de mostrar a única vegetação verde de todo o lugar. O difícil caminho era contornado de pequenos arbustos que nem varas secas, magras e desvalidas, abertos em galhas finas sem proteção de folhas. Tudo seco de esturricar. O chão ficava, pois, à amostra até à distância, entre as varas e no rumo do caminho vermelho ou amarelo, de conforme a textura do tauá. Daí era possível de ver, em lugares salteados, moitas do pau pereiro – famoso pela primazia serviçal do melhor cabo de enxada e enxadão - com sua flor peculiar, de ser mais um fruto verde, fechado em maçã que de pétalas possuir – por isso que no batuque do Carneiro ouve-se o refrão: “pau perero, pau perero; êta pau de opinião; todo pau fulora e chera, só o pau pereiro não”. Apareciam, brotando de frestas nas pedras, os umbuzeiros - próprios de terra seca, desprovida de água de superfície. Deles uma visão agradável: as mimosas florzinhas, se soltando, forrando as copas como um vestido de noiva ou asas de anjo. Vencido o primeiro trecho, um tabuleiro quase ao pé da elevação, o esforço se fez maior, pois uma rampa mais íngreme destampou-se à frente - até a vegetação mudou, dando de observar espetadas aroeiras, caule forte e retilíneo querendo o céu e, por perto, na tortuosidade de seus galhos, a imburana vermelha, companheira de terras secas, parte da “sociedade” daquelas plantas. No ponto mais elevado, no pico, sem lugar de se acomodar, segurando nas varas, fica o ponto de espia desejado. Dali os olhos vão longe, buscam e alcançam horizontes onde esbarram na linha escura que se levanta do vão: a Serra das Araras; de um lado, na mesma linha do horizonte, vêem-se um espelho refletindo a luz do sol - é o Rio São Francisco abrindo curva no pontal à montante da cidade. Vêem-se mais - torres de telefonia e da igreja Nossa Senhora da Aparecida e algumas propriedades brilhando em ponto salteados. À direita, o vão que desce para as bandas do Angical, contornando da serra que para lá espicha os braços. Uma paisagem tórrida: tudo marrom ou vermelho; grande parte das árvores só galhos - nenhuma folha. Das poucas existentes, como das teimosas vaquetas, davam de parecer retrato envelhecido – estáticas e sem nenhum brilho. Difícil de dizer se o piso era de capim forrado ou de poeira tomada, pela cor avermelhada. Só uma coisa fica certa: a impressão causada. Seco, tão seco; terrivelmente estarrecedor pela rudeza, aspereza e dificuldades que podiam causar ao homem e aos bichos, mas, ainda assim, de uma beleza instigante, misteriosa, profunda e, incrível, agradável. Da espia, se amparando em troncos de vaquetas ou se agarrando às raízes expostas, muitas vezes deslizando a bunda na folhagem, volta-se ao plano imediatamente inferior, numa área de densa mata seca. Aí a grande a incidência de aroeira, imburana vermelha, xixá, umbuzeiros (uma floresta), até esbarrar numa garganta, onde, certamente, há muitos anos passados correu água para se jogar no despenhadeiro, no vão que se esticaria para o Angical. Ali, quando chove, a enxurrada, formando grossa corrente, provoca um ruído ameaçador e, deveras é de se notar pelos revirar de pedras e fojos formados. Aliás, fojos é que não faltam na área, perigosas armadilhas para as patas de incautos animais e até mesmo para o homem. Admirando um desses fojos, de fundo escuro, no conservado medo de cobras, fiquei a imaginar que lá dormiam enrustidas cascavéis. Passamos por uma área de pedreira, onde o mato e o chão não conseguiram dominar o veio de calcário que aflorou com sua cor de ferro caldeado, reluzindo à luz do sol de meio-dia. Não de toda dominante porque a teimosa gameleira ali fincou suas raízes e projetou o robusto para dar abrigo, em seus imensos galhos, aos urubus que sujam de branco as pedras, deixando fétido cheiro no ar. De alguns buracos sobem, também, o imbé com suas folhas verdes, tão largas. Que mistério, ele, gostador de frescas pedras, nas cachoeiras, ali fincado no agreste. Certo que lá, também, muito deve ser conservada a umidade do sereno, resto de chuva ou – quem sabe? - a existência de veio de água, pois que ela vem mesmo é da serra. E vi, pela vez primeira, o sinal do mocó: o estrume que formava camada de cobrir extensa área, mas tudo num só local. Completando a descida passamos pelo solitário embaré que recebeu o batismo de “tromba de elefante” por guardar o mesmo formato com uma galha caída.
Essa jornada levou apenas três horas, mas tornou-se indelével.
Nos tempos de muita água. Passado o mês farto de janeiro, de 2003, coisa rara no sertão, porque janeiro é mês do veranico, voltamos a correr o mesmo trecho. Eu, Leonides, Juarez e completando meus filhos Ricardo e Beatriz, nora Janice e os netos Ricardinho e Gustavo. Completando, com alegria incomum, o casalzinho de filhos do Juarez. As trilhas desapareceram, cobertas que estavam da densa folhagem, extravagantemente verde, luxuriante mesmo. Se Juarez não aponta, eu passaria sem perceber a moita de pau pereiro, agora cobertos de folhas de viçoso verde tomando lufadas da brisa, que respondia com suave balançar – o balé da mata. Em cada volta das trilhas, um pé de umbu carregado de frutos o que implicava numa parada obrigatória: imagina, deixando a cidade para sentado numa pedra ou numa raiz tuberosa, saborear o fruto sagrado do sertão, ali, fresquinho sem ter sido carregado numa sacola – é uma dádiva a poucos concedida. O chão, nu, no período da seca, era, agora, coberto de tenra relva com canteiros da perfumada alfavaca e de manjericão, com suas florzinhas amarelas tomadas de abelhas libando seu néctar. Foi difícil chegar à espia, pois toda fechada estava a trilha, com os galhos das vaquetas, outros arbustos e cipós entrelaçados como braços querendo proteger aquele sítio da invasão humana – e sentido tem, pois logo acima contemplamos um tronco de aroeira tombado a golpes de machado e só não foi removido porque continha uma broca. Aquela aroeira não jogaria seus braços aos céus, sacudindo o verde das suas folhas. Da espia a visão era dificultada pelas copas das árvores, agora cobertas de folhas, um denso lençol. Com dificuldade abriu-se uma brecha para os olhos voltarem à visão alcançada na época da seca. Um mar verde, imensamente verde. Tudo mais suave, agradável e relaxante, sem provocar tristezas pelo fato de imaginar o amanhã prometido com, cada vez, menos água. Água, foi dela que muito se falou na descida, porque, entre as folhagens luxuriantes, ouvindo pássaros que antes não cantavam, escorregava-se no limo que cobria os veios de terra preta entre as pedras e raízes. Coisa rara, raríssima: musgo neste pedaço de mundo. Chão verdinho, úmido, brilhando; os fojos antes vistos, buracos abertos ao céu, apareciam escondidos, cobertos de ramagens – um perigo maior; as imburanas de vermelho luzidio; os umbuzeiros pendidos de frutos, alimentando o homem, o gado vacum e os veados; o xixá todo verde espichado para o céu. Só se repetiu a pedreira.
Como é significativa a seca para o homem valorizar a água. Infelizmente a grande maioria não tira lições, não aprende, acredita que ela é inesgotável e que a natureza, a mãe-natureza, não se cansa e tudo resolve.


VALE DO MANGAI

O lugar é conhecido como Cantão – fica na intercessão dos municípios de São Francisco, Pedras de Maria da Cruz e Japonvar. É por onde entra, no município de São Francisco, o córrego Mangai que nasce nos altos cerrados do município de Lontra. Naquele ponto a água corre muito pouca e, em certo período do ano, quando chove pouco ele se torna intermitente. Bancos de areia esparramam em suas margens e vão formando coroas no seu curso. Segundo os moradores de Capim Vermelho, nessa ocasião, quando a água pára de correr, eles são obrigados a se valer de cacimbas.
Em tempos não muito distantes não era assim. Dizem os mais antigos que era um manancial de respeito, muito fundo, com muito peixe..
O mangai forma um vale fértil muito bonito. Mesmo tão degradado, ele muda a paisagem. No cantão ele corre espremido entre barrancos, caídas de chapada dos três municípios. Ali, deixando suas barrancas, o terreno é hostil, estendendo-se, serra acima, até o chapadão que ganha os altos do distrito do Morro – Ribeirão, Santa Izabel, Buriti do Meio e Lapa do Espírito Santo. Em alguns pontos brotam, agressivas, as rochas negras, com o solo seco forrado de tauá negro ou marrom. Aroeiras, imburanas são as árvores predominantes meio às vaquetas secas..Algumas grotas rasgam o seio da serra e trazem, quando chove, as águas do platô e, por isso, conservam restos de matas de galeria. No mês de junho (quando por lá passei, em 2005) ainda guardava alguns pontos úmidos, lembranças das chuvas passadas.
Deixando a parte acidentada o Mangai avança por uma bela várzea. É impressionantemente belo, tudo verde numa extensão muito grande. Lembrou-me um livro que li, quando garoto – O Vale Aprazível. Certamente não o será por muito tempo, pois as matas que revestiam o solo em suas margens já deram lugar às pastagens ou ao plantio de feijão – irrigado, para exaurir o que resta de água do manancial.
Nas águas, o córrego é valente. Por muitas ocasiões já carregou pontes e aterros levantados na estrada São Francisco – Pedras de Maria da Cruz- hoje melhorado com a construção de um pontilhão compatível com o uso da rodovia.. Por várias ocasiões, passando por aquele rodovia, ali fiquei retido sendo obrigado a dar uma volta pela fazenda Laranja, então no município de Januária, hoje Pedras de Maria da Cruz. O trajeto era de 12 a 15 km, mais ou menos para transpô-lo levava-se mais de duas horas por causa dos atoleiros – isso quando o carro não deslizava barrancos abaixo.
Vendo o Mangaí, hoje, faz dó, lembrando aquela fartura de água...
Deixando a rodovia o córrego escorre para o rio São Francisco, isso já em território de Maria da Cruz, para onde volta para se entregar ao rio e buscar o Mar – quando tem água.


ALMA BARRANQUEIRA


“Eu tenho um sonho...”
Luther King

Domingos Diniz, irmão de ideais, de sonhos e trabalho, barranqueiro de Pirapora, de junto às pedras onde bate forte a água e salta o peixe, montou barraca em Belo Horizonte, mas sua alma ficou nas barrancas. É estando lá que ele me escreve de quando e muito em quando. Tomei uma de suas cartas para alimentar o que falo do cerrado e do rio.

“Estou sonhando de olhos abertos. Os quinhentos anos do nosso muito amado São Francisco. Muita coisa em torno do Velho Chico. O rio limpo, águas claras, azulzinhas. Na cheia águas revoltas, barrentas, mas não sujas. O rio coalhado de peixes de todos os tamanhos. Desde o surubim de bigode até as piabinhas tontas. Garças, colhereiras, jaburus, coricacas, mergulhões, ariris, patos, marrecos, patoris, marrequinhos, maçaricos, quem-quens, nuvens de pássaros pretos, de rolinhas de fogo-apagou, de anuns pretos e brancos, cardeais
de cabecinha vermelha, periquitos, jandaias, araras de todas as cores, maracanãs, maritacas, todo bicho de pena. E sapos cururus, cobras detodas as espécies – também as cobras são criaturas de Deus; teiús, lagartixas e calango; e veados, “gaeiros”, catingueiros, suçuaparas, antas sapateiras, tamanduá-bandeira, pacas, tatu e cotias, caititus, queixadas, onças de todos os tamanhos, raposas, raposinhas e raposões; papa-mel, guaxe, caxinguelês, meletes, preazinhas, mocós, ariranhas, lontras, capivaras; todos os bichos de couro que andam de quatro pés e os que se arrastam pelo chão. Um céu limpo, claro. Azul de ferir as vistas. Um céu pedrês de chuva. Céu carregado de nuvens negras. Relâmpagos, trovões, ventos. A chuva caindo, forte. Córregos, veredas, lagoas, rios, grotinhas, grotões. Tudo cheio de água. Muita água. Lagoas e bongues, maternidades dos peixes. O cerrado viçoso. Fechado de tudo quanto é árvore e plantinhas rasteiras e capins e florizinhas. Um jardim da natureza. As frutas. De todas. Nem precisa de numerá-las. Gostosas. Sumarentas. Maduras. O chão forrado de cagaita, mangaba, grão-de-galo, gabiroba, milho-de-grilo, pequi, pitomba, jatobá, murici, cabeça-de-nego, articum cagão, articum-de-bezerro, articum-de-janeiro, marmelada-de-cachorro, almescla, araçá, ingá, baru. Ih, mano, é fruita demais. Nem ladrão dá conta. Tudo em harmonia. Aquela harmonia do cosmo de que falava há mais de 2000 anos o filósofo Platão, num lugar chamado Grécia, muito longe daqui. As matas das beiras de corgo, do rio. Os brejos dos gerais. Os campos floridos. O tabuleiro. No meio de tudo isso o HOMEM. Com suas roças, suas plantações. O gado gordo nos campos. As tropas fogosas - alazões, castanhos, ruços, queimados, cardões, baios. Tudo gordo. Os meninos brincando nas várzeas em dia de chuva, chapinhando na enxurrada. Casa cheia. Mulheres, moças, velhas anciãs cheias de sabedorias. Os remédios caseiros. As danças, Muitas danças. Lundu, carneiro, sussa, gamba, a margarida, o engenho-novo, o recortado, o quatro, o polista, o guaiano. O tocar de muitas violas e cavaquinhos e violões e rabecas. A caixa reboando forte na marcação. Os foliões de Santos Reis. Indo e vindo, cantando. Adorando o Menino Deus. Os reis-de-boi com suas personagens. A poesia tradicional. Os casos e contos populares. A pesca não predatória.Fazenda nenhuma usa agrotóxicos. Indústria de chaminés altas, lançam suas fumaças bem longe. Nada de esgotos poluentes desaguando nos córregos, nas lagoas, nas veredas. No nosso São Francisco, nem falar. Tudo limpo. Água boa para se beber na concha da mão. O homem livre. Planta seu quintal onde quiser, na hora certa. Nada de motoserra, de tratores de esteiras. Monstros que tudo destroem. O homem livre. Sem doenças endêmicas. Sem malária, sem doença de chagas, sem tuberculose, sem febre amarela, sem dengue, mas dengoso. Meninos e meninas na escola aprendendo o ABC. Mulheres trabalhando em tudo que lhe for de agrado e bem remuneradas. Os homens trabalhando a terra. Não há exploradores, logo não há explorados.
Isso tudo mano, é sonho de barranqueiro doido que vive cá nesta cidade grande, Capital. Mas desumana. Terrível. É sonho quando o nosso rio de São Francisco muito amado comemora seus 500 anos. Há 500 anos os navegadores portugueses chegaram à foz de um grande rio lhe deram o nome de São Francisco, por ser 4 de outubro, dia do Santo de Assis. O único ser humano que mais se aproximou de Cristo, Jesus. De sua doutrina e prática.
Então, a gente sonha. Sonha. Quem sabe um dia o sonho vai ser realidade?”


LENDA DE SANTO ANTÔNIO



Tanázio, esbaforido, sem apear do enorme burro ruão que o levava numa viagem pelo sertão, esbarrou-se diante do rancho de Doberto que, pendurado na cerca de pau roliço, a modo de cavalgar, o ouvia com a paciência comum do sertanejo.
- É o que conto, pois, home! É de toda verdade e juro inté por Bom Jisus da Lapa que há de me condená pru fogo dos infa se tivé mintino. Todo home tem direito de duvidá, pois inté eu memo fiquei sem intendê o que me assucedeu e achava qui era um sonho, e devê de sê verdade pelo que vô contá. É o que digo: na tria desse caminho, invindo lá da Vered’anta, quando baldeava pros lado do Sítio Novo, no meio dos gerais, com o sol ainda arto, dei de topá, caminhano pra donde ieu ia, no memo trio, uma coisinha de nada. Num tinha tamano de gente, nem memo de minino. Era coisinha de nada. Assuntei qui num era bicho pruquê num vinha de quatro pé. Segurei a rédea do burro a mode ele num pulá, pois que já agitava as oreia, espantado cuma é das raça dele, quando cisma ter coisa pela frente. Ele arregalô os óio maise qui ieu. Paremo os dois e a coisinha de nada veio remano pra nossa banda sem isbarrá. Deu pra vê intão que caminhava de passo avexado. Chegou perto, de vê nos óio. Notei, cheio de tremô, na surpresa, que era um santo que eu conhecia, aquele que de pouco foi achado na Serra das Araras, vosmicê sabe, e adispois levado prum ranchim de nada, a modo de capelinha, que fizeram no baxio da serra, pro riba das areia do Catirina, onde se ajuntô um mangote de gente nuns ranchinho de nada. Dize que teve gente beata que achô um despropósito deixá o santo ali, num lugá tão male arranjado de beleza e luxo, naquele lugar só de paia e pó. Levaro ele, o santinho que as beata logo falaro sê o Santo Antonho, aquele casadô, pra entregá pru padre da cidade, lá nas Pedras. O ranchim ficou vazio e triste, e a gente do lugá num gostaro não. Era ele, home. Eu vi cum esses óios qui a terra um dia vai comê. Eu juro pela alma da minha mãe. Era ele. O danadinho vinha de cabeça baixa, sem oiá prus lado e caminhano qui nem o vento. A precatinha dele batia na areia qui chegava levantá pó. Vi as gota do suor correno no rostinho dele, inté pingá. Gritei de cima do burro: Santo Antonho, é o sinhô? Ele nem me ispiou, continuou caminhano afoito e levantano poeira. Vortei a preguntá, já ansiano e aflito de tê que deixá aquele santo-santinho caminhano sozinho naquele mundão de meu Deus e inda tão longe de tudo: É vosmicê, meu santinho? Sei lá, home, parece que pra agrado ou pra querê ficá sussegado na sua caminhança, ele virô o rostim pro meu lado e falô com vozinha mansa, bonitinha só, cheia de afirmação:
- Tô ino pra minha casa, meu fio. Sussega e reza.
Dito isso ele sumiu na curva da estrada. Num fiz nada, pois perdi os modo dos braço, das perna, dos óio e da voz. Fiquei ali, um bobão, por tempo de inté vê o sole mais de três quarto, caindo pra dormida. Aí intonce qui dei de mim, sabeno o que tinha acabado de vê. Zunei na estrada, e daqui, nessa hora, vô direto pras Pedra vê se lá num tá o santinho que as beata mandaro.”
Antes que o companheiro de Tanázio falasse qualquer coisa, ele já tinha esporado o burro e saiu galopando rumo às Pedras. Era quase noite.
A história é confirmada em todo o sertão e naquela imensidão de urucuianos gerais, logo ganhou maior fama.
Contam, o que ainda hoje é passado de pai para filho, à moda velha de contar história e criar as tradições que, pelos meados do século XIX, homens, zanzando pelo mundo perdido, num lugar desprovido de gentes e coisas, só de cerrado e areia branca, encontraram uma imagem de santo, incrustada numa loca, meio a pedras pontudas, espetadas na terra vermelha cavada pela chuva em lugar de pouca vegetação, na ponta de um platô que veio ser chamado de Serra das Araras – porque, de verdade, era cheio de ninhos delas, as araras. Os homens, tomados de muita fé e encantamento, com zelo, envolveram a pequena imagem em farrapos das próprias camisas e desceram a serra. No mísero e quase insignificante aglomerado, de pouco se ver e de quase nada de ranchos, uma velha chamaram e entregaram com devoção a pequena imagem. Ela, trêmula, ergueu-a aos céus e declarou com seus ofícios de beata: “Deus salve Santo Antônio!”.
Era o santo casamenteiro que logo ganhou um humilde altar num não menos humilde rancho de palha de buriti, a sagrada palmeira do sertão. Um berço humilde, assim como fora o do Menino Jesus.
Aconteceu, no seguimento dos “poréns” tão comuns aos homens, que logo eles se esqueceram da história de Jesus e, as velhas rezadeiras, mais apegadas à tradição da Igreja, distante dos primeiros tempos, acharam que seria humilhação deixar o santinho naquele ranchinho tão sem propósitos, feio e triste. Decidiram, e logo mandaram alguns cavaleiros levar o santo para as Pedras (hoje a formosa São Francisco), a vila que já existia, com uma pequena igreja debruçada sobre o rio Grande (São Francisco). Contada a história, achou por bem o padre, nela acreditando e ciente da importância da crença do povo, reservar ao santo um belo altar, quentinho, perfumado e destacado na igreja da Vila. Ali ficou e todos admiravam, rezavam e faziam novenas.
Um dia... o susto e a gritaria geral – “Santo Antônio sumiu”. Imaginaram que fora obra de algum maluco, ou devoto exagerado ou de gente que não gostava da igreja. Nesse mesmo dia Tanazo chegou à vila depois de ter encontrado o santinho na estrada. Correu para Igreja, sequioso de contar a história ao padre. Nem precisou, na rua a notícia bateu-lhe forte nos ouvidos e fez palpitar o coração: “Santo Antônio sumiu!”. “Sumiu como?” - quis saber. Disseram-lhe: “não foi encontrado na igreja ontem de manhã. Sumiu de noite, depois da reza”. O coração de Tanázio disparou. Feitos os cálculos do tempo da hora que cruzou com o santinho na estrada com o que levou para chegar às Pedras. “Era ele mesmo... era ele mesmo”, gritou aliviado e, emocionado contou o que vira no sertão, o seu encontro com o santinho achado na serra. A notícia correu solta e ligeira como fogo na pólvora, causando reboliço na Vila. Todo mundo ficou admirado e muitos até choravam: “Milagre”. Na sua volta para o sertão Tanázio foi acompanhado por um mangote de gente: uns a cavalo, outros a pé e outros seguindo comboio de carro de boi. Todos queriam ver o santinho lá no pé da serra.
Começou assim a grande romaria de Santo Antônio de Serra das Araras. Romaria da qual teve conhecimento o cientista viajante George Gardner, no dia 12 de junho de 1840, na fazenda Rio Claro, Noroeste de Minas “encontrou uma velha com o filho que em viagem de cinco dias dali iriam cumprir promessa de Santo Antônio da Serra das araras”.
Os moradores da Vila, os do pequeno ajuntamento e gente da região, logo acudiram ao local, e não levou tempo para subirem uma igrejinha branca onde a pequena imagem foi entronizada. Igreja pronta, todos em procissão, três voltas deram em torno dela, entoando vivas, e mais uma tradição teve início: todos os romeiros, quando chegam à Serra, repetem esse gesto de fé.
Tempos e muitos tempos passados...
De primeiro, as jornadas eram a pé, a cavalo, carro de bois. Dias e dias caminhando meio a veredas e gerais inóspitos. Vieram as estradas, os caminhões, carros e ônibus – e gente tem que vai até de avião. O arraialzinho mudou, virou Vila.
Da tradição, uns poucos renitentes, como José Alberto Corrêa, meu amigo Zé Caçapa, que coordenou a jornada de um grupo de romeiros durante doze anos, todos a pé - menos ele, que ia de caminhão, dando o apoio. Geralmente partiam à meia noite do dia 8 e chegavam à Serra no dia 12, meio dia, com quatro pousadas que iam ganhando nomes pitorescos para identificá-las - Quebradas, Abelhas, Cardoso. Rezava-se o terço todo o dia; muito churrasco e cerveja para recompor as forças. Muitas promessas. E muitas histórias pitorescas. Numa delas, a do próprio Zé Caçapa, que, num certo ano, prometeu de ir até à Serra sem beber álcool. Cumpriu certinho: lá chegou sem tomar uma só gota de cerveja, porém, mal dadas as três voltas em torno da Igreja, ele se mandou de volta para São Francisco. Cumpriu a viagem e a promessa entrando em sua casa... mas saiu logo em seguida, pegando o caminho de volta para a Serra, de carro e, lá, então, se fartou na cerveja.
Correndo por fora, outro viajante, romeiro daqueles que não perdem a tradição: Denizar Rodrigues. Diferentemente de todos, que se confortam com modernos e especiais tênis, ele calçava um bom par de botinas, arregaçava as calças e fazia o estirão de 90 km, a pé, em 24 horas. E não fazia calos, pois Santo Antônio não deixava. Dos remanescentes, também da turma do Caçapa, restou o Arruda que todos os anos faz uma jornada puxada, com os irmãos Marcelo Capacete e Baio – ida e volta, sem parada na Vila; Família do seu Guim e de Maria Pereira, entre outros..
Tempos atrás não havia luz elétrica, casas e outros confortos. Os romeiros se alojavam em barraquinhas de lonas ou tendas levantadas aproveitando as carroçarias dos caminhões ou debaixo das mesas de carro de boi. Nas noites frias de junho centenas de fogueiras eram acesas e em torno delas os romeiros se reuniam para contar causos, catirar, assar carne e tocar modas de viola, até chegar o sono. A fumaça subia e uma nuvem densa cobria vila e todo o vale além do Catirina, do outro lado se esbarrando nas fraldas da serra da Araras, procurando o caminho dos “Buracos”. Lampião ou fifó iluminavam as tendas onde se realizavam as danças puxadas por sanfoneiros.
Casamentos eram às dezenas. O padre formava um grande círculo no largo em frente da igreja e ali, ministrava o sacramento. Depois os noivos saiam em procissão, meio à cantoria, puxada por sanfoneiros e cobertos pela fumaça do foguetório. Tantos eram os batizados e concorridas as missas, encerrando-se o festejo com a procissão - uma imensa fila de devotos percorrendo as poucas e arenosas ruas da vila.
Os mascates montavam suas barraquinhas bonitas de se ver de tanto colorido e tal o alarido que faziam para apregoar suas bugigangas: perfumes em vidrinhos, vaselina em latas, brilhantina, ruge (como se usava ruge - as mulheres, lindas morenas, sempre se apresentavam com as faces avermelhadas, mais nas bochechas), pó-de-arroz, pentes - uns enormes, outros em forma de meia-lua para prender o cabelo, em coques; grampos e ramonas; espelhinhos redondos com estampas de santos ou paisagens nas costas, de bolso ou quadrados, de parede; chinelos, tecidos, colares; canela-de-ema para os pintores; ferramentas para os carpinteiros do sertão, canivete Corneta, enxada Duas Caras, facão Guarani; arreios, rédeas e cabrestos do maior luxo; de tudo, um tudo. Bancas com as raízes para todo tipo de doença; rapadura, farinha, tapioca, queijo e requeijão; os derivados do buriti: doce, bolos, saieta, esteiras, chapéus e gaiolas. Uma iguaria especial que se comprava com gosto para aprontar o quentão das festas juninas – o gengibre. Era factível de comprar: araras de todas as cores, papagaios, periquitos, aves canoras e até filhotes de ema. Os fotógrafos: primeiro aqueles com máquinas enormes, montadas em cavaletes e, depois, os dos monóculos – a novidade da cor e da caixinha brilhante.
Bela exibição era a dos cavaleiros colocando suas montarias a esquipar no largo e pontas de estradas para chamar atenção das mulheres.
Serra das Araras modernizou-se, tornou-se mais profana. Virou um imenso comércio e a vila perdeu seu ar bucólico, telúrico....
Retrato de Serra das Araras: Vereda do João, serra Dois Irmãos – portal de entrada no vale -, a serra plana e comprida cravada de buracos e escarpas avermelhadas, céu azul e profundo, a igreja erguida no largo gramado, ruas estreitas, casas de adobe, ponte do Feio - banho dos pelados -, areias brancas do Catirina; a velha Noca, Zé Maurício, Luiz, Corino, Moisés...
Serra que ainda atrai multidões ano após ano, e que ainda faz o serrano suspirar e cantar: “Adeus Serra das Araras/ Adeus linda urucuiana/ Adeus, está chegando a hora/ Adeus, Alice, já vou embora.../ Já fiz prece,/ Fiz promessa/ Pra Santo Antônio me ajudar/ Nestes versos/ Exprimo o que sinto/ Para o ano eu pretendo voltar./ Adeus!”.










AS DANÇAS DO SÃO FRANCISCO

O LUNDU

O lundu é uma dança extremamente sensual, cheia de volúpia, engodos, leveza e trejeitos. Dança e canto de origem africana, trazida pelos escravos bantos, especialmente de Angola para o Brasil. Ganhou os salões da nobreza e depois foi se descaracterizando, dando lugar a outras danças locais, perdendo o nome. Como registra Câmara Cascudo: “Vive como uma modalidade faceciosa de canção no Brasil, porque a coreografia evoluiu para o samba, solto, individual, sacudido, enfim a batucada, onde cada bailarino é um competidor da execução anterior”.
Em São Francisco a dança guarda os princípios da evolução bem próxima da descrita por Santana Nery, no século passado. Os homens e mulheres formam uma grande roda no meio da sala e, de lado, os tocadores e cantadores, assentados em bancos. Instrumentos mais comuns são: viola, violão, rabeca, caixas, pandeiros, balainho e reco-reco. Batendo palmas os dançarinos acompanham os puxadores das modas e, no final de cada canto, um homem se desloca para o centro da roda, no ritmo das caixas vai sapateando, batendo palmas e rodopiando até chegar defronte à mulher escolhida que chama, batendo palmas bem perto do seu rosto. A mulher entra na dança com toda leveza, rodopiando, com as mãos prendendo a saia, sapateando graciosamente, sem muito vigor. O dançador se desdobra em graças, fazendo-lhe volteios, sapateando, trocando passos no ar e no chão, são muitas negaças, maior volúpia, quando tenta juntar-se à mulher que o desdenha. A evolução não vai além de três minutos. A mulher chama outra mulher, fazendo o mesmo o homem, com o mesmo ritual das palmas e, assim, a brincadeira vara a noite.
Foram surgindo algumas novidades, reflexo da criatividade dos dançarinos. Adão Barbeiro (São Francisco), um exímio dançador de Lundu, criou a dança do facão e da garrafa. A primeira uma modalidade que exige muita destreza e cuidado, pois o ritmo que tradicionalmente era marcado com as palmas das mãos, se faz brandindo dois facões, sobre a cabeça, entre as pernas e dos lados, de acordo com a evolução, enquanto os pés, no mesmo ritmo fazem as evoluções da dança, com o tradicional sapateado. A da garrafa, mais simples, só exige equilíbrio, pois toda a evolução da dança, com os sapateados e palmas, é feita com uma garrafa de água na cabeça (ou pinga que depois é repartida com os tocadores).
Outros nomes foram sendo dados à dança: recortado, jaca, jacão, suça, com pequenas variações distinguidas pela marcação do ritmo ou afinação da viola, determinando os tipos dos passos.
O que é muito especial no lundu é que ele ganhou um sentido de glosa, de brincadeira, de desconcentração total. É dança indispensável nas visitações de foliões à Lapinha, no ciclo do Natal ou outras ocasiões. Encerrada a saudação ao Menino Jesus, os foliões dedicam algumas horas à alegria dos anfitriões, oferecendo-lhes muitas danças - em proporção ao agrado recebido. Vezes há que ficam horas e horas a cantar e dançar. Das mais apreciadas é o lundu, que agrada homens, mulheres e crianças por causa da coreografia divertida, a animação das caixas, das palmas e sapateados e, especialmente, por causa da letra das músicas cantadas. A harmonia do instrumental é fantástica - flui com naturalidade de uma orquestra sinfônica, ensaiada e afinada. E a melodia, embora simples, guarda tantas recordações, telúricas recordações, que parece um sopro da alma. As caixas são afinadas pela corda lá do violão. São tocadas com suavidade tal que mal se percebe o seu gemido - contudo elas cobrem todo o fundo do conjunto, dando sustentação às violas, rabecas e violões cujo som melodioso parece pairar no ar. Os violões fazem a marcação do ritmo e as violas serpenteiam no floreado frenético de dedos ágeis e no fundo, os gemidos fechando os acordes, como um lamento ou uma brincadeira de pegar, da rabeca. O violão suspira no bordão, marcando o compasso, de quando em quando entrecortado por um floreado grave; a viola tem que, com agilidade, cobrir cada compasso com muitas notas, agudas, espertas e saltitantes, como a dança; a rabeca, menos ágil, não se desespera, espera, no quase fechar do compasso, para marcar o seu suspiro e se retrair, logo depois, para não ser pega.

O QUATRO

É uma dança divertida, que exige muita destreza e atenção dos dançadores, pois, ao mesmo tempo, eles cantam e tocam seus instrumentos - violão, viola, rabeca, caixa, balainho, reco-reco e pandeiro. Comumente, como indica o nome, são quatro dançadores que se postam no meio da sala, formando dois pares que ficam vis-à-vis. O início da dança parece imitar o balanço das ondas do rio tocando o barranco: os quatro dançadores voltados para o centro da roda, movimentam-se dando um passo à frente e outro atrás, em seguida, torcendo o corpo com suavidade – é para aprumar o ritmo. Repetido o movimento, três vezes, dá-se o deslocamento, uma dinâmica com duas fases. Na primeira o dançador com o violão, geralmente o guia, vai na direção do ponto do dançador com a caixa que, ao mesmo tempo vem em sua direção; ao se encontrarem, no meio do trajeto, rodopiam em torno de um eixo imaginário e mudam de lugar. Ao mesmo tempo é o que se dá com o dançador com a viola e o dançador com a rabeca (acontece de um dançador ser o pandeirista ou tocador de outro instrumento de percussão). Repetem o movimento e, então, cada dançador volta ao seu lugar. Depois, novamente fazendo o movimento da onda, empreendem nova troca de lugar, porém em sentido transversal: violão com rabeca; viola com caixa. Completado esse movimento, estando os dançadores em seus lugares, no refrão da música do quatro, eles formam um círculo e se deslocam numa só direção, voltando, instantaneamente em determinado trecho da música. Completado o movimento, todos em seus lugares, voltam ao movimento inicial, da onda, retendo os instrumentos na última ida ao centro.
Ocorre do Quatro ser dançado por oito ou até doze dançadores, introduzindo-se outros instrumentos: pandeiro, balainho, reco-reco. No caso, aumenta-se a complexidade, exigindo-se redobrada atenção e destreza, pois o cruzar de parceiros, tocando seus instrumentos, faz com que muitos tenham que se desvencilhar dos braços dos violões e violas e do arco da rabeca que rodopiam no ar com muito dinamismo.
Câmara Cascudo registra a dança com o nome de Quatragem - dança popular do interior de Minas Gerais. Ele cita Bernardo Guimarães que registrou a dança em seu romance o Seminarista (1872): “A quatragem é a dança pitoresca dos nossos camponeses, dança favorita do roceiro em seus dias de festa, e as delícias do tropeiro, nos serões do rancho, após as fadigas da jornada. Dança vistosa e variegada, entremeada de cantares e tangeres,cantiga maviosa, já freneticamente sapateada ao ruído de palmas, adufes e tambores. Sem ter o desgarre e desenvoltura do batuque brutal, não é arrastada e enfadonha como a quadrilha de salão; ora salta e brinca estrepitosa e alegre, se requebra em mórbidas e compassadas evoluções. Como o próprio nome indica, forma-se um grupo de quatro pessoas. A música é desempenhada pelos dançantes, que, além de uma garganta bem limpa e afinada, devem ter nas mãos ao menos uma viola e um adufe. Há uma quantidade incalculável de coplas para acompanhar esta dança, e a musa popular cada dia engendra novas. São pela maior parte toscas e mesmo burlescas e extravagantes; todavia algumas há impregnadas dessa maviosa e singeleza poesia que só a natureza inspira”.
Até hoje o quatro ou quatragem não fugiu das origens. Em São Francisco é a animação de muitas festas, principalmente no solstício de verão, quando os foliões saem na sua jornada para adorar o Menino Jesus. Não há Folia sem o Quatro que é a preferida de todos. A dança, por si, enche os olhos, pela evolução dinâmica, os trejeitos do corpo, forçados ao requebro para se livrar dos instrumentos, o sapateado firme na cadência das caixas e, sobretudo, pela motivação das músicas. As letras sempre lembram os animais da preferência do folião, ligadas a uma paixão, ou contam histórias passadas na comunidade - o pesquim, como dizem.

CATIRA

Em São Francisco trata-se de uma variação da dança do Quatro diferente da catira do Alto Paranaíba, Triângulo Mineiro e Sul. É uma dança muito alegre, bonita e movimentada. Formam-se duas alas (homens e mulheres) - os homens por fora e as mulheres por dentro, num grande círculo, com 16 pares ou mais. Os elementos essenciais da dança são o sapateado forte e as palmas; o ritmo é puxado por caixas, pandeiros, reco-reco e balainhos, e a harmonia por violão e viola. O canto tem a mesma cadência e o estilo do Quatro, porém mais forte na repicada para conduzir o sapateado e as palmas. Na primeira parte da dança os pares ficam lado-a-lado, balançando o corpo e batendo palmas repicadas. Assim que os cantadores puxam a primeira estrofe, eles começam a evolução mais simples, ou seja, os pares trocam de lugares entre si, voltando, sempre, ao seu lugar. No refrão forma-se uma grande roda - as mulheres ficam na frente dos homens - que gira puxada pelo guia até determinado ponto da música, quando da contra-batida; então rodam o corpo e voltam aos seus lugares. Cessam-se as vozes e se avoluma o instrumental, principalmente as caixas, marcando um ritmo forte com a cadência para o sapateado e as palmas. O dançador guia puxa a catira, ou seja, a troca de lugares: os homens e as mulheres se evoluem em sentido contrário, formando o novo par, gira entre si no mesmo eixo. Estando todos, depois, no mesmo lugar vão ao centro da roda, sapateando e batendo palmas, dando três pancadas fortes. Quando voltam aos seus lugares, os homens saltam para direita, fazendo a mesma evolução com a mulher seguinte. Repete-se o movimento até o guia chegar ao seu lugar, quando ele comanda três sapateados até ao centro do círculo, onde, na terceira vez, com pancadas fortes e uníssonas, fecha-se a dança.

CARNEIRO

Não há registro da origem da dança. Para Domingos Diniz, da Comissão Mineira de Folclore, ela é uma variante da umbigada e cita Mário de Andrade, que em seu Dicionário Musical Brasileiro registra o verbete “carneirada” como provável dança das margens do São Francisco. Câmara Cascudo não a registra em seu dicionário.
As danças sofreram muitas mutações durante os séculos, fruto de miscigenação, influência de costumes locais, aculturamento e até mesmo por um fato comum: emigração – com a mudança carrega-se o passado Na nova morada, por costume, repete-se o seu saber e, logo, é imitado, surgindo. Aí, como disse Câmara Cascudo, a dança ganha outro apelido, pois “ficam longe as origens, não vividas pelos locais” e, no mais, o homem simples do meio rural, gosta de dar nome a tudo e sempre o faz a seu modo, criando vocábulos novos por não ter entendido bem a palavra/raiz.
A civilização das barrancas do São Francisco surgiu em razão do grande rio. Como caminho natural de ligação do Norte ao Sul, no limiar dos anos setecentos, foi o curso de correntes migratórias de nordestino buscando o Sul, povoando as pequenas vilas emergentes como Januária, Pedras de Maria da Cruz, São Francisco, São Romão, antigos postos de vigilância do rio, por bandeirantes, para evitar a ação de saqueadores de embarcações e ataques de índios. Hoje, num exame superficial, apura-se que as famílias de São Francisco, na sua formação, são quase todas originárias do Nordeste, especialmente da Bahia. Daí, o modo de falar, de se vestir, de se alimentar, os utensílios usados, ainda hoje, tudo tem muito a ver, muito mais com o Nordeste do que com o Sul.
Por aí, pode-se deduzir que possivelmente o Carneiro, ou Carneirada, possa ter originado de várias danças: a umbigada, como aceita Diniz, o Baiano e o Batuque, entre outras, por causa da coreografia.
A dança é interessantíssima. As caixas rasgam o ar com batidas
fortes, frenéticas, convidando e incitando à dança alucinante. O terreiro treme. Um caboclo salta para dentro, pulando forte, girando, forçando o peso do corpo numa perna enquanto a outra fica livre para a marcação ritmada acompanhando as caixas – “olê, lê carneiro dê”. Logo uma mulher o rodeia, com a mesma volúpia. Encontram-se no meio do terreiro, rodopiam, erguem uma perna, empinam o corpo para frente de leve, armam o golpe e, no bater forte da caixa, desferem a terrível marrada, dando as costas, um no outro, enquanto o pé que estava solto no ar bate forte no chão, reforçando a pancada. Não chegam a se tocar - se o fazem é suavemente -, mas a simulação, com a batida forte do pé no terreiro, o repique da caixa e a cadência dos versos, tem-se a impressão que estouraram os ossos numa arremetida violenta que lembra a cabeçada (marrada) de dois carneiros em briga.
Tendo-a como uma variação da umbigada ou do batuque, o que historicamente é bem provável, o carneiro pode ter sido criado pelos caboclos para fugirem às restrições impostas àquela dança pela Igreja e sociedade escandalizadas. Depois, dando marradas, e não umbigadas, o caboclo, sempre temente a Deus, ficava com a certeza de não estar em pecado.
Ainda hoje se dança muito o Carneiro em São Francisco, especialmente no meio rural
É importante salientar alguns aspectos interessantes na dança do Carneiro: tanto na dança, como na música. O onomatopéico: o final de cada versos é fortemente acentuado fazendo o efeito do eco de uma batida: “olê, lê, carneiro dê! Olá, lá, carneiro, dá!”; o lúdico: na refrega, o caboclo exercita o corpo e mesmo sendo depois de uma jornada de trabalho, ele encontra no prazer da dança, no contato corporal, com o chão e no sapateado o relaxamento espiritual que reflete no descanso do corpo; o telúrico: ele abre a alma à brincadeira, à glosa, às coisas que o prende à terra - bichos, plantas, histórias, paixões, tudo retratado em versos simples que representam o seu universo.
As letras são simples, porém expressivas: Olé-lê, carneiro dê!/ Olá´lá, carneido dá!/ Quem quisé carneiro manso,/ Manda o vaqueiro amansa!. Larga seu marido, muié/ Vem morá mais eu./ Seu marido é ruim, muié/ Quem é bom sou eu!. Pau pereiro, pau pereiro/ Êta pau de opinião/ Todo pau fulora e cheira/ Só o pau pereiro não.


SÃO GONÇALO

No correr do ano, ainda hoje, é comum ver o grupo de mulheres vestidas de branco, acompanhadas de poucos homens – os três guias da dança e os músicos – viola, violão, rabeca, caixas e pandeiros – em peregrinação, pela cidade e pelo meio rural, desincumbindo-se das promessas feitas por algum devoto. Cumprindo-se todo o ritual (doze jornadas). E tem sentido, como reza a tradição: a história de padre Gonçalo, em Amarante, Portugal, que durante a noite saía com seus auxiliares para visitar a boemia e lá induzia as mulheres (prostitutas) a dançarem a noite toda, deixando-as exaustas e sem forças para o exercício da profissão. Assim, por muito tempo, ele conseguia tirá-las do pecado.
A dança: as mulheres formam duas alas e são puxadas por dois contra-mestres, no meio, o mestre-guia que indica a jornada. São lindas as evoluções, cheias de leveza e graça, com as mulheres carregando enfeitados arcos que são usados na coreografia.
Importante é o aspecto religioso da dança. São Gonçalo, postado no modesto altar, à frente dos dançadores, têm devotos cativos na região.


BOI-DE-REIS

Não pode haver festa natalina em São Francisco sem o Boi-de-Reis, a variaço regional do Bumba-meu-boi do Nordeste. Deveria ser um périplo de 1º a 6 de janeiro, mas o povo e, especialmente, as crianças não permitem – dura o mês todo. As crianças, com suas latas, improvisando as caixas, batem o boi por muito mais tempo, num alarido que anima as ruas dos bairros mais pobres da cidade.

"Todo mundo me dizia/ que este boi não saía/ meu boi está na rua/ com prazer e alegria/ saiu, saiu/ saiu daqui agora,/ saiu meu boi moreno/ neste instante, nesta hora".

O boi invade a rua, despontando com toda volúpia comandado pelas caixas com repique de forte ritmo e um vozerio se levantando aos ares – uns cantando, outros aplaudindo e dezenas de crianças arreliando. É Natal. O auto espera o dia 1º do ano, seguindo a tradição da jornada dos Três Reis Magos, para começar suas andanças, cruzando com os ternos dos foliões de Reis. Na frente vai o vendedor do boi; à distância fica o boi e seu séqüito aguardando a hora de chegar à casa do "comprador". O coral, geralmente de mocinhas e crianças dos bairros pobres da cidade explode ao sinal para se aproximar da casa: "Todo mundo me dizia que este boi não saía..." A letra é uma resposta orgulhosa a quem ousou desafiar que o boi não sairia. Depois da chamada, quando o boi chega saracoteando e se posta mansamente à frente da casa, uma voz apaixonada ganha os ares, arrancada do fundo da alma, gemendo o primeiro verso: "Levanta, boi, vem comer capim/ ôi! dona da casa, tenha dó de mim./ Segunda-feira, sábado, domingo choveu, na porta do seu Domingos, foi que meu boi morreu!" Retumba o coral: "Ei boi! Levanta meu boi!. Ei Boi! Abre a roda meu boi!. Ei boi! Arremete o vaqueiro! Ei boi! Abra a roda meu boi!"... e boi vai obedecendo às ordens numa frenética coreografia, com a chita colorida (o seu couro) se inflando como balão ao sopro do vento nos seus volteios agitados, sacudindo como se acometido de violenta sezão – avança no rumo do público e se estanca com os chifres em cima do peito da menina espantada; rodopia e volta para o meio do terreiro e, depois, dá uma arremetida para o outro lado da roda, girando, girando, até receber a ordem do sossego: "Amaia meu boi! Amaia, meu boi! Amaia, meu boi!", para, mansamente, arrear as pernas e descansar um pouco (folga merecida e necessária para o dançarino que, do lado de dentro, erguia a pesada armação de varas revestida de panos coloridos e couro, fazendo com que ela tremesse toda, sacudisse violentamente e, ainda exibisse uma excitante coreografia de rodopiar e investir contra vaqueiros e assistentes). Os vaqueiros e as catirinas, na folga, conversam com os tocadores, outros brincam com o público, enquanto uma equipe cuida de reanimar o boi aplicando-lhe injeções e ministrando-lhe doses imensas de elixir. O coral retornava depois do descanso, precedido da mesma voz apaixonada chamando o boi para a lida e tudo se reinicia até que seja ordenado ao boi: "Vai saindo, meu boi! Vai saindo, meu boi" e ele deixa a praça, sacudindo-se todo, para desaparecer na escuridão. As caixas redobram o repique, entram em frenesi e passam à cadência do "Carneiro" dando entrada aos gritos da meninada: "Olê-lê, Carneiro dê! Olá-lá, Carneiro dá! Quem quisé carneiro manso, manda o vaqueiro amansá", e a praça é tomada pelas catirinas que com os vaqueiros repetem as marradas dos carneiros no ritmo das caixas e da música. Dançam e dançam até serem dispersos pela invasão inesperada do "Bicho Tamanduá" – "Ei que bicho é aquele que vem acolá? É o Bicho Tamanduá”! E o Bicho Tamanduá com sua roupagem de palha (carocha), cobrindo-o da cabeça aos pés, chega rolando no chão, agarrando e arrastando vaqueiros ou catirinas. Em pouco tempo daquela luta, entra no terreiro, dançando com graça e leveza, tão mimosa e encantada, a "Mulinha de Ouro" – "Mulinha de ouro, é ouro só”!... Depois do seu rápido e belo bailado ela deixa espavorida a praça que é tomada pela onça: "Oiá a onça no pau! Cachorro nela!. Oiá a onça no pau! cachorro nela”!... Começa a renhida luta entre a onça e os vaqueiros. Cessam, enfim, as vozes e as caixas. Os agradecimentos. Meninos curiosos querendo proximidades com boi e a mulinha – de preferências –, mas se encolhendo quando aproximam a onça e o bicho tamanduá. O silêncio é de novo quebrado: as caixas voltam ao repique e o coral retoma o refrão desafiador - "todo mundo me dizia...." – e, se arrastando, o terno busca outra praça.
No dia 6 de janeiro realiza-se a grande festa na casa do Imperador. É a matança do boi. Muita dança e muito gole.
O auto conta a desditosa história de Pai Francisco, um vaqueiro que matou o boi de estimação do patrão para satisfazer os desejos de sua mulher, Catarina. Toda a dança, contando o feito, encena os esforços para ressuscitar o boi, o que se explica a quantidade de personagens do mundo fantástico.

REIS DOS TEMEROSOS

Manifestação folclórica muito interessante e rica que surgiu mais recentemente em São Francisco, lá pelos anos 60, graças aos cuidados do folião Adão Barbeiro que a trouxe de Januária depois da passagem de Damasceno por São Francisco a convite da Escola Caio Martins onde cresciam atividades folclóricas. Não se sabe, porém, como ela chegou àquela cidade e não há registros dela nos dicionários disponíveis e estudos do gênero.
Trata-se de um auto do ciclo natalino, formado por um grupo de marinheiros que, empunhando cacetes (daí também ser conhecida como Rei dos Cacetes), formam duas alas e atendendo a um comandante, com um apito, vão cantando e vibrando os cacetes no chão e, depois, uns contra os outros, ao som da música puxada, necessariamente, por uma sanfona, e, como complemento, caixas, pandeiros, balainhos e violão. A música fala de uma saudação ao menino Jesus que eles trazem do Oriente. Na evolução, quando formam uma grande roda, os dançarinos vão alternando batidas nos cacetes dos dançarinos à sua frente e de trás, enquanto põem a roda em movimento até atingir uma evolução frenética. A dança tem seis evoluções diferentes e todas bastante dinâmicas, com música distinta.
Na cidade, no ciclo natalino, esta dança é das mais cativantes e apreciadas.


NATAL NO SERTÃO


Uma pálida homenagem aos foliões que trilhando nossos cerrados e matas, ajudaram a escrever a nossa história.

No adro da igrejinha, um largo emoldurado por toscas casinhas, manchado de moitas de assa-peixe, descaído com suavidade até se esbarrar nas barrancas do ribeirão Arrozal, em ato de abandono, sentado num banquinho amarronzado, de quinas carcomidas pelos cupins e assento liso pelo uso de anos, Berto, um ancião da comunidade, daquelas peças raras e respeitadas, matutava a vida. Uma fresca sombra se projetava sobre seu corpo - um pálio dadivoso formado pelos galhos de mimosas murtas, cujas flores exalavam suave arômata inebriando o ar da pracinha.
Berto quedava-se absorto, esquecido. Só se mostrava vivo, ou que não estivesse entregue ao sono, porque suavemente levantava a mão direita cofiando as cãs que lhe cobriam a cabeça como um campo de neve ou, momentos outros, a longa barba, também de neve parecida.
O silêncio da pequena pracinha só era agitado pelo grito de guris que jogavam bato, assim que um deles conseguia arrebatar algumas pedrinhas sem deixá-las cair, progredindo no jogo. Berto não se incomodava com aquela manifestação de alegria. Espichava os olhos nos meninos como se eles estivessem muito longe, no perdido de seus sonhos, tão passados, ele mesmo lá encontrado de calça curta, um peralta só. Às vezes mussitava algumas palavras, ininteligíveis, mas de som gazil pelo que se chegava às pessoas por perto, sem nelas despertar maior atenção pelo costume já guardado por ser aquela cena usual, sempre repetida para o gosto de todos – era a tradição local.
Curioso: a figura do velho Berto, embora impressionante pelo seu porte majestático, contrasta-se com a pujança das árvores que lhe propiciavam o agrado da frescura na sombra ampla e com a fogosa manifestação dos meninos que jogam pedrinhas – estes pareciam um bando de jandaias e periquitos disputando polpas de manga na grimpa das mangueiras mais distantes; daquela se via as pólas verdinhas-verdinhas anunciando a vida nova, trazendo cheiro fresco do arrebentar para o mundo; ele a figura quieta, silente, ancião mostrado pelos brilhantes cabelos e barba brancos e mansidão dos gestos. Um contraste, mas era ele a vida de mais tempo e de mais gosto de se apreciar.
O que permeavam os perdidos pensamentos do velho Berto? Saudades sentidas ou estaria ele na amorosa, pois era quente aquela tarde e podia levar à atração da sesta? Qual o quê! Ele já trabalhara muito nas leiras; enfraquecera os olhos nas leituras de velhos livros, muitas vezes consumidos à luz de lamparina e, em tempos outros, trotando caminhos infindos catando meninos para o ofício de ensinar ler e escrever, como respeitado e chamado mestre-escola. Tinha direito de descanso sem que isso pudesse parecer indisposição. Era a vida se sublimando, a sua plenitude. Ele era um sábio, um sábio do povo do sertão, a ampla universidade sem fronteiras e de somados saberes, com raízes seguras no empirismo, embora também tivesse o conhecimento das letras, por sua conta própria, um autodidata.
Fiquei sabendo, num fim de tarde, na hora de se recolher. Velho Berto me contou.
“São lembranças. Lembranças de um tempo tão distante... lá onde só o pensamento pode habitar e buscar...”
Sem atropelo, com uma voz mansa, inspirando vontade de se deixar voando, ele começou sua narrativa, abrindo o mundo do sertão que era o seu gostar.
Pois é assim como lhe conto, tal como o velho Berto me narrou naquela tarde de tantos tempos corridos, mas que, na verdade o tempo não corroeu por ser história que o sertão viveu e construiu tudo por inteiro nas suas raízes, muito mais agora, por ser tempo do Natal.
“Aforante o trabalho primeiro de campear e depois semear, eu era moço de correr noites nos gerais ou vãos do mundo de cá do rio, ou nos gerais urucuianos, no acompanhar de muitos companheiros nas jornadas das folias. E fiz tantas, e com maior prazer na vida ainda, depois que me fiz mestre-escola, pois a cada ano eu via desabrochar e crescer os meus meninos. Tantas jornadas, tantas eram, mas a de maior apreço e de gostar era a da lapinha. Como dava gosto achegar e adorar aquele menininho tão bonito, inocente e pobre como a gente, deitado em cima das palhas, aquecido pelo bafo dos bois e jumentos para não morrer de frio, tão desprovido de roupinhas que era. Eu, na minha admiração por ele naquele bercinho que de verdade mesmo era uma imitação de cocheira, ficava sempre matutando: como deveras era de ser o filhinho de Deus nascer no meio de tanta pobreza e desconforto, sem o adjutório sequer de uma cobertinha? Intento era aquele do Criador para nos deixar nos cismejos?”
“Era de comum o nosso grupo de folião contar com minha pessoa ou Minervino na rabeca; Olegário, Abrãozinho e Adão nas violas; Locha e Zé Rodrigues nos violões; Teófilo na caixa maior e João na menor; Ursulino no pandeiro, Vicente no balainho e Abel no reco-reco. Podia facilitar de ter mais instrumentos – esses, de verdade, eram os do costume principal e até bastantes para boa harmonia. Devo dizer, para que não fique sem conhecimento dos meninos, que aquela instrumentama tão bonita e especial, de som para não levantar modo de defeito algum, tudo foi feito com a arte do Minervino, no Surucucu, debaixo de fornida xixá.
Falo para mecê: a folia de mais gosto da gente era mesmo a do Menininho da lapinha. Na boca da noite do dia do Natal, ainda no lusco-fusco, os foliões iam despontando das tantas trilhas do sertão e esbarrando na casa do Imperador. Chegavam lordes, quase sempre de camisa branca, com a reúna protegendo os pés, um bom chapéu – acessório que não podia faltar e que só saía da cabeça em hora especial; as toalhas brancas – era uma tira de pano, da largura de um palmo, se muito, umas com guarnição de rendas, outras só embainhadas; eram passadas por trás do pescoço e tinham as duas pontas, franjadas, descendo pelo peitoral indo abaixo da cintura. A! aquela toalha alva era de se dizer o distintivo do folião, aforante seus instrumentos de música.Hora da partida: o agrado do café com quitanda e, depois, o gole da branquinha para afinar a voz. Depois da reza pedindo proteção, o grupo punha o pé na trilha para cumprir a jornada pela frente. Era de ser levantando poeira, se carente a chuva no veranico chegado ou amassando barro e espirrando lama, de todo bom gosto, se tinha a sorte da chuva prolongada. Caminhava-se pela campina aberta ou nas trilhas varando o negrume das matas fechadas. O grupo se arrastava sem pressa e sem destino certo até que divisasse uma luzinha alumiando na porta ou interior de um rancho. Era o sinal: ali tinha lapinha pra ser adorada. O grupo se punha em silêncio; caminhava quase deslizando; nem um sussurro - era o modo de surpreender os moradores que, de verdade mesmo, já esperavam a folia. Era assim o costume.
- Boas noites! Anunciava o grupo na sua chegada, quase em coro, tendo à frente o imperador empunhando a bandeira com as figuras mágicas dos três Reis.
- Noites! Respondiam os moradores mostrando toda alegria do coração.
O imperador adentrava no rancho e com gestos majestosos, com toda cerimônia, jeito de igreja, fazia volteios com a bandeira de modo que ela alcançasse todos os cantos da moradia, quarto por quarto e até a cozinha. Os donos da casa, de joelhos, beijavam o estandarte místico, e os foliões se acercavam da lapinha, cada qual, à sua chegada, pondo-se solenemente de joelhos, em atitude de respeito e oração, para beijar os pés do menininho. Os presépios eram de se ver. Uns tão humildes, como reza a tradição - male-male o menino Jesus no seu leito de palha, Maria e José, o boi e o jumento e, se muito, algumas imitações de carneirinhos, tudo enfurnado numa lapa ou debaixo de uma estrebaria, das pobres. Outros não, eram armados com papel de jornal coberto de tintura de carvão, emoldurados de pedras de todo tamanho e formato, arremedando locas ou armação de pedreira, se comum no sítio visitado, tudo com muita luz de vela, lamparina e até lampião se de recursos os donos da casa. Uns pareciam uma feira em dia de festa - tinham de tudo imaginado: boneca de plástico ou pano; patinho nadando em lagoa feita com espelho, tendo as bordas armadas com musgo verdinho encontrado no fundo das matas úmidas das margens do ribeirão; rebanho de carneirinhos, bois, jumentos e, imagina só: girafa, elefante, carro de bois (os bois feitos de barro pelos meninos da casa, esses admirados na arte de agradar o Deus – Menino) – tinha toda sorte de bichos. Era de se ver até estampa de outros santos, retrato de gente e rótulo de bebida conforme a força do seu colorido. Presépio que ocupava um cantinho da sala, coisinha de nada, mas tão cheio de encanto e mimo; outros de tomar conta de quase toda a sala com as belas figuras em volta do Menino: Maria, José, os Reis Magos... sem faltar, de jeito nenhum, a estrela guia, o Anjo Anunciador e o galo para cantar a chegada de Jesus.
Mesmo com os instrumentos bem afinados carecia, de qualquer jeito, do ritual da afinação, de novo. Um tempo levado, num canto da sala. O violão dava o tom da corda lá. A viola conferia com seus dengos; a rabeca chorava suas cordas; encostavam Teófilo e João batendo com um lado da palma da mão na borda da caixa, tirando o som do couro, enquanto apertavam a amarração para igualar o som na mesma altura dos instrumentos. Só não careciam desses cuidados o balainho, o pandeiro e o reco-reco, sem recursos de mudanças de tons. Tudo igual, os instrumentos gemiam. Nas caixas as cabeças das baquetas de aroeiras, avermelhadas e reluzentes, batiam com suavidade no couro de veado e um som muito brando ascendia no ambiente, chegava como as ondas mansas das águas de um regato, levantadas por uma pitomba – ou quê! – desprendida de um galho ali pendido; crescia, crescia e, então se dava o repique na borda de pau pereiro, e aí não tinha como não acontecer: cutucava-se lá no fundo da alma, buscando-se coisas de longe. Atendiam-se logo, os outros instrumentos àquele chamado: os violões na sua marcação e as violas e rabeca nos seus acordes e solos chorosos. Subiam-se as vozes: “Deus vos salve Casa Santa, onde Deus fez a morada...”. Cantada a primeira estrofe, ainda antes de fechar o som, cobria o canto a segunda voz, com o contra-canto, repetindo a estrofe noutras alturas e era de costume, no final da repetição, uma voz ir mais além, mais espichada, um som fazendo eco como quisesse sair do rancho para anunciar a boa nova pelo cerrado afora – era a bonita voz riquintada..
Feita a saudação era de se fazer agrados ao dono da casa. Prazer maior nem precisava de se ter: o de dançar o quatro com toda animação, rodopiando, balançando o corpo e rodando os instrumentos por cima das cabeças dos companheiros - então cobertas pelos chapéus, antes tirados para a saudação ao Deus-Menino. A caixa repicando o ritmo forte, a batida gostosa de fazer a gente se remexer todo sem querer; o violão marcando o tom; a viola repicando acordes e a rabeca fazendo volteios. Quatro homens dançavam e dançavam até terminar a história contada na música. Depois, conforme o agrado dos donos da casa, com a quitanda, a galinha ou a branquinha, era de se fazer mais agrado, dançando, também, o lundu, dança apreciada pelas brincadeiras feitas, não só nas cantigas como nos trejeitos do corpo dos dançadores, sapateando e requebrando, os mais desavergonhados – era de aparecer as mulheres para acompanhar a dança, e aí ficava mais alegre e melhor. O Joaquim Figueiredo, na sua folia, gostava de brincar a respeito do agrado: `Lá em casa eu passo mal/ Na folia eu passo bem/ Lá em casa não tem galinha/ Na folia eu sei que tem`. E brincava mais, com as mocinhas: `Eu gosto da folia/ Não é da conta de ninguém/ Lá em casa não tem moça/ Na folia eu sei que tem`. O Locha, outro folião apreciado, também gostava de uns “pesquim” divertidos, lidando com os companheiros lá do Quebra, nas Pedras: `Na lua vai quem qué/ Lá num tem prefeito e fiscá/ Nem Veríssimo, nem Badé/ Lá os cachorro veve a cuma qué!´.
Os foliões faziam sua jornada até o dia 6, quando voltavam à casa do imperador para a reza e cantarolia de encerramento – era, pois, a grande festa do Dia dos Santos Reis. Festa bonita e esperada de tanto gosto pela gente do sertão. Todo ano a mesma caminhada, as mesmas alegrias e prazer, o mesmo encantamento de poder adorar o Menino Jesus. Natal é diferente de todas festas, porque une mais os homens, faz deles mais alegres e irmãos. Natal e folias de reis haverá de sempre ter na vida dos homens.
O meu cismejo é por isso. A cada quadra fica mais longe aquele Natal da simplicidade, da bondade das pessoas, dos amigos e da grandeza dos pobres. As folias vão raleando. Só vejo, com satisfação, os ternos de Adão Barbeiro, Vicente Quiabo, Locha, Abel, Olegário, Minervino, os Correa, professor. Pedrinho e Zé Rodrigues..
O dinheiro, o danado do dinheiro que o homem fez como seu deus maior, levou nosso cerrado de jeito de carvão. Nossos sonhos sumiram no ar como sumiu nosso cerrado desmanchado em fumaça. Veio o eucalipto e tomou conta do resto. Espantou o homem, os bichos e fez secar as fontes, tem quase nada de água. Sertão não é mais sertão: morreu, e com ele tudo de bonito que a gente tinha.
De que vai viver o pobre, meu filho? Veja aí na cidade a sua dor, abandono, desespero.... e fome. Padecimentos das dignidades.
Que não morra a esperança, doce Menininho. No coração da gente aquiete a luz do Natal; não deixe de nascer e renascer em nossa vida. Bota luz em nossas veredas para que os reis magos que moram em nós possam caminhar - como caminharam sob a luz da estrela guia - e em cada lapinha guardada no coração do homem, entoar o seu coro de glória: Deus vos salve, Casa Santa...”
Velho Berto tinha mais coisas para dizer, senti isso na direção da sua conversa de acabar. Ele quis que meu imaginário buscasse as respostas à nova realidade e encontrasse a sustentação da esperança.
As caixas já retumbam no meu coração. Sinto o vibrar das violas e violões e os volteios da rabeca chorando, chorando, enquanto pandeiros, reco-recos e balainhos fazem coro, reacendendo lembranças. Os Reis Magos estão vindo para lembrar que o Deus-Menino nunca nos deixou, embora muitos homens procurem, também, extingui-lo do mundo, assim como teimam fazer com o nosso sertão.


GENTE ESPECIAL

Não há como fazer, neste pequeno livro, o registro do nome de todos os homens e mulheres que fizeram a nossa história. Preciso é, contudo, que eu renda minhas homenagens, a alguns deles pelo que fizeram e fazem em defesa do nosso cerrado e nossa cultura.
Por muitos anos fiz parte do universo deles que me cativaram por inteiro. Entre eles o sertanista Zé Guedes, amigo de muitas jornadas; o veredeiro Panta que chorou a morte da vereda Cedro na porta do seu ranchinho; as mulheres sofridas das vazantes – anônimas, mas parte de nossa história; os pescadores, os foliões, os artesãos Minervino, Nego de Venança e Joaquim Goiabeira, encarregados de alegrar a alma do nosso sertanejo.
Falo, com alegria e saudade, um pouquinho de cada um deles.


MINERVINO: ARTESÃO DA VIOLA






São Francisco, o município, tem tradição de fabricantes de violas, rabecas, violões, caixas, balainhos e todo instrumental para folia. Não poderia ser diferente, considerando a imensurável vocação de nossa gente para a música e danças folclóricas – precisava mesmo de tantos instrumentos em seu universo, permitindo a proliferação de inúmeros grupos de foliões. Dos mais famosos artesãos, de hoje, temos o exímio Minervino Gonçalves Rodrigues Guimarães, 73 anos, em 2000.
No exato dia de Bom Jesus da Lapa, na companhia de meu genro André, viajei para o Angical, uma região das mais tradicionais e antigas do município de São Francisco. Depois de rodar uns bons minutos por uma bonita estrada, numa região onde foram plantadas as primeiras fazendas são-franciscanas, chegamos a uma casinha de adobe erguida nas barrancas da grota do Surucucu - era a casinha de Minervino. Ele esperava a nossa visita e, assim, logo entramos em seu mundo de artesão: as toras de imburana vermelha para fazer o bojo das violas e rabecas; os sarrafos de jacarandá, cedro, candeia, para os braços, craveiras e os enfeites; a plaina de madeira que ele mesmo fez, o formão e o sarrafo e uns pedaços de plástico rígido branco – ferramentas e matéria prima para dar forma a instrumentos maravilhosos que nas mãos de foliões dão vida aos diversos folguedos do meio rural, como se fossem mágicos de tão belos sons.
Uma viola para ficar no ponto de ser repicada leva de três a quatro dias de trabalho do seu Minervino. As laterais do bojo dela são armadas com duas tiras de imburana, contornando a forma que tem a curvatura do seu belo corpo, partindo do braço até o fundo, onde se encontram; depois se coloca o tampo, parte superior, com o buraco para expansão do som e o fundo, todo vedado – Minervino usa, para fazer a tampa, a imburana, cedro ou pinho; os frisos de candeio, que é madeira preta, para diferenciar da imburana e o cedro, madeiras claras; o braço é de cedro, mas o espelho dele é de jacarandá; as craveiras de pau d´arco, o cavalete de jacarandá; o braço recebe enfeite de pequenas circunferências feitas de plástico branco, talhadas, delicadamente, com um instrumento inventado pelo artesão. As ornamentações no tampo da viola são feitas com jacarandá incrustado.
Com o instrumento pronto, alisado e com as cordas apertadas, Minervino corre-lhe os olhos embevecido (ele gosta do que faz) e o acaricia dizendo um verso tirado das cantarolias de folia: "Quanto mais raio esta viola, mais aumenta o meu pená!"
A rabeca demanda quatro dias para ficar no ponto de chorar melodias na folia. É toda feita de imburana vermelha, menos o braço que é de cedro. O arco é de aroeira e a linha (cordas) de nylon (antes era de rabo de égua, preferencialmente). Pela delicadeza do instrumento toma-se mais tempo. Pronta, é um primor, soando doces acordes.
Minervino faz, com a mesma arte, caixas de todos os tipos, usando tamboril ou imburana; arco de caraíba, coro de veado e baquetas de aroeira. Pode variar, também, de acordo com o gosto. Conserta o famoso "pé-de-bode" que também gosta de tocar nos bailes da roça.
Na oficina – uma banca fincada debaixo de um xixá - ele também fabrica balainho, reco-reco, pandeiros e todo tipo de instrumento, lembrando que grande carapina foi um dia, quando mais moço, cheio de força e vida, a construir engenhos de cana que moíam macios; currais, cancelas e telhados. Desde menino se entregou à arte de lavrar madeira. Aos 18 anos aprendeu o ofício de fazer viola e rabeca com seu José Bicota, morador do Chapéu de Pedra, na Santa Justa. Saía de casa para aprender o ofício por gostar. A profissão de carapina veio depois.
Conversava com Minervino, no meio das ferramentas feitas por ele mesmo das armações, formas e toras de paus, quando despontou, na porteira de sua pequena morada a Folia de Bom Jesus da Lapa que estava na região – foliões remanescentes do famoso Terno do Sô Loro que o professor Pedro Vieira, da região, está reativando com muito carinho. Minervino se afastou e foi ao encontro do grupo postando-se ao lado da bandeira que conduziu até à entrada de sua casa. Passou-a para sua mulher e tomou a rabeca – um instrumento lindo que acabara de fabricar – e fez a pose de folião, chapéu caído na testa. A rabeca ganhou vida na saudação ao Bom Jesus, nas suças, quatro e numa interessante chula.
Por fim fomos todos tomar da pinga de Zé Rodrigues (Traçadal) na cuia – a pinga era tão deliciosa, mas tão boa que um dos foliões ao acabar de saborear um gole, parou a respiração, olhou para o céu, estalou os dedos, e suspirou com paixão: "Que delííiiiiicia.... parece mel". Tal entusiasmo levou o André que gosta mesmo é de levedo, a se aventurar numa bicota, esvaziando a pequena cuia usada como copo. Depois rodeamos as várias gamelas, para saborear aquele franguinho da roça com açafrão e muito tempero verde.
Minervino, grande e notável fabricante de viola, violão e rabeca é, também, um exímio violeiro e rabequeiro, apaixonado pela folia e pelo sertão onde tem fincado profundas raízes.
Depois desta visita e da publicação feita no Boletim CARRANCA, da Comissão Mineira de Folclore, a vida de Minervino não foi mais a mesma. Não perdeu nenhuma das suas características naturais, telúricas, enraizado que continuou na Grota do Surucucu, mas ele ficou famoso: vende viola e rabeca para Brasília-DF, Rio de Janeiro, Campinas, São Paulo, Goiânia e se apresenta em programas de TV, é citado em revistas e livros. Em tudo, muito contribuiu, também, a participação de Roberto Corrêa, grande autoridade brasileira em viola, sua esposa Juliana e a pesquisador Lia Macchi.
Hoje, a viola da Minervino toca em salões nobres, é o som barranqueiro indo além montanhas.


ZÉ GUEDES E O URUBU-REI CAÇADOR


Zé Guedes, rei das raízes do cerrado, nos tempos em que morava na fazenda Boqueirão, gastava suas horas de folga numas caçadinhas sem rumos, vagando pelos matos da redondeza – coisa de ter carnes de pequenos bichos – dos maiores, um campeiro, se permitisse a sorte de bater com ele, num descuido, sem o propósito da espera. Logo-logo, no entanto, ele ficou famoso. Não como caçador, daqueles que se falam mil maravilhas pela mira, astúcia e conhecimentos dos bichos. Nada disso, Zé não tinha tais pretensões, era mesmo caçador de ocasião e diversão, só por causa de umas poucas carnes, de bichinhos pequenos, só. Nem era, também, por sua ciência com as raízes. Sua fama veio de um fato inusitado, nunca visto antes no sertão. Quando dele tomei conhecimento logo me veio à cabeça uma história africana que lera num belíssimo livro. A história de Zé Guedes corria na mesma linha do midraxe-hagabá do ganense James Aggrey, narrada no livro "A Águia e a Galinha", de Leonardo Boff. No caso dele, não se tratava de nenhuma Harpia harpyja, a águia brasileira, com a belíssima envergadura de até 2,5 metros, de olhos cor de mel, por refletir o sol que gosta de avizinhar nos profundos vôos. Não, era outra ave. Tinha lá as mesmas necessidades, por ser de rapina e carniceira, de voar nas inatingíveis alturas, de onde, quase sempre, descia como uma flecha cortando o ar a modo de provocar um zunido, um forte silvo, como fora um avião – era um urubu. Não era uma águia com modos de galinha, pela criação e vivência torcida, mas um urubu caçador, tal qual um cachorro farejador e anunciador de caça. Não tinha nada melhor para se falar no sertão... e rir, de tão fantástico.
Foi assim.
De uma feita Zé Guedes saiu de casa para uma caçada ligeira. Caminhava distraído, como de costume, matutando as coisas boas do sertão, invariavelmente fazendo o palheiro que enchia de fumo com mistura de carapiá ou imburana, duas essências de perfume inebriante e de vantagens outras, como a de refrescar as vias respiratórias e de dar sensação de alívio no peito. Caminhava por umas trilhas, sem ter marcado rumo e, de repente, tropeçou num filhote de ave - de certa que ele rolara do aprumo de pedras calcárias de uma pequena pedreira que se erguia de um lado da trilha, pois verificando, com seus olhos treinados, não vira nenhum ninho nas árvores próximas. Ficou com dó do bichinho e o levou para casa. Dava para notar logo, de tanta feiura, que era um urubuzinho. "que, por ser tão pequeno e sem defesa, inté parecia ser bonito". Em casa, quando falou dos propósitos de cuidar do bichinho, até ele ganhar forças para voar e sair para o mundo, dona Antônia estrilou: "Quale o que, home, com tanto passarim bonito e de muita serventia, ocê vai cuidá dessa coisa feia e ainda prurriba cumedô de carniça... tem graça!" Criou o bicho assim mesmo. À medida que ele ganhava tamanho e se cobria de penas, via-se que era um urubu diferente. A plumagem era de cor branco-creme, asas pretas, pescoço e cabeça vermelhos, já mostrando as carúnculas comuns nas aves de sua espécie – urubu-rei, sim senhor. Zé tomou amizade com ele e até deu-lhe nome – "Meu Rei". Quando saía para caçar levava o bichinho se equilibrando em seu ombro e se matava uma caça, ali mesmo, no mato, abria-a e tirava a barrigada que era servida ao urubu. O tempo foi passando e ele, criado regiamente com fartos banquetes, ainda frescos, ganhou porte e plumagem de adulto, e logo arriscava os primeiros vôos, mas, ainda que dominasse a arte que dele fez um pássaro, não deixou o poleiro e o ombro do Zé – ficou por gostar. Com o tempo fazia diferença a saída dos dois: por baixo, nas trilhas, desvencilhado dos ramos ia o Zé e, por cima, não muito alto, o "Meu Rei". Ele se mostrava vistoso em vôos circulares; ia mais além, voltava atrás e ficava por ali, por cima do Zé, espiando como só os da sua raça sabem fazer - muito do esperto, visualizava a caça e num vôo rasante, daquele de assobiar, indicava o rumo. Zé entendia, era um sinal, acudia logo de chegar ao ponto onde surpreendia a caça com um belo tiro. Repetia-se o cerimonial de sempre: limpar o bicho, carne para o Zé e fatagem para o "Meu Rei", que comia mesmo como um rei tendo, depois, de vomitar um pouco a modo ter peso de poder voar novamente.
Muita gente da região admirava aquela combinação de caçadores e a história ganhou o campo, muitas vezes enriquecida, tirando umas e outras lições, como acontece no Midraxe-hagadá. Correram anos, até que um dia, empurrado pelas durezas do sertão, as secas, a chegada das carvoeiras e plantadores de eucaliptos que espantaram a vida por ali, Zé se viu obrigado a mudar para cidade sem poder, é claro, levar "Meu Rei". Ficou pesaroso com isso, pois eram anos de grande amizade e caçadas tantas.
Muito tempo depois ainda era comum ver o "Meu Rei" em vôos circulares, sobre a fazenda do Zé, dando repetidos vôos rasantes, de assobiar, tentando, insistentemente, chamar a atenção do amigo que não aparecia. Zé nunca mais apareceu e o "Meu Rei", então, embrenhou-se no profundo do azul, perdido no céu, muito além das altas nuvens. Virou pontinho só e, por ali, ou onde notícias dele foram passadas, ficou sabido: nunca mais deu rasantes, assobiou no céu ou fez caçadas.
Ficou essa história fantástica que ensina, ensina alguma coisa...

NOTA: homenagem ao grande sertanista, meu amigo Zé Guedes, que nos deixou, sem avisar, no dia 26 de maio de 2002.


AGENOR PANTA

Quadras de eucalipto ocupam vasto campo onde outrora vicejava exuberante cerrado. Uma estrada estreita, coberta de areia ora dourada, ora branca, deixa aqueles palitos sem vida, avançando sobre um descampado, onde se vê a terra toda sulcada por falta de vegetação – era um antigo campo de eucaliptos. Mais na frente um ranchinho rústico: a morada de Agenor Panta – uma casinha de adobe, coberta de telhas brancas, do barro preto da vereda, tendo à frente um curral de paus roliços quase sem serventia. Do outro lado abre-se uma campina até esbarrar numa vereda, a uns trezentos metros abaixo, num plano suave. Do lado de cima a desolação, nem lembrança do antigo cerrado dos gonçalos, jatobás, tinguis, pequis e a bela vegetação rasteira natural dos campos: carvoeiros e plantadores de eucalipto tudo rasparam. Foi por volta de 1982, lembra, amargurado, o velho Panta.
"Era diferente, tudo tão mais bonito que hoje. Lá embaixo – fala apontando para uma vereda – corria o Cedro Véio, entre os buritis embaúbase muita ramagem. Dava pra ouvi o baruio dele abrino caminho no meio das foia e raiz. Dava gosto de vê a quantidade de pêxe que a gente buscava. Traíra intão nem se fala. O Cedro Véio descia formoso e levava muito água para o Cedro, o maior, que descia pelo cerrado até jogá no rio Pardo e daí até no rio Grande (São Francisco). Agora, moço, o Cedro Véio num adjutora mais – male-male um restinho de água é o que tem. Só leva areia para o outro Cedro e eles tudo junto vão intupi o rio Grande. Vai lá e vê. Sinhô pode passá nele de pé, sem pricisá tirá a bota. Água de corrê só quando chove e até isso anda difícil. Do jeito qui tão as coisa vô tê qui fazê qui nem os outro: fazê trio para a cidade. Sei qui é pra sofrê, mas o que a gente vai ficá fazeno aqui? Num pode plantá, pois num chove e quando vinga alguma coisa os passarim come tudo, apois eles num tem mais adonde comê no mato. Os home acabaro cum as flô e os fruto do cerrado, tem mais nada. Sabe, num tem nem raiz para adjutoro de um chá ou garrafada. Cê sabe, num é só os passarim não. Os bicho peçonhento e tudo que é praga vem pra dentro de casa: cobra, rato, lagarto, morcego, barbeiro e tudo que é coisa ruim. Acuma vivê cum isso...Tenho tanta sodade do tempo que tudo isso aqui era mato, com as coisa boa do cerrado e o Cedro Véio sustentando água o ano inteiro, com os poço cheio de pêxe. A gente saía de casa, dava um pulinho no cerrado e trazia cabeça-de-nego, pequi, cagaita, murici, umbu-d´anta, coquinho azedo, todo tipo de raiz e casca de pau pra cuidá da saúde e dá comida prus bicho; buscava o tingui pra mode fazê o sabão; buscava a piúna pra mode pintá os algodão qui a muié mesmo tecia. Fartura que restou ficou o buriti com seu fruto, mas oia só o siô, daqui, oia como tá raliado. Já foi mais cheio e formoso. Se o sinhô fô lá vai vê que os banco de areia que iscorre das plantação do eucalipo e dos terreno que os carvoeiro arrancaram os paus com correntão tão intupindo os óio d´água e até sufocano as mudinha de buriti. Tá matano tudo deixando só a quaresmera. Sabe? A quaresmera, cum sua flô quase roxa, quando ocupa o lugá da vereda fica parecendo flô de cemitério. Tá cheio de cor, mas é siná de sôdade e nada mais... Vô deixá meu rancho. Vô cheio de dô, pois num levo cumigo as cor do meu sertão, os canto dos passarim; o grito da seriema ou o gemido da ema; num vô vê as arrilia das arara nos topo dos buriti caçano ninho nem os papagaio e jandaia. Num vô tê aquelas noite das folia, com os canto bunito da rabeca e viola, acompanhado dos tun-tun das caixa e os companheiro com a tolha enrolado no pescoço saudando o Menino Jesus na lapinha. Vô porque tenho que ir, mas meu coração vai ficá aqui..."
O Panta e tantos outros sertanejos se viram forçados a deixar o campo e toda a sua vida. Verdade, tudo verdade, o que ele contou com lágrimas molhando os olhos cansados. Descendo a vereda, vimos e pegamos o que restou da destruição causada pela ganância do homem: ela está seca; não mais olhos d´água, não mais mudas de buritis.... montes e mais montes de areia, como dunas de um deserto, avultam e cobrem tudo lentamente, pedaço a pedaço, a cada ano. Dali descem montes e mais montes de grãos para o Cedro e dele para o Pardo. Outra história: a foz do Pardo, no Velho Chico, é um cenário macabro, lembrando os filmes que retratam uma hecatombe nuclear, o que pode restar do planeta. É um cenário assustador e que anuncia o que será a vida daqui a uns anos. Quem viver verá...


MULHERES DA ILHA DO LAJEDO

Uma frase solta no ar, às vezes, soa como poesia, que é inteirinha por si. Sugere. Conduz. Suscita emoções e fantasias. Choca. Abala...
“Mulheres da Ilha do Lajedo” - uma frase que ouvi, no anunciar de um oficial de Justiça no Fórum da barranqueira São Francisco ao devolver um mandado. Bateu-me no ouvido, ou melhor, na caixinha de fantasias e voei. Sem sair do Fórum, corri o Pacífico para ancorar meus sonhos na ilha do Havaí. Saí correndo por praias brancas até ser recebido por belas havaianas com sarongues sensuais, mostrando as coxas morenas, enfeitadas com colares de flores cobrindo os seios intumescidos, dançando a hula de maneira de modo provocativo, remexendo os quadris e, depois me recebendo com belíssimo e perfumado lei. Arre! Como é possível sonhar, acordado que seja.
É, mas a poesia pára por aí. A realidade pode ter – e deve – seu lado belo, mas não é assim tão poético e com tanta fantasia. Pensei nas mulheres da Ilha do Lajedo, no rio São Francisco que têm outras características e história – não sabem o sarongue, nem colares. Têm, contudo, pelo menos, um teto e uma boa gleba para plantar e casas, ainda que modestas. Outras mulheres temos, em nosso rio da “Unidade Nacional” que, sem terra, plantam nas ilhas da Nação, como confessam cheias de resignação. Sem teto, dormem na areia (como os barqueiros do Volga, tendo como teto o céu azul; como leito, o chão); sua dança é a da ferramenta ferindo o solo, abrindo covas para lançar sementes de abóbora e feijão; os braços e as pernas são tostados, mas pelo sol inclemente da faina diária, de claridade a claridade. O ventre não retorce com volúpia, mas de dor, trazendo as estrias ou volume de tantas crias – onde come um, comem dois, três... Sem brejeirice no sorrir, pois não têm o brilho dos dentes.
Mulheres das ilhas do São Francisco, ainda assim melhores e tão melhores que as mulheres das lonas de plástico, dos frios e infectos viadutos, das favelas imundas, mulheres que não têm mais alegria por terem esquecido como é ser feliz. Mulheres das ilhas do São Francisco trazem e levam sua pouca esperança, deixando os grãos de areia para receber seus pés doídos e machucados, rastro do meu triste Brasil.
Mulheres das ilhas do São Francisco, honradas vazanteiras, eu as queria também tão fagueiras, felizes, alegres, cheias de vida e esperança. Quem sabe, assim como lutamos para salvar o nosso Rio São Francisco não possamos embalar vocês também. E aí, quem sabe, o nosso São Francisco possa lavar sua tristeza e sofrimento, e abençoar sua dor, diante de tanto esquecimento, para que um dia, possam ser uma explosão de vida e alegria, só poesia e, quem sabe, dançar um alegre lundu, saracoteando o dorso com bonito colar de flores da nossa terra: e, de lado do cabelo moreno, uma mimosa ciganinha.


O PESCADOR JOÃO BÚZIO

Negro véu cobre o rio. Dormem as águas sem murmúrio. No teto do mundo um painel cintilante que nem bando de vaga-lumes resplandece. Tudo tão quieto.
O bico da canoa espeta o rio de manso; remadas cadenciadas, sem força, vão ferindo a água sonolenta; borbolhinhas saltitam levantando suaves maretas, uma esteira na passagem do barco – sai o pescador para mais uma jornada. Num remanso, puxa o jequi; numa pequena enseada, joga a tarrafa; no braço do rio que se abre pelo lado da ilha, nas águas rasas, puxa a rede estendida. Tendo uma noite boa o pescado forra o fundo da canoa: curimatãs – a maior parte; surubins – se a sorte vem; curvinas - com a promessa das pedras para servir de remédio; pocomãs e caris, menos apreciados, mas saborosos numa boa moqueca.
O barrado do dia vai subindo preguiçoso. O rio acorda – leves maretas lavam o rosto dos barrancos; a natureza abre os olhos: ruídos de toda banda. Os alados deixam os galhos dos paus, riscando o céu dourado da manhã – bandos de ruidosos ariris; mergulhões em vôos cerrados; gaivotas estridentes buscam as praias e as garças, em vôo malemolente, bandeiam para as lagoas de águas rasas.
A vida acorda. O pescador vira o bico da canoa e rema forte de volta para o porto. Atraca-a no barranco, juntando-se aos companheiros da mesma jornada. Um leve alarido e o manejar dos peixes de modo que os mais bonitos e especiais fiquem à mostra. Instintivamente, retira do fundo da canoa um instrumento muito rude, feito de folha-de-flandres, por ele mesmo - uma espécie de berrante. Faz a chamada, ecoa um som de corneta, como um berrante, mais esganiçado. O som vai se repetindo, imitando as ondas, quase sem parar, só o tanto para chupar o ar e encher os pulmões; sobe o barranco, invadindo os casebres ribeirinhos; ultrapassa o largo, onde bois soltos lambem a grama orvalhada arrancando folhinhas sem sofreguidão, e penetra pelas ruelas mais além. Zoando, zoando, zoando. O que já está de pé, dos t r a d i c i o n a i s madrugadores, assunta: está na hora. Outros são despertados, metem uma calça surrada pernas acima, os pés nas precatas, e pegam a trilha rumo ao rio. De repente, forma-se uma procissão de homens e mulheres, todos atraídos pelo toque dos pescadores, como canto de sereia.
Manhã de peixe fresco.
Do velho costume, hoje só história. Restou apenas um nome – Búzio, do instrumento (a modo dos pescadores do mar que soprando em conchas de moluscos, anunciavam a sua chegada ao porto). Pescadores, muitos, formavam um magote, compondo aquela orquestra incomum, mas apenas um carregou o nome que se tornou popular, tradição de pai para filho e até hoje é conhecido na cidade, como nome de uma família: João BÚZIO.


JOAQUIM GOIABEIRA

Dois artesãos admiráveis que fundem as preciosidades da natureza – do cerrado ou mata seca – à alma do homem. Um, Joaquim Goiabeira, com arte e amor, torneia toras de cedro, tamboril ou imburana, armando-lhe o couro curtido (o mais usado é o do bode – do boi é muito ressecado produzindo um som muito agudo) para que surjam as maravilhosas caixas dos foliões. Jeito simples, tão comum como tantos outros, mas um artista porque cria os instrumentos que vão saudar o Menino-Jesus ou tantos santos de devoção dos ternos de folias. Caixas mimosas
Joaquim nasceu em 1938 na comunidade de Vargem Grande, Brasília de Minas, mas foi criado na fazenda Santa Justa, São Francisco. Ele aprendeu o ofício de fazer caixa “porque queria ter o seu próprio instrumentos para acompanhar as folias”.
Os pesquisador Edilberto Fonseca e Wagner Chaves promoveram Joaquim Goaibeira a celebridade, incluindo-o no plano de inventário de instrumento musical do IPHAN, levando-o, com outros foliões ao Rio de Janeiro onde, no Museu do Folclore, vendeu suas caixas e ficou conhecido.
Wagner escreveu a respeito da importância do instrumento fabricado por Joaquim Goiabeira, a caixa: “uma das características mais especiais da caixa utilizada nas festas sagradas das folias é o fato de ser um instrumento de percussão que possui afinação. Por meio de um sistema de amarração, seu som pode variar de acordo com a tensão exercida sobre o couro do instrumento. Mais tenso, mais agudo; menos tenso, mais grave. Isso faz com que a caixa participe ativamente do processo de afinação dos instrumentos que antecede o início de qualquer canto das folias. Se na maioria dos casos a afinação geral dos instrumentos é dada por um som emitido pela viola ou pela rabeca, este pode também ser tirado da caixa”.
O trabalho do Joaquim foi reconhecido e com isso, através do IPHAN, montou uma escola para preparar os futuros artesãos e, com isso já está fazendo escola.


NEGO DE VENANÇA

Outro mestre que se destacou além fronteiras foi Augusto Ribeiro, mais conhecido como Nego de Venança. Ele ficou mais conhecido recentemente, quando a fama dos artesãos de instrumentos musicais para foliões, de São Francisco, começou a ganhar os noticiários. Contudo, Nego de Venança tem um passado de respeito – como artesão e como músico. Na sua pequena oficina, na rua São Romão, próxima à praça da Igreja Nossa Senhora Aparecida, ele era muito procurado para consertar acordeão, violão, viola, cavaquinho. E isso fazia como ninguém. Era procurado, também, para acompanhar os Reis dos Temerosos em suas apresentações na cidade e noutras localidades, geralmente em festivais de arte popular, como sanfoneiro – é isso, o Reis dos Cacetes não se apresenta sem a sanfona, ela tem uma função muito especial na cadência da dança e para marcar os toques das cacetes.
Nego de Venança nasceu em 1936, na Vargem de Casa, São Francisco. Cedo ele se interessou pela música. A influência começou com o pai, Damásio Ribeiro Neves; depois com um irmãos mais velho, Inácio Ribeiro Neves.Com a morte dos inspiradores ele ficou sem mestre e, então, teve de fazer tudo sozinho “com a minha inteligência”, como diz ele que arremata: “aprendi sem mestre nenhum é sangue de família”,
Nego trabalhava como carpinteiro, na construção de casas até quando a saúde permitiu. Depois, sem poder fazer muita força por causa da coluna, dedicou-se à fabricação e conserto de instrumentos, no que se transformou num grande mestre.
Nego já acompanhou muita folia – de Bom Jesus da Lapa e de Reis. Acompanhava a folia tocando violão, mas sempre trocava de instrumento – tocava viola, rabeca, cavaquinho, o que desse na hora. Ele gosta mesmo é do violão. Foi o instrumento que ele aprendeu tocar em primeiro lugar, o que faz com muito sentimento.
O mestre Nego de Venança é casado com Dona Jovência Pereira de Queiroz – Dona Jô – que o acompanha em suas apresentações tocando balainho e cantando.
Nego de Venança compõe o trio de mestres artesãos de São Francisco que têm oficinas monitoradas pelo IPHAN, Rio de Janeiro. Ele também participou do grupo que foi ao Rio de Janeiro representando os foliões de São Francisco. O seu trabalho foi publicado pelo Museu do Folclore, do Ministério da Cultura.

Nota: Nego de Venança nos deixou.

Os mestres Minervino, Nego de Venança e Joaquim Goiabeira têm, hoje, seu trabalho no manual Sons de Couros e Cordas – Instrumentos Musicais Tradicionais de São Francisco publicado pela Sala do Artista Popular do Museu do Folclore Edson Carneiro – Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular – IPHAN – 2005. Os mestres Minervino e Nego de Venança são retratados no livro TOCADORES – homem, terra, música e cordas, de Lia Marchi, Juliaana Saenger e Roberto Corrêa, edição Brasil 2000 (Olaria projetos de arte e educação; e músicas publicadas no livro Viola Instrumental Brasileira, de Andréa Carneiro de Souza (ARTVIVA, EDITORA)


O HOMEM QUE CONVERSA COM OS BOIS



Porque onde está o teu tesouro,
aí está também o teu coração. Mt. 6 –21.


Do nada para o nada, era o destino de Raimundo. Não tinha vindo de dizer ao certo e não imaginava onde esbarrar seu corpo e os teréns que levava em dois carrinhos-de-mão por uma estrada rasgando o quase infinito das campinas de São Romão rumo à Conceição, famosa nos tempos idos por ter sido fazenda da terrível Joaquina do Urucuia. Raimundo se destacava na imensidão do cerrado, na estrada branca ornada de amarelinhas e ciganinhas floridas debaixo de tinguis e pequis gigantescos: alto, de mais de um metro e oitenta, forte e rijo como o pau preto que cresce nas matas pingadas no sertão, nos pés das serras ou orlando ribeirões; de carnes duras, barba espessa e negra como asa de urubu escorrendo abaixo do queixo, quase a ganhar o peito. Era tão incomum à região, tinha um quê de rei zulu: a postura altiva, a voz serena, conversando como quem dá sentenças, sem as frases interrompidas e para dentro, como comum no sertão. Os traços bem definidos na enorme cara que brilha como ébano lustrado; os olhos castanhos melancólicos, atirados ao distante, no tempo e no espaço; os dentes fortes e claros, como marfim, sem sinais das janelas tão comuns à pobreza regional, onde o dentista “saca o dente sem dó e nunca faz tratamento”. A testa larga e forte, como uma chapada, encimando o nariz grosso comum à raça. Via-se que ele não era dali e se ali estava, de ficado, seria mais por um motivo sobrenatural.
Eu, por dizer de gente que o conhecia, e por pura vontade de contar causos sobre as coisas do sertão, fiquei sabendo dele existir num ponto do nada. “Ali na frente tem um homem que mora numa toca qui nem bicho!”. Cheguei, numa bela manhã, de um belo dia de céu azul e nuvens bailarinas, fofas e caricaturais, sombreando o cerrado, onde me apontaram estar o “homem”. Corria o ano de 2 000.
Era, o cenário, a paradisíaca vereda do Escuro. Como o Nilo é para o
deserto ou o São Francisco para os barranqueiros, o Escuro é uma dádiva do cerrado seco, de areia branca, para o campineiro ou um sedento viajante: água em abundância, poços profundos, negros-negros de não se ver o fundo – escuro de meter medo, por mostrar ser morada de muitos sucuris. Ela é transposta sobre uma ponte de madeira com o comprimento que vai para mais de vinte metros; acima e abaixo seu leito denso se abre em dois lagos com a água rodeando moitas de capim, troncos de buritis e caules de pindaíbas e embaúbas, brancas, finas e lisas como estacas. Cavalos e vacas, distraídos, raspam a grama verde, fresca, tenra, animando a paisagem. Vencida a ponte, de um lado da estrada depara-se com um bosque de jatobá-do-campo de jeito de pintura e todo tratado - graciosos troncos, riscados e retilíneos, subindo até se abrirem em galhos, abraçados e entrelaçados uns aos outros, formando uma só copa, uma suave cobertura verde de sombra fresca a cobrir uma extensa área que vai da margem da vereda à entrada de uma clareira de chão batido onde se vêem estranhos objetos nascidos do engenho do homem, com coisas do meio: jiraus de pau roliço, fogões de barro, estranhas figuras geométricas, imitando crateras e cheias de pedaços de paus a fumegar e, mais além, um ranchinho e, à porta dele, um negro enorme despejando água, por comprido, no chão. “É ele, sô Raimundo”, alardeia o acompanhante.
O homem apontado, à chegada dos visitantes, levantou serenamente a cabeça, sorriu e convidou todos para que adentrassem em seu rancho, era lá sim que recebia visitas e não ali, em pé, no meio do terreiro – “um despropósito”, parece ter dito com os olhos. Encerrei a fila. Admirei, antes, o ranchinho: parecia coisa de conto de fada, casa de duende, embora ele, Raimundo, fosse tão grande, despropositadamente grande para aquela mimosa vivenda coberta de palha de buriti com as paredes de enchimento. Era ele cercado com paus roliços, dispostos num espaçamento de trinta centímetros entre eles, horizontalmente. O acesso à portinha do rancho, se fazia por uma passarela – um passeio de terra batida com trinta centímetros de altura, largura de um metro, protegido, pelas abas, por troncos de árvores – forrada de folhas verdes, um tapete espesso e macio. Canteiros de plantas medicinais cultivadas: marcela, tipi, hortelã, malvão, pimenta e outras se estendiam pelo terreno. Deixei o universo da luz e penetrei na escuridão do interior do rancho – três compartimentos sem janelas: a cozinha, um quarto com catre de buriti e outro quartinho com muitos sacos cheios de folhas e raízes. Isso percebi, depois dos olhos acostumados. Raimundo estava sentado num banco feito de colmos de buriti. Sereno, tranqüilo, com um ar que contrastava com seu tamanho. No fogão, duas latas cheias de folhas, mais nada. Perguntei se podia fotografá-lo e ele respondeu com um enigmático sorriso: “O senhor dispõe...”.
Raimundo Sebastião Vieira Lima, nascido em 47, dele foi o que disse, no mais ficou por conta de nossa imaginação, o ir profundo em seus mistérios, modo de ser e de viver, como é tão comum no sertão, onde se vê de tudo e quase nada se explica. À luz do sol a sua enorme figura se apresentava de todo: o fornido pescoço rodeado de rolos de fumo preto; dos braços pendem pulseiras com toletes de fumo; o corpo, por dentro da camisa, é enrolado de fumo; o mesmo se dá com as pernas e, para completar, tirando o boné, mostra, sorridente, uma rodilha de fumo – literalmente ele é enrolado por tiras de fumo. Sua explicação é simples: para afastar as formigas que causam muitas doenças ao homem. Por isso ele aspergia água em volta do rancho – era calda de fumo o que ele distribuía, regularmente, em regos, nos pés das plantas e dentro do rancho. Não vi um sinal sequer de formiga em sua clareira. A exótica construção de barro, imitando uma cratera de vulcão, tem a serventia de fabricar cinza que Raimundo usa misturada à água quente para escaldar os pés a fim de tirar todas as impurezas do corpo – conforme o caso ele recomenda a infusão de corpo inteiro. Curiosamente percebi uma ligação da cratera com a figura da boca dos enormes formigueiros – o desenho é o mesmo. Não estaria ele, simbolicamente, dando combate às formigas, causadoras de tantas doenças que acometem o homem? Era factível se visto pela ótica e modo de ser do Raimundo.
Encostado no jirau, um objeto estendido ao longo do terreiro: uma vara com mais de seis metros de comprimento com um recipiente amarrado numa extremidade – um bojo de plástico. Serventia: pegar água na vereda escura. Raimundo não chega perto da vereda, pois teme, de certeza arraigada, a cobra-grande. E sabe da existência dela por aviso dos bois. Dos bois, seu Raimundo? “Pois é o que conto, os bois sobem o córrego e esbarram aqui no terreiro para me dar notícia de onde está a cobra-grande. Eles saem todos para o largo e, eu, então, fico de longe, só apanho água com a vara, essa aí”.
Questionado, ainda que com delicadeza, como seria possível conversar com bois, seu Raimundo finalizou enfático: “como não houvera de ser!. Então o senhor acha que os animais não falam uns com os outros? Não acha o senhor que sendo todos viventes criaturas de Deus, não houvera de ser a gente também de entender? Pois é o que falo e garanto, os bois conversam comigo e me dão notícias da cobra-grande e eu estou aqui vivinho para contar ou será que já morri?”
No universo dos Famaliá, Romãozinho, Cabocolo d´água e outras entidades da vida do sertanejo, numa crença secular (eto reservado por ser vida passada), dá para duvidar que Raimundo conversa com os bois?
Deixei o Raimundo no seu mundo. Ali sozinho, comendo do que lhe dão os passantes, mas apreciando como melhor dádiva uma tora de fumo. Dali por nada sairia. Pensei no meu mundo, noutros mundos e outras gentes; nos confortos da vida moderna, nas grandes conquistas do homem; pensei nas guerras e violências; nas doenças – o nosso estilo de vida. Fiquei com uma idéia difícil de passar por parecer muito simples ou por contrariar o pensamento daqueles que cuidam muito da vida dos outros (no sentido “bão or não”), buscando um padrão ideal e comum – geralmente o do seu pensamento: talvez a maior riqueza do homem seja a sua pobreza. Foi o que ali senti profundamente: ao seu modo Raimundo é um homem rico, muito rico.
Em 2.002 passei naquele sítio em companhia do amigo Luiz Gandra e, novamente, conversamos e tiramos muitos retratos do Raimundo. Em 2005, em outra viagem, pensei em papear mais um pouco com ele. Não foi possível: no local nem sinal do seu rancho, seus objetos e canteiros verdes. Não consegui informação a respeito de seu paradeiro. Não faz mal, guardei sua lição de vida na minha saudade.


EPIFÂNIO E O GINETE

Tiradas especiais nunca faltaram ao Aristomil Mendonça. Na década de 60 ele apareceu na cidade com um jipe amarelo que batizou de Ginete – o carro fazia sucesso, pois eram poucos os veículos da cidade. No Cartório, do qual era titular, ele tinha como auxiliar o Epifânio – dois bons amigos e fazendeiros, Aristomil no "Barandão" (Brandão), nas beiradas do rio São Francisco e o Epifânio nos gerais de Pintópolis para onde eram comum as suas viagens ao volante do Ginete.
Numa feita, ele viajava na estradinha branca, apertada no meio das abas cobertas de capim de raiz, amarelinhas, lobeiras, pau-torto e tantos outros paus de ser do cerrado. Estrada coleada que nem caminho de serpente, destampando-se curva em cima de curva. O danado era o facão – um monte de areia formando cocuruto no eixo da estrada, obra dos pneus dos caminhões, ainda que poucos naquele tempo, ou pela jardineira do Ximbica, o pioneiro no transporte de passageiros para o sertão urucuiano. O jipe para correr estrada tinha que ser com arte: duas rodas de um lado alinhadas no leito profundo, e as outras, do outro lado, beirando o facão, mas bem juntinha mesmo. Se errasse na trilha, por qualquer manobra brusca no volante, e a roda subisse no facão, o carro era jogado no cerrado. Se errasse no alinhamento deixando que as rodas, dos dois lados, ganhassem as duas trilhas da estrada, enterrava-se o diferencial no facão e aí duas coisas podiam acontecer: o carro ficar preso na areia, com as rodas de tração no ar, ou ser jogado para fora da estrada, sem controle. Correr era uma temeridade, exigia treino maior. Cruzamento de dois carros no mesmo leito, nem pensar. Um haveria que ganhar o mato, de boa educação e camaradagem se lhe fosse mais propícia a escapulida. Viajava Epifânio e, por mais que paciente fosse, deu vontade de chegar logo em sua fazenda, despejar as sementes que levava e "engordar uns bois com os olhos". Pisou mais fundo, sem se importar com a estrada apertadinha e as tantas curvas. Subia a areia dourada. Corria o Ginete amarelinho. Zum... zum... zum... que bela e doce canção de chegar. De repente, numa curva, numa fechada curva, sem alternativa de qualquer desvio e saída, surge um pachorrento, caminhão, daqueles velhos, de rara lataria, motor fumegando a céu aberto; carroçaria só a mesa, pneus quase todos sem bandas, corroídos - caminhão de empraçar madeira. Não podia estar na estrada, mas estava, e no lugar e momento errados para o Ginete que, por não ter outra maneira de ser, diante do espanto do Epifânio, acabou por enfiar um baita beijo no radiador daquela coisa medonha. É claro que ele levou a pior: ficou de bico torto, fumegando e sem poder andar.
Epifânio, naquele dia, não "engordou nenhum boi", levando, apenas um baita galo na testa...


A ALMA FICOU NOS GERAIS

Menino pobre, nascido no pequeno povoado de Serra das Araras, onde, uma vez por ano, acontece a famosa romaria de Santo Antônio. Nasceu uma coisinha de nada: pequeno-pequeninino, tão esmiliguido. Família pobre, coisinha de nada, não tinha como dar de comer para ele que foi crescendo raquítico. Pior: não falou “mamãe”, não pediu “papá” – era surdo-mudo. A desdita não ficou aí. Muito cedo ficou órfão de pai e mãe.
O destino, no entanto, reservou-lhe um agrado - foi adotado por uma caridosa mulher, fazendeira da região do rio Acari. Recebeu atenção e no novo lar se fez rapaz. Corria os campos nos pêlos dos cavalos, tangia o gado para o curral, mergulhava nas cristalinas águas do Rio Acari; no campo enchia sacos de pequi e cabeça-de-nego e saboreava outras deliciosas frutinhas. Tinha todo um mundo à sua volta. Vivia feliz.
Um dia o destino, mais uma vez, fechou-lhe as portas. Morreu o fazendeiro e a mulher não pôde enfrentar as lides da fazenda, trabalho assaz pesado. Mudou para a cidade e levou o rapazinho. Não deu certo no novo mundo. Foi para a cidade, mas sua alma ficou na fazenda, no rio Acari, vagando no vasto cerrado. Acostumou não. Levou pouco tempo para principiar as andanças rumo ao porto da lancha (travessia do rio São Francisco) e depois ganhando a estrada comprida do sertão, sumia de vista até que alguém o reconduzisse à cidade.
O tempo passou. Ele não conseguiu chegar ao Acari. Não achou mais sua casa, o seu cerrado. Nas caminhadas, contudo, infelicitou-se de vez – pessoas de espírito ruim que gostam de ver a infelicidade dos fracos, por achar engraçado, deram-lhe o gosto da cachaça. E se fez, então, um andarilho solitário e alcoólico.
O pobre rapaz ainda é visto atravessando a balsa, indo e voltando do outro lado do rio, com sol ou chuva, levando sua alma para encontrar seu mundo, seu cerrado, seu ninho.


PINICO SERIEMA

Quando se mergulha nos escritos de Guimarães Rosa, quase sempre se imagina diante do absurdo. É preciso ver, pois se vem mergulhar no sertão, de perto, no mundo das lendas, dos mistérios, das crendices e no sobrenatural, vira parte desse absurdo, quase sempre extasiado.
Pinico Seriema foi parte desse mundo. Pode parecer singular, mas quem o conheceu e presenciou suas façanhas, nos tempos em que se parava para ouvir histórias e que se tinha conhecimento de cada folha que caía na cidade, sabem-nas verdadeiras.
A primeira revelação de seu estranho poder aconteceu quando teve um irmão brutalmente assassinado numa pacata rua da cidade. Ele chorou sobre o seu corpo, mas se mostrou passivo, quando soube que o assassino ganhara o mato. Todo mundo esperava uma reação violenta, ou a busca do celerado, ou a aplicação da lei do talião, ainda tão em moda naquela época, de comum que era de não se esperar pela Justiça.
Siriema chorou e foi para casa, dizendo baixinho - “ele vorta”.
Três dias depois o então delegado Arnaldo Gangana ouviu batidas em sua porta, à noite, bem tarde. A tênue luz da lamparina que levava na mão clareou a cara do visitante, deixando o delegado atônito: lá estava o matador do irmão do Siriema. Ele se entregou ao delegado dizendo: “Dotô, num consegui fugi. Pode me prendê”.
Siriema era rendido, mal acomodava o enorme escroto nas calças. Sentia-se mal com o incômodo, mas quando se alegrava ou queria mangar de alguém, era com ele que se manifestava, sacudindo-o, entre os panos, dando risadas de satisfação. Era o que fazia sempre depois de suas proezas. Delas, a mais comum se dava quando fugia um preso da cadeia da cidade. Ninguém sabia a razão, e que estranha ligação havia entre ele, um homem rude e avacalhado, com o sargento comandante do destacamento local. Fugia um preso, ia o sargento contar-lhe o fato, ao que ele dizia - “se avexa não, home, ele vorta”. Ficou na história o caso de um tal Toninho, preso esperto, serelepe que escapuliu das grades e se mandou para as bandas de Januária, atravessando o São Francisco, pelo que se soube aqui mesmo na cidade, de canoa, nas altas horas da noite. Dias depois, murchinho, ele se apresentou ao sargento, dizendo: “Sô sargente, cansei de fugi. Assunta só que quando joguei travessia do rio Pardo, ganhano os barranco de Januária, num podia caminhá. Era só arribá no barranco que meus pé virava uma bola. Vortava para água o pé afinava. Batia o pé ortra veze no barranco e ele tornava inchá. Teimava na empreitada, mais num dava sucesso. Cansei, seu dotô. Meu lugá, matutei, deva de sê aqui, pois tinha uma coisa ruim me puxando. Oia só pru cê vê, meus pé, tão fino qui nem sempre foi. Vorto fugi mais não!”. Quando o sargento contava a volta dos presos ao ninho, Siriema desatava em risadas, s a c u d i n d o desbragadamente, sem respeito a quem tivesse por perto, fosse homem sério ou dama, o descomunal escroto.


ZÉ BERTO, NOSSO BARÃO DE MUNCHAUSEN

Zé Berto não mentia, contava histórias. Inventividade não lhe faltava. Saiu um dia para caçar. No caminho encontrou uma novilha de seu gado desgarrada.Tentou, mas não conseguiu tangê-la para o curral e, para que ela não perdesse nos gerais sem fronteiras, furou-lhe a língua, passando, pelo buraco uma corda que, depois, amarrou em uma árvore e foi buscar ajuda. Voltou com a mulher e se assustou ao chegar à praça onde amarrara a novilha. “Cadê a vaca?” No pau onde a deixara amarrada, somente a fatagem dela; pendurada na corda: língua, fígado, rins, bofe... Zé Berto virou para a mulher e sentenciou: “Leva a fatagem e vai preparando o sarapatel que vou campear a novilha. Essa não escapa...”
Ele não mentia, contava história. Delas, uma fantástica é a do gato voador. Numa feita, quando zanzava atrás de suas caças, acompanhado do inseparável bichano, grande, peludo e de tão esperto que só faltava falar, chegou a uma clareira onde se refestelava na carniça, um bando de urubus. De inopino o bichano pulou nas costas de um deles. Foi como um tiro de polveira: a urubuzada se espalhou como por arte ensaiada. Grudado nas costas de um grandão lá foi o bichano. O urubu pegou a ascendente - rodando, rodando, rodando e quase sumiu no céu. No chão, o Zé acompanhava a estripulia do seu bichano. “E agora, como vai voltar?” Foi quando ouviu um sibilado como de um avião a jato. Zé arribou os olhos e viu, despencando lá das lonjuras, um pontinho preto que foi crescendo, crescendo e o barulhão aumentando. Só deu tempo de perceber quando o ponto ganhou forma de coisa: era o danado do urubuzão e, por cima do corpo dele, o bichano. Zé conta: “o bichano tava que nem uma tábua nas cacunda do agorento, com as garras cravadas no pescoço dele, pêlo arrupiado, qui nem quem toma choque, e os oinho apertado... Foi digeiro pois de arregalá os óio direito só vi ele vortano pro alto levano o meu bichano que nunca mais vi. De certo, que de tanto avuá na cacunda do aribu que aprendeu avuá tomem”.


ADJUTÓRIO PARA MORRER

Num daqueles ranchinhos esquecidos nos gerais, na entrada de uma bela vereda, dona Maria esperava a hora, pobremente estendida num catre de buriti. Dete, uma caridosa alma que a todos socorria no sertão com seus misteriosos conhecimentos da medicina caseira e benzeções, assistia a pobre mulher, dando-lhe pelo menos carinho na hora final. Os sinais vitais pouco eram percebidos. Só os acostumados a lidar com doentes, especialmente naqueles casos, é que sabiam que a vida teimava, mas o fim era chegado. O tempo corria e nada, dona Maria gemia e gemia, mas não viajava. Passado um tempo, Dete deixou o leito por uns instantes. Voltou mais tarde com uma tigela de sopa, quentinha e suculenta. Levantou a cabeça da quase-morta, escorando-a com carinho na perna e, com cuidado, lentamente, fazia com que ela sorvesse colheradas de sopa. A pobre mulher mostrava jeito de reviver e ganhar brilho nos olhos antes opacos, só atrapalhavam os gemidos compridos e tristes que não se sabia de prazer ou dor. Acabou de tomar a sopa – a tigela todinha. Dete ajeitou novamente sua cabeça no travesseiro, de leve, muito de leve. Foi o suficiente: assim que se encontrou repousada, ela soltou um leve suspiro e .... viajou!
Espantado, um presente quis saber porque ela morrera justo depois de tomar uma boa tigelada de sopa, mostrando-se até mais viva.
Dete, sem demonstrar surpresa, sentenciou com sabedoria: “ela estava sem força para morrer. Precisava comer para ganhar força e viajar...


VIVENDO E APRENDENDO

A casa dos Pereira, uma construção antiga, paredes de adobe e telhas curvas manchadas de tão velhas, estava tomada de profundo silêncio, só interrompido pelos soluços de alguma mulher que não suportava segurar a dor de ver, lá no quarto, o chefe da família, o seu Manoel, entre a vida e a morte, nem mais podendo falar.
A hora parecia se aproximar mais ainda e, aí, os parentes que se desmanchavam em prantos, reunidos no quintal e na cozinha, ouviram um chamado desesperado:
- Acudam! Acudam o pai tá morreno! – foi o alarma.
Chegando ao quarto viram que o velho já não respirava. Ocorreu-lhes, então de aceder uma vela. Um cristão não pode passar para o outro mundo sem a luz que guia a sua alma. Surpresos e desesperados perceberam que na casa, por um imperdoável descuido, não tinha vela.
Um dos filhos diante da situação e do drama, acudiu com um expediente inusitado:
Gente, sem a luz não pode ser. Traz depressa um bocado de areia e umas brasas também.
Foi atendido com presteza. Tomou a mão do moribundo, virou a palma para cima, forrou-a com areia e, sobre ela colocou a brasas passando a soprá-las até que subisse uma frágil chama. Era a luz que faltava.
Nisso, o moribundo, levemente, despertou-se e diante daquela cena inusitada, com os olhos voltados para a luz sobre a palma de sua mão, balbuciou com brandura:
- Vivendo e aprendendo!
Mansamente, depois, fechou os olhos e começou a travessia, certamente iluminada.


DIVERTIR O DEFUNTO

No Nordeste do País, quando se trata de velório, o costume é “beber o defunto”, o que se faz com muita pinga e até dança, do lado de fora da casa. A reza se restringe ao local onde fica o defunto.
Em São Francisco, usualmente, com todo respeito, como lá, o costume é outro – é o de divertir o defunto.
Enquanto do lado de dentro é cantada a “inselência”, do lado de fora os homens (às vezes mulheres também) formam rodinhas para lembrar fatos da vida do defunto - sempre as lembranças mais felizes e engraçadas. Às vezes cresce o burburinho - o que motiva o aparecimento de alguém de dentro da casa pedindo para amainar o rumor... vem e fica para dar, também, seu testemunho. E assim suporta-se a vigília de uma longa noite.
Conta-se que num desses velórios, quando se ria mais à vontade diante de uma picante anedota, que o defunto mal morrido, de dentro do caixão, levantou a cabeça, bradou: “Dessa eu tomém gostei”.
Acabou, na hora, o velório...


HISTÓRIA FANTÁSTICA

É fantástico o mundo do barranqueiro - dentro do rio, nas barrancas ou no meio do cerrado, por todo lado o homem é cercado de entidades, mitos, lendas e histórias que vão acontecendo no dia-a-dia e passam a compor um mundo fantástico que o acompanha vida afora; histórias que são lembradas sempre como marca de um tempo em que tudo era guardado com tanta simplicidade e até mesmo com pureza.
Esta história foi passada em São Francisco, onde ainda hoje os encarregados do cemitério (os antigos coveiros), ali têm sua moradia, “um lugar de muito sossego e de terra boa”, como dizem. Pois bem, Tonico da Piteira era um deles. Vida solitária, pois não tinha mulher, nem filhos. Era escoteiro. Num certo dia ele tomou conhecimento de um pagode na rua da Mangueira e para lá desceu todo guapo e até cheiroso. Tomou todos cinzanos, que pôde comprar, e cachaça oferecida. Ficou alegre, dançou ao som do pé-de-bode e, lá no caminhar das horas mortas se engraçou com uma jeitosa mulher e ela com ele também. Ficaram de muita querência e ele se animou mais e a convidou para ir até à sua casa, descompromissado que era. Ela aceitou e lá foram os dois subindo a rua de saída da cidade. De repente, se aproximaram da praça do cemitério, para onde Tonico pegou rumo. A mulher estranhou aquilo e quis saber se não iam para casa dele. Tonico, sem perceber os cismejos da mulher respondeu no ato que morava ali, sem maiores explicações. A pobre mulher arregalou os olhos e saiu numa louca disparada rua abaixo e Tonico atrás gritando, querendo explicar. Desesperada a mulher se esborrachou na poeira e lá ficou sem sentidos. Tonico, com toda presteza, buscou um carrinho de mão e a levou de volta até ao portão do cemitério, onde a reanimou e ela, de novo assustada, com os olhos arregalados tomou jeito de aprontar o berreiro, no que foi prontamente atalhada pelo pobre Tonico que sedento de quereres carnais, cuidou de explicar, com toda delicadeza: Aí, ó! Ieu num é defunto não!”
Não adiantou nada. A assustada mulher destampou o berreiro e, num pulo formidável, pôs-se de pé e correu, correu de ninguém mais saber onde se meteu.
Naquela noite Tonico dormiu, de novo, na companhia dos mortos.


A VIGIA DA ONÇA

Lá pelas bandas do Acari, meio a densas matas, era factível de encontrar muita onça. Foi o que aconteceu, numa feita, com Panta e Bastião, pequenos fazendeiros da região. Andavam eles por umas trilhas em missão de encontrar gado perdido, acompanhados dos cachorros de Bastião, muito bons de caça. Pachorrentamente se arrastavam, quebrando galhos secos com o caminhar sem cuidado, quando, de repente, os cachorros partiram em inesperada carreira, seguida de latidos, intercalados de cains. Intentaram que tinham acuando algum animal, pelo jeito que arremetiam e recuavam, com os pêlos eriçados. Bastião deduziu: “é coisa grande”. Não deu outra: ao chegarem a um aberto, viram os cachorros rodeando um fornido jatobá, e lá nas grimpas viram uma enorme pintada. Reteram a caminhada. Bastião, caçador afamado, ato instintivo levou a mão às costas para pegar a espingarda, o que foi em vão, pois não a carregava. Voltando-se para o Panta recomendou: “fica aqui de vigia que vou lá em casa buscá a espingarda. Vô num pé e vorto noutro”. Dito isso, disparou na carreira mata adentro.
Panta montou vigia, olho pregado na bichana que rosnava irritada. Nisso, os cachorros, sentindo a falta do Bastião, sumiram na trilha, no cheiro do dono. Panta fez menção de acompanhá-los, mas antes que desse um só passo a onça fez gesto de despencar do jatobá. Não pensou duas vezes, pulou de quatro no chão e começou latir e latir. A onça retesou o corpo e ficou na espreita: se parava de latir, a onça ameaçava pular e, assim, ele tinha que ficar rolando e latindo sem parar. Chegou o Bastião e vendo aquela cena disparou: “que isso, cumpade, virou cachorro? Até qui parece”. Panta, ainda latindo, viu quando onça tombou lá do alto, com um tiro certeiro desferido pelo Bastião.
O pobre Panta depois daquele dia teve que agüentar a glosa dos amigos como afamado caçador de onça a modo dos cachorros.


A ONÇA QUE FALOU

Fim de caçada. Os dois cachorros de Cipriano acuaram a onça em uma furna encravada numa rampa quase em pé, no fim da mata, local tão fechado de não se saber ali, direito, se é dia ou noite – é sem diferença nenhuma para quem está enfurnado daquele negrume de meter medo. Os dois cachorros, quase pendurados numa pedra, ainda um pouco afastados da boca da gruta, latiam sem parar. Devia de ser uma onça das grandes, imaginou Cipriano, que assuntava o rastro formidável que ela havia deixado na terra fofa da boca da mata. Que bicha! Era preciso ver a bichana para poder contar para seus companheiros. Eles eram oito e estavam armados, só que ficaram mais atrás e Cipriano não queria perder tempo e deixar escapulir aquela oportunidade. Caminhou firme e logo alcançou a rampa que venceu com dificuldade. Lugar custoso, nem podia se virar às pressas, pois seria queda certa. Não demorou muito e ele já estava junto dos dois cachorros, quase à entrada da lapa. Coragem doida a dele que estava desarmado sem segurança, sequer da zagaia. De fora não viu nada no fundo da lapa onde se escondia a bicha – só podia ser ali o sítio dela, pois os cachorros não davam nem mais um passo e latiam sem parar. Caminhou um pouco mais, se agarrando numa e outra pedra pontuda. Quase a entrar na gruta, ele teve uma lembrança que o amargurou um pouco "- Ah! Minha garrucha aqui pra ver se essa onça tá aí dentro memo. Metia um tiro e ia ver o resultado". De repente seus olhos se iluminaram, apalpou com decisão um pedaço de cana que vinha chupando pelo caminho e, fazendo dele as vezes de uma espingarda, entrou firme na gruta, todo alerta, com a cana apontada para frente. Disfarce besta, pois quase nada caminhou e levou um tapa violento na cara, indo parar tonto, rolando pelo chão do interior da loca. Sentiu logo o peso da bicha sobre seu frágil corpo e um bafo quente no pescoço onde a onça lhe cravava as presas afiadas; ao mesmo tempo, como se recebesse muitas punhaladas duma só vez, sentiu o abraço forte do felino, rasgando-lhe as carnes. A pintada urrava de entremeios às mordidas, e as pedras da gruta, as menores, chegavam rolar do alto, tamanha era a ressonância do miado. Cipriano nem gemeu. A danada brincou com o pobre coitado como faz o gato com o rato, quando está sem apetite - morde, lambe, com pouco caso, dá tapinhas, tonteia, deixa-o de lado uns instantes, e depois volta à brincadeira. Assim fez a onça e o pobre do Cipriano ficou todo lambido. Por fim ela o deixou e saiu da gruta, estava farta demais e desdenhava o cheiro daquele "hominho". Num salto, se embrenhou na mata.
Cipriano, mole como um boi moído por sucuri, se arrastou até à boca da furna, onde mais tarde foi recolhido por seus companheiros que para ali foram atraídos pelos latidos dos dois cachorros. Nove buracos no pescoço, seis na cabeça, um na pá, um no lombo. O atestado está em Cipriano até hoje, o que mostra, meio triunfante, a quem duvidar.
A bichana estava farta, pois naquele dia comera uma novilha, o que provocara a sua caçada.
Conta-se que no outro dia a onça voltou. Urrou estrondosamente, quando não viu o corpo de Cipriano – o repasto guardado para o outro dia. Ficou furiosa e falou, e houve quem ouvisse: - "fugiu, danado, mas você volta prá mim te comê".
A caçada virou ganhou uma "Décima" cantada no sertão são-franciscano.


TIBÚRCIO

Tibúrcio era diferente da maioria das pessoas que viviam nessas barrancas. Andava com dificuldades, arrastando os pés, infestados de cravos que eram. Tinha um dom (ou esperteza) peculiar: adivinhava as horas. Nas suas caminhadas pela cidade ele não tinha sossego, todo mundo queria saber das horas, testando-o ou atazanando a sua paciência, atrasando-o no seu penoso trabalho de “cobrador de juros”. Nas horas era infalível, geralmente acertava todas. Ele tinha uma artimanha própria: bom observador e calculista, quando errava, confirmava a hora com algum passante, sem se fazer notar, e daí em diante, por bom tempo, acertava todas fazendo seus cálculos infalíveis. Com isso ganhou fama.
Era especial o modo do Tibúrcio pedir dinheiro. Não queria esmola, cobrava juros do dinheiro emprestado: “cumpade, vim panhá os juros do dinheiro que te emprestei”. Assim, levava sempre uns trocados e não agradecia, observando apenas: “ocê só me deve o principá. Os juros tão pagos” Ele sempre dizia ter uma fortuna rendendo juros nas mãos de um comerciante da cidade, Sady Maynart..
De uma feita, ele chegou ao comércio do Sady para "panhá" os juros. Ali se encontrava o Dr. Luciano, homem riquíssimo, dono de vastas terras nos municípios de São Francisco e São Romão. Com sua chegada, alguns presentes conhecedores das suas manhas aproveitaram do momento para glosá-lo: "Que vida dura é essa homem, perambular nesse solão bravo com tanto dinheiro emprestado! Cadê seu dinheiro?" Todos esperavam que ele iria prosar com Sady. Qual não foi a surpresa e o inusitado, quando veio a sua resposta, de pronto e sem tomar conhecimento dos presentes: “tá emprestado prum tá de Dotô Luciano, uma praga ruim que num paga ninguém, nem os juros!”!
Antes que o "doutor", dissesse qualquer coisa, alguém percebendo a mancada, emendou depressa: - “Tibúrcio, quantas horas?”. “Três horas”, ele respondeu, em cima, e foi embora arrastando os pés.


CASA-BURACO

Clementino é um tipo muito especial das nossas barrancas – inventivo, espirituoso, cheio de histórias para contar. Ele traz em seu currículo três grandes histórias para contar - suas grandes obras: a Casa-Buraco, o Avião de Embaré e a Bicicleta.
Começa assim... Quelé – como era chamado -, então um guapo caboclo, resolveu “butar uma roça”, mas como não tinha terra ficou a matutar como resolver o caso. Foi quando ficou sabendo de umas terras abandonadas nas bandas do Arrozal. Mata fechada. O dono dela tinha fugido para Januária por causa de brigas de política e que até mesmo tinham queimado o comércio dele com querosene e gasolina. Carolino do Amor Divino era nome do foragido, renomado político são-franciscano na década de 20. Fez a sua posse num naco de terra para seis medidas de milho, no começo, depois aumentaria para dez - era o que dava conta de cuidar. Começou a derrubar pau, mas não tinha sossego na hora de descansar e de dormir - era uma nuvem de mosquito que faltava entrar pela boca. Astuciou então um modo de se livrar deles. Não podia fazer uma casa - por falta de tempo e recurso. Riscou o chão e abriu um buraco bem grande, do tamanho de um quarto. Cobriu com toras de aroeira, calafetando a tampa a modo de parede, com barro batido, deixando uma portinhola de capim, por onde entrava e depois puxava fechando a passagem. Ali fez morada, “um lugar muito fresco”, enquanto labutava no eito, preparando a terra para plantio do milho, feijão-catador, mandioca e jerimum. Numa “marca de São João” viu que o ano seria de muita chuva. Ficou preocupado com medo de a enxurrada tomar a sua morada. Precisava de telhas para rebuçar o buraco. Aí ficou sabendo do caso de um morador da região, fabricante de telhas que queria casar duas filhas, dando, como dote, uma ruma de telhas para quem assumisse a responsabilidade. Uma moça aceitou o pretendente, mas a outra deu para trás, desobedeceu ao pai e não aceitou o homem que apareceu, pois ele era muito feio. O pai ficou desgostoso e desistiu do intento. Tempos depois o Quelé foi à casa dele e contou sua triste história. O fazendeiro compadeceu-se de seu sofrimento e ele saiu de lá com as telhas com que rebuçou o buraco-moradia. Morou muito tempo, sozinho. Foi quando sua madrinha, uma velha muito esperta, deu jeito na coisa - “roubou uma moça para ele”. Na redondeza tinha uma menininha muito faceira, cinturinha fina e gostadeira de dançar, mas o pai dela era uma fera, não aceitava aquelas alegrias, ficava bravo, batia muito nela e ameaça: “se num parasse cum aquelas danças ele ia acabar matando ela”. A madrinha achou aquilo muito feio e roubou a menina para salvá-la de morrer. Perguntou se ela queria casar com um homenzinho muito bom e ela disse para a madrinha que se não casasse morria, que então queria. E ela foi morar com Quelé no buraco coberto de telha. Durou pouco tempo, só três anos. A menina morreu. Quelé deixou a roça foi exercer sua profissão de carapina, na cidade - fazedor de portas lisas. Veio o segundo casamento e, dele, oito filhos.


A CONFUSÃO

Os romeiros, tempos atrás, em barracas de lonas montadas na extensão das carroçarias de caminhões ou mesas de carro de boi, ranchos de palhas de buriti ou em dormitórios coletivos - ranchões de palha de buriti, um só espaço, enorme, onde deitavam-se todos embolados, homens e mulheres. Era comum, depois de horas passadas tomando goles com os companheiros que, ao chegar ao dormitório, os homens errassem suas mulheres, às vezes por estarem bêbados ou, então, por sem-vergonhice mesmo. Casos são contados de homens correndo com as calças na mão, tendo um marido injuriado ao seu encalce, vibrando o facão no ar.
Um caso, porém, ganhou notoriedade, virou história. Dele conheci através do Dr. Euclides Vieira, colecionador de causos rurais e amante da literatura barranqueira.Um casal se alojou no domirtório geral, na sua ida à Serra. O marido, de nome Joaquim, como era o costume, deixou a mulher no ranchão e foi tomar uns goles. Lá para as tantas recolheu-se ao dormitório e, quando já quase alcançava o sono, ouviu a sua mulher sussurando: “Joaquim, ô Joaquim, uncê tá precisano de mim?” Sonolento, sem abrir o olhos ele respondeu, quase balbuciado: “Ior não!”. Ela, espantada, deu o alarma:: “Intão, tão!”.
O fuzuê explodiu, então!!


CACHORRO RANZINZA

Norte era o nome dele, o cachorro ranzinza criado na fazenda de Adélio Cardoso que me contou a sua história. Lembrei-me dela, quando vi a situação do velho Panta - isolado, esquecido e amargurado num enclave de cerrado, no que já foi um paraíso. Ali, para viver, só mesmo o Norte com seu humor especial. É isto, foi a primeira história que ouvi a respeito: um cachorro temperamental.
Norte, de comum, é um cachorro alegre, cônscio de suas obrigações caninas, isto é, latir, quando é preciso latir; correr uma rês, quando mandado; ir para uma caçada, farejar rastro dos bichos, quando era tempo de caça; vigiar a casa à noite, quando todos iam dormir; brincar com as crianças e adular o dono, ganindo e abanando o rabo, quando era para se fazer alegre; roer, de bom grado, um osso fornido e lamber um resto de prato, quando não há fartura de carne. Vida normal, quando ele está normal.
O problema é que o Norte, sem nenhuma explicação, acostuma acordar de mau humor. O pessoal da fazenda já sabe do seu comportamento incomum e respeita sua condição, ninguém o beira. É até bom, pois ele fica completamente intolerável, grosseiro e esquisito. Vai para um canto e ali põe vigia, com a cara fechada, amarrada, sem latir, abanar o rabo ou orelha e até mesmo piscar. Vê-se, logo, pela cara que está na veia ruim, carrancudo. Se passar por ele uma galinha, ele morde; se passar outro cachorro, ele morde; se uma mosca distraída ou enxerida, arrisca rodear-lhe a fuça, ele engole numa só bocada. Se o dono da casa chega perto, ele mostra os dentes e rosna feio, mas se for outra pessoa, ele morde...
De uma feita, um mudinho que morava ali perto e que conhecia o Norte na veia boa, tão boa que até brincavam muito – o Norte chegava a lamber-lhe a cara e ele, de troca o afagava com carinho –, tendo que sair de casa para uma viagem curta, até à cidade, para não deixar seu rancho desprotegido, pois sempre aparece uns engraçadinhos para mexer nos teréns do alheio, pediu que lhe o emprestasse por um dia. Não teve problema. Lá foram os dois brincando pela estrada afora. No rancho, do lado de fora, o mudinho pôs comida farta para o Norte e meteu o pé na estrada, foi para a cidade. Atrasou na viagem e só voltou no outro dia, de manhã. Ao aproximar-se do rancho viu o Norte deitado junto à sua porta, na vigia. Pensou: "que cachorro bom. Vigiou a casa". Bateu palmas para ele e nada de resposta, o Norte continuou quieto. Distraído o mudinho não percebeu a carranca do Norte: fechada e feia. Chegou brincando, mais perto, e quando levou a mão para acariciá-lo percebeu a carranca fechada e horrorosa - era tarde, lá se foi um rasgo na mão. Desesperado ele saiu na carreira para casa do vizinho e o Norte atrás que nem uma fera, brigado com a vida. Lá foi socorrido. Gesticulando deu a entender que nunca mais queria ver o Norte, que ele era muito mau. Lá no seu canto, de cara fechada, ele, o Norte, nem se incomodava. Foi a última vez que se encontraram. O mudinho nunca mais foi àquela fazenda e o Norte continuou dando seus burros.


MITOLOGIA

Barranqueiros, sertanejos ou vazanteiros – muitos deles – guardam ainda muitas superstições dão grande valor às raízes das plantas do cerrado, vivendo o universo de ancestrais indígenas e africanos que respeitavam e criavam entidades que guiavam, muitas vezes, suas ações. Mergulham, também, nas águas profundas das crendices e abusões. Para tudo o que lhes acontece ou com seus vizinhos existe uma explicação da qual não abrem mão nem procuram explicar. Do tempo que convivi com eles, diretamente no campo, senti como isso lhes era importante, um ritual diário que fazia parte da sua vida como a crença inabalável em Deus e todos os santos.
Tudo virava história de assombração, revelação, anunciação, explicação, poder, sobrenatural ou de ligação com o mundo desconhecido, divino ou não, o mundo que não ousavam penetrar.
No Urucuia vi gente morrendo de medo do “mastro com cincerro” que assustava os moradores da fazenda Conceição, nas noites escuras – badalava pelo campo, indo de rancho em rancho. Dizia-se tratar de almas penadas dos jagunços da velha Joaquina, matriarca que foi um terror naquela região em tempos idos.
Ouvi história de navio encantado, na Lagoa Bonita, navegando e apitando, cheio de luz, em noites escuras.
Ouvi a história de uma luz que aparece, ainda hoje, beirando o rio São Francisco, pela margem esquerda, da Barreira dos Índios ao rio Pardo, riscando o céu, num vai-vem constante e não se sabe de que se trata. Uns dizem ser “corrida do ouro”.
Ouvi pescadores contando da existência de um velho surubim de cabelo guardião do palácio encantado no fundo da igreja matriz da cidade onde mora Iara, uma espécie de sereia encantadora dos bravos guerreiros chacriabás.
Ouvi história dos encantamentos do Rio Pardo com suas águas misteriosas, borbulhantes que tragam gente ruim sob a ponte natural, o Sumidouro.
Das mais incríveis, sobressai a que veio ter uma décima, “A Décima do Rio Abaixo”, uma história maldita, raramente contada e muito menos cantada. É o mito dos grandes violeiros. Todo folião dá notícia da sua existência, mas é raro, raríssimo aquele que se dispõe gosta a falar sobre ela e muito menos cantar a décima, usando da já famosa afinação da viola conhecida como Rio Abaixo, de beleza impressionante.
Com muito sacrifício, depois de uma pesquisa de mais de dez anos, consegui alguma coisa, inclusive a gravação da Décima, com viola, caixa e voz. Ficou incompleta a letra, pois é difícil distinguir o que canta o folião. Não pude completá-la, pois trinta dias após cantá-la para a gravação, morreu o cantor e isso foi o bastante para que os supersticiosos foliões ligassem o fato à história e ninguém mais aceita o convite para cantá-la.
A décima conta a história de um violeiro misterioso que enfeitiçou uma viúva com sua música maravilhosa – dizem que o som saía de uma viola feita do caco de uma cabaça, vindo do meio do rio, onde ele descia no canoa de toa. Atendendo ao chamado da viúva ele ancorou a canoa no barranco dando a ordem – “vai se achegando, Gaspar”. Desembarcado, foi para casa da viúva que caminhava toda serelepe na frente sob os protestos de seu filho. De idas e vindas, uma música e outra, o violeiro já estava no ponto de possuir a viúva, quando acabou sendo desmascarado pelo menino – “Mãe, oiá o pé dele. É redondo!”. Furioso o violeiro deixou o rancho, pulou na canoa e gritou – “Símbora, Gaspar” dando vaza ao primeiro verso: “Descendo o rio abaixo, ê, numa canoa furada...”
Diz a crença que quem toca a décima consegue o que deseja, muito dinheiro e, especialmente muita mulher, mas a alma fica comprometida, vai para o “coisa ruim”. Uma história muito interessante sobre esse mito foi contado pelo folião Lúcio do Quebra e está registrado no livro “O HOMEM E SUAS TEMPESTADES” de minha autoria.
São tantas as histórias e todas riquíssimas quanto o imaginário e as ligações com os fatos reais. O professor Saul Martins, no livro BARRANQUEIRO (esgotado). faz o registro das mais expressivas histórias que compõem a mitologia barranqueira. Lá pincei duas que são comuns em São Francisco onde, delas, corriam notícias fartas e quentes há pouco tempo: Romãozinho e Famaliá.
O Romãozinho: “Deixa estar, Romãozinho, que você não terá o Céu nem o Inferno. Tenho fé em Deus, meu filho, que você há de ficar zanzando pelo mundo, a aborrecer as pessoas na terra”.
É assim que conta o professor Saul como teve início a maldição de Romãozinho, há quatrocentos e tantos anos passados. O menino Romão, mentiroso e travesso provocou uma grande desdita familiar, levando o pai chicotear sua mãe o mais que pôde.
Em São Francisco, Romãozinho aprontava das suas no Sítio Novo, fazenda muito bonita, à beira da imensa vereda do mesmo nome, no caminho de Serra das Araras. Até há pouco tempo tinham-se notícias das estripulias do Romãozinho naquela fazenda, tendo tudo começado quando era ela de um tal Adão Cigano. Faz tal qual como conta o professor Saul Martins:
“Romãozinho, costuma chegar a um sítio e lá ficar muito tempo, cometendo estripulias. Respeita muito as donas de casa e as ajuda nos serviços domésticos, rachando lenha, carregando água, lavando vasilhas na fonte, ou varrendo a casa e os terreiros. Serve de mensageiro, levando cartas às pessoas distantes e, quando lhe pedem, arranja dinheiro emprestado, retirando-o de cofres e gavetas de algum ricaço alhures, voltando a colocá-lo no dia marcado pelo seu solicitante e benfeitor, no mesmo lugar e da mesma forma, isto é, às escondidas.
E ai! de quem faltar com a palavra!
É invisível, mas sua presença é notada por seus assobios, ou, se trabalha, pelo movimento dos objetos que utiliza.
Quando o aborrecem, comete desatinos, atirando pedras ao telhado, quebrando pratos, enchendo as panelas de estrume de gado, às vezes nelas satisfazendo suas necessidades fisiológicas.
Gosta de freqüentar olarias e modelar grosseiros trabalhos de cerâmica. Se não lhe amassam o barro, zanga-se e danifica os tijolos frescos sulcando-os com os dedos, ou esborrachando-os com os pés.
Sente fome e sede como qualquer vivente e reclama a sua alimentação na hora certa, primeiro que todos. Do lugar de costume, Romãozinho apanha a comida e se dirige a alguma sombra próxima. As pessoas vêm o prato suspenso, na altura das mãos de um rapazinho, movimentar-se rumo ao lugar escolhido. Não gosta, nem admite que se preparem galinhas.
Nunca envelhece e continua pensando e agindo como dantes.
Dizem, até, que adoece e, quando leva uma estrepada, um ferimento qualquer, uma contusão, procura ele o remédio, por vezes chora e soluça.”

Famaliá: O progresso tem chegado muito depressa no campo – são estrada, eletricidade, antena parabólica e tantas modernidades. Por isso muito da mitologia foi ficando na lembrança. É o caso do famaliá, uma entidade poderosíssima que, tempos não muito longe, era a explicação para as riquezas fáceis de certos fazendeiros.
O Professor Saul Martins fez, também, um registro desse mito no citado livro.
É a história de um diabinho preso numa garrafa. Como consegui-lo? Era procurar um ovo de galo (pequeno como da juriti). Na quaresma, na primeira sexta-feira, dirigia-se a uma encruzilhada “até que o vento das horas mortas começa-se a soprar-lhe o rosto. Nesse momento, coloca-se o ovo debaixo do braço esquerdo, toca para a casa e deita-se na cama” e ali fica durante quarenta dias, tomado de febre, quando,“precisamente à meia-noite, sente que o ovo parte, dele saindo, ao invés de pinto, um capetinha de quinze centímetros de altura, o famaliá que é logo metido numa garrafa preta, muito bem arrolhada e guardada em segredo. O diabinho ajuda seu padrasto, dando-lhe dinheiro, mas animando-o nos vícios. No fim da vida, carrega-lhe a alma para as profundezas do inferno”.

Caboclo d´água

Dos mitos mais famosos na região, mesmo alhures, conhecido e respeitado, é caboclo d´água. Está ligado diretamente à atividade do pescador. É um ser fantástico que vive escondido nos esconsos do rio. Os pescadores mais antigos contam os seus encontros com ele.
“Acontece da gente voltá pra casa remano a canoa desanimado por num ter panhado nadinha de pexe. Magina intão pensando na tristeza da muié e dos fio, chegá com a canoa vazia no barranco. Um dia vortei assim. Ia remano, maise a vontade era deixá a canoa bestano e num i vê os minino. Foi intão que vi um levantá de mareta no rio e, adispois um baruio, pareceno um instrondo. Vi antão, saíno debaixo d'água, um baita de um bicho peludo, caratona horrorosa, cum os oios isbugaiado pareceno lanterna e a bocarra, cheia de dentes, toda escancarada, gritano, urrano e gemeno: - Quero fumo. Quero cachaça. Quero fumo, nego! Quase caí da canoa no susto e o bicho ali urrano. Aí antão que alembrei o qui insinava nossos pescadô véio: dá o agrado pro bicho, o caboclo d'água. Tirei uma tora de fumo e a garrafa de pinga do bocapil e ticei tudo no rumo dele. Ele agarrô tudo e sumiu no fundo do rio precurando seus esconso. Ligeiro, cuma ensinaro os véio pescadô, atirei a tarrafa. Home! Veio pesada de tudo quanto é pexe – dos grande e dos piqueno”.
Essa história é bastante enraizada na alma de nossa gente. Pescadores, seus avós, pais e seus filhos a contam com seriedade e não admitem que alguém duvide. Alguns ainda pensam assim. Outros não, pois os tempos mudaram e o rio, hoje, vive cheio de barcos a motor, que espantam o caboclo. Dizem eles que o criatório do caboclo d’água é na Lagoa de Barranco, do complexo das lagoas da Vaqueta, quase na beira do São Francisco.


RIO SÃO FRANCISCO SECA






Abrindo aos exploradores duas entradas únicas, à nascente e à foz, levando os homens do sul ao encontro dos homens do norte, o grande rio erigia-se desde o princípio com a feição de um unificador étnico, longo traço de união entre as duas sociedades que não se conheciam.

Euclides da Cunha

Em mais uma incursão pelo cerrado, em companhia do sertanista Zé Guedes, esbarrei no velho Chico, no porto da travessia, esperando a chegada da balsa que se encontrava na outra margem. Meus olhos buscaram a visão sempre tão bonita, aprazível e repousante: um imenso espelho descendo preguiçosamente rumo às Pedras dos Angicos, a minha formosa São Francisco, logo abaixo, de braços estendidos e peito arfante para receber o doce afago dos beijos das águas seculares. Belo ainda era, mas a prodigalidade se esvaía; coitado, dava de parecer o corpo de brasileiro do sertão esquecido, quase esquálido - as águas espremidas pela areia que se estendia como imenso leito branco barrancas afora e lá no meio, formando as formosas croas (belas, porém indesejáveis). Já não era o mesmo de passado recente: perdidas as belas matas que guarneciam suas barrancas, só mato ralo, capim de capivara e braço-duro. relutando em segurar os barrancos de areia que despencam à chegada das levas de água com as chuvas. Muitos quadros passaram por minha cabeça, recompondo os estragos que a morte mansa do rio vem causando ao povo são-franciscano. Disse bem Euclides da Cunha sobre a importância do rio, mas muito mais ele diria na sua majestosa pena, se passeasse pela alma de nosso homem, assim como fez pelos bravos de Antônio Conselheiro. Saberia que a cruz aqui se plantou, com o primeiro rancho, em função do São Francisco e de lá até hoje, jeito não houve para cortar o cordão umbilical, deixando o homem sempre preso às águas do rio, umedecido em sua água, roçado em suas mornas areias, inebriado em sua maresia para saber o peixe bom de cada dia a modo enriquecer a abóbora da vazante; do rio o homem são-franciscano aumenta sua vida, suas emoções, sua história, seus gozos e encantamentos, o alimento do corpo e da alma.
Esses encontros e permanências vão além, muito mais além, aos cerrados serranos e urucuianos afora, por onde correm as veias da vida do grande rio. É de lá, das formosas veredas, que brotam os alimentos de sua vida É assim: o rio existe porque o alimenta o "Pai das Águas", o cerrado. E lá, também, um outro tanto da civilização são-franciscana vicejou: a que tem modo especial de viver, diferente da aculturada na cidade, mas cheia de sabedoria e de ciências que a fartam de suficiências.
Preocupações enublavam meu pensamento, quando bati os olhos, bem à minha frente, num barranqueiro curtido do sol e chegado na idade, descansando num banquinho de madeira - um pequeno e rústico móvel de perninhas magras e tortas encimadas por um pranchão de jatobá, de mais de metro de comprimento. A esfrega-esfrega constante de calças de brim ou saias de algodão, com o tempo, deram-lhe um polimento especial fazendo-o brilhar como se tivesse recebido várias demãos de cera. Ali se esperam a balsa, o carro, o tempo, a vida... a travessia – travessia só é boa quando se pode ter o tempo para prosear, pôr os causos em dia, e alimentar as histórias e anedotário que compõem o folclore da vida do barranqueiro que, quando não está de cócoras, aprecia o banco - cadeira não faz graça, pois sugere distinção. Na travessia David Botelho desliga o carro, esquece a viagem e pára, só para ouvir e falar; falar e ouvir.
Puxei conversa com o barranqueiro. Como era esperado, de resposta, o monossílabo. O sertanejo de cá, de modo geral, como bom mineiro, é muito reservado, fala pouco com estranhos, somente o extremamente necessário, embora seja muito simpático e atencioso, não se negando a falar, mas fala pouco, o bastante para não se mostrar mudo ou mal educado. É preciso, primeiro, saber conquistar a confiança dele, seu respeito e consideração. Saudei-o com a simplicidade comum ao meio e ele, da mesma forma, respondeu.
– Bom dia!, disse.
- Dia! Ele respondeu.
Busquei falar sobre o rio – disso todo barranqueiro gosta – acentuando como ele estava muito minguado de água e cheio de "coroas". Ele concordou dizendo curto e sentencioso "já teve mais água".
Quis saber dele, no seu entendimento, porque os córregos e as veredas todas estavam secando. Buscando no fundo da sua experiência de vivedor daqueles mundões e de acompanhar, por ali, a vida por toda a sua existência, de menino até à madura idade, respondeu-me, quase sentenciando, sem nenhuma emoção na voz:
- Pode sê qui seja os poço astesiano qui tão furano pra todo lado... Or não!"
A sua colocação, e modo de dizê-la, era típica do nosso sertanejo - a sabedoria de dizer, não dizendo, deixando a conclusão para o outro.
Aprofundei a conversa para saber porque ele entendia daquela maneira, ao que, com mesma simplicidade completou:
- Nos tempo de mais água, ao chegar a seca, nos barrancos dos corgo a gente via a salimorra escorrendo. Hoje, quando vem a seca, o barranco também seca e num desce salimorra, o corgo fica mais seco e o rio tomém, tudo vira areia só”.
A areia. A areia! Ela é prova física da insensatez, da ganância e irresponsabilidade do homem e dos governantes. Sabe disso o sertanejo, mas sua voz não faz coro e não tem poder de cobrança – é pobre gente isolada, embora seja o único a depender exclusivamente do cerrado, das veredas e do sertão para simplesmente fazer o que lhe destinou Deus: VIVER. Muitos estão deixando seus cercados, seus pequenos paraísos para sofrerem as peias sociais da cidade – sem terra, sem teto, sem emprego, sem saúde e, depois, a degradação moral: ser forçado a pedir esmola, perdendo um bem que sempre lhe foi precioso - a dignidade.
Por isso lamentam às lágrimas na face seca:
- O home vem com sua motoserra e machado, corta tudo que tem
no cerrado, faz carvão e planta ocalipto. Os carro de boi arrastano os pau e os caminhão levano o carvão faz buracos na estrada, deixa a areia fofinha; invém a chuva e carrega ela pras cabeceira das vereda. Intope tudo. A vereda morre, o corgo morre, o rio morre. Fica nada pra nós: some o campeiro, o tatu, a ema, a seriema, os passarim, e só fica a formiga, os bicho ruim e as imundiça.
De repente, o sertão fica sem a sua alma. É deixado pelo violeiro, pelo folião, pelo poteiro, pelo trançador de fibras, pela parteira, pela quitandeira; as fabriquetas de farinha de mandioca com toda aquela vida e história, um dos fatores sociais da maior importância na vida do homem do campo, viram taperas; os pequenos currais e ranchos antes cheio de vida ganham modo de casa assombrada. Sem berro de boi nos gerais, nem mesmo o latido de cachorro magro...
Zé Guedes, homem acostumado àquela vida, trilheiro de cerrados e tabuleiros por anos a fio em buscas de raízes, cascas, flores e frutas para suas garrafadas, sacudiu a cabeça e confirmou tudo com um ar de profunda tristeza:
- Cada ano caminho mais pra achar raiz e só vejo rastro de destruição. O eucalipto e o carvão mataram o cerrado. Por isso os homens e suas famílias tão vindo tudo para a cidade. Vêm sofrer necessidade. No sertão não se vive mais, pois falta até água e nem raiz pra curar suas doenças eles tem a facilidade de encontrar. A cultura do sertão é de deserto, está acabando a vida.
A morte que vem abocanhando o sertão é vista no rastro tétrico da precata do sertanejo que ganhou trilhas rumo à cidade. É triste saber que ele deixou um mundo tão rico e bastante para si para ter que se diluir no meio urbano, que lhe é hostil. Deixou o buriti que lhe dava: a cama, a mesa, a cadeira, a rede, o laço, a capa, o chapéu, o fruto (doce, licor e raspa); deixou o pequi, rica fonte de alimento ; deixou a cagaita, frutinha apetitosa e sagrada para os problemas renais; o tingui para fazer o sabão; os frutos saborosos que adjutoram na alimentação: murici, mangaba, cabeça-de-nego, coco-indaiá, sapotá; e a inesgotável fonte de raízes, cascas, folhas e flores para preparação das tantas garrafadas que curam de tudo que é doença; deixou a caça que lhe servia à vida e que ele desfrutava como o índio, não matando além do necessário para sua sustentação.
A sua alma ficou nas noites todas dos anos quando se juntava com os companheiros formando os ternos de foliões para cumprir missão pelos campos. As folias - São Sebastião, em janeiro; São José, em março; São João e São Pedro, em junho; Bom Jesus da Lapa, em agosto; Nossa Senhora Aparecida, em outubro; Reis Magos e Santa Luzia em Dezembro.
Foram acabando as fabriquetas de instrumentos musicais: violas, violões, cavaquinhos, rabecas e caixas. Foi cessando o canto que era acompanhado de danças típicas, nas folias ou nas festas com a música que era a alma exposta do sertão, contando, em cada verso as suas coisas, a integração da vida entre o homem, os bichos e a natureza. Ganhavam histórias o canarinho, a ema, a seriema, a inhuma, o macaco, o tamanduá, o tatu, o guacho, a onça, todos mesclados com o nome dos córregos, veredas, fazendas e das gentes da região. Escrevia-se e contava-se a história de um povo
Com a lenta e gradual degradação do cerrado a sua rica cultura sofre a ameaça de extinção e, por extensão, passa-se a borracha na natureza, nas veias do sertão, não correndo mais a límpida e preciosa água brotada das pontas das raízes dos buritis, das geladas locas. De lá, o que mais se anuncia, agora, é a areia branca, o colesterol do rio São Francisco. O rio recebe menos água e fica minguado, não invade canais ou salta as barrancas para cobrir as dezenas de lagoas e, por isso, interrompe-se o milenar processo natural de peixamento do rio deixando-o, a cada ano, mais pobre de pescado. E, de repente, os pescadores são obrigados a recolher as velas de seus barcos, guardar suas redes e anzóis para virar homem da terra – sem histórias e aventuras para contar, vendo murchar a sua vida. Onde os bandos de ariris? Faltam-lhes os galhos de pau para "fazer seu ninho lá na beira do caminho". Não se vê mais o alto e sereno vôo dos jaburus. As garças? Só vão restando as vaqueiras, acostumadas ao carrapato no lugar do saboroso e fresco peixe. Mergulhões? Alguns solitários, quase.
Pois veja e assunta bem, seu moço. O São Francisco morre e com ele, uma riquíssima cultura, de exuberante folclore. O glorioso rio São Francisco de pouca história contada, por escrito, pode se transformar em uma lenda para ficar como quase tudo que por aqui acontece: os avós ensinando a vida aos que vêm.
Era uma vez um rio majestoso, que escorria lentamente entre densas e luxuriantes matas, colorido pelo sol, pingado pelas estrelas ou prateado pelas muitas luas; singrado por serelepes barcos à vela de esperançosos pescadores; marulhado pelas pernas de lavadeiras às beliscadas das piabinhas, enquanto cantavam as coisas da vida da cidade em hilários lundus ou faiscantes pasquins.
Era uma vez um rio de palácios encantados que escondiam surubins de cabelo e peraltas caboclos d´água, negociadores de fumo e cachaça em troca de peixes...
Muito mais triste e pior será, se nada for feito para salvar o cerrado e sua gente. É factível de se imaginar, melancolicamente, se isso acontecer – ou deixar de acontecer o socorro -, que alguém, diante da calha do rio, de um topo qualquer, possa dizer com saudade a um jovem:
- Meu filho, esse imenso trilho de areia que suas vistas hoje contemplam, outrora foi um majestoso rio, o mais importante rio do Brasil, o então falado "rio da unidade nacional".


ELEGIA AO RIO SÃO FRANCISCO

Francisco de riquezas tantas, moço das alegrias da vida cansado e desiludido pelo que via e sentia no mundo; Francisco o jovem que se despojou de suas vestes e, de como veio ao mundo, saiu de casa para outra prática de vida: a da pobreza e da caridade para encontrar seu caminho; Francisco irmão das aves, dos animais, das plantas, do sol, da natureza, da singeleza e da pobreza; Francisco virou depois, por reconhecimento das eminências e excelências, mas antes pelos homens, um santo. Santinho dos pobres.
Pois é, meu santinho dos pobres, quis Deus que o homem encontrasse nosso Opará no exato dia que os homens o consagraram: 4 de outubro. Por isso, o mar doce ganhou seu nome: São Francisco.
Pois imagine vosmicê, como uma coisa deu tão certo com a outra e pode ter sido até mesmo um propósito do Pai que tudo sabe: escolheu um santinho pobre, tão pobrezinho, de uma roupa só, de uma sandália só, sem casa, sem terra, sem nada, para ser o nome do maior rio que nasce e morre no Brasil. Imagina, vosmicê, meu santinho que tamanha coincidência. Coincidência... ou não? É factível que o Pai quisesse mostrar (mais uma vez) ou chamar, (mais uma vez) a atenção para os injustiçados, para os pobres, os sofredores, esquecidos, humilhados e abandonados, como um dia fez mandando à Terra o seu próprio Filho para dar lições aos homens. Quem sabe Ele mandou o nosso grande rio para servir sempre de lembranças dessas desigualdades; para mostrar os homens que a humanidade se faz com amor, caridade, distribuição, compartilhando... para socorrer uma imensa pobreza de gente que aqui viria se ajeitar de posse. Assim como deu fé e força aos seus eleitos, abençoou esta essa região com um grande rio para minorar o sofrimento de um povo. Pois seja, meu santinho, pobre como vosmicê ficou nossa gente e como a lição não foi aprendida com Seu Filho Jesus, se repete aos nossos olhos e coração, com o Seu rio. Santinho, ele morre. Morre matado, morre esquecido e, com ele, morre nossa gente, pois o rio São Francisco, o seu rio, santinho, “é alma do barranqueiro” e o homem não vive sem alma – já viu a alma morrer primeiro que o corpo, santinho? É um despropósito.
O rio morre; o cerrado, “Pai das Águas”, foi dizimado; as veredas foram tomadas pela areia arrastada das quadras de plantios de eucalipto e das áreas devastadas pelas carvoeiras. Quase mais não existem veias de água cortando o cerrado, as veias que alimentam o rio. As coitadinhas que sobraram estão se transformando em escoadouro do veneno lavado nos grandes plantios de café, feijão e mandioca. Nosso sertão seca, morre e, com ele, o homem que se vê obrigado a fugir, escorraçado pela miséria em busca da cidade, onde vai sofrer muito mais. É preciso ver, o homem trabalhador, o bravo do sertão, na cidade, muitas vezes com o chapéu na mão, perdendo sua dignidade, com lágrima escorrida na face sem ter como prover sua casa com a comida – de mais minguada e pobre que seja, feijão puro ou farinha com rapadura -; e ver sua família se desmanchando por falta de oportunidade na vida: o filho pequeno arrastado para a marginalidade e a filha para prostituição. Quadro de dor.
Que culpa teve essa gente de ter nascido numa região secularmente pobre e explorada? Numa região que não chove; que o progresso não chegou e vai demorar chegar, porque tem pouca expressão política, econômica e, por azar, uma baixa densidade demográfica; numa região explorada pelos coronéis alimentados pelo próprio Governo –SUDENE e siderúrgicas com sua fome de carvão, provocando o processo de dizimação do cerrado para plantar eucalipto, o alienígena que não abriga passarinho e bichos de quatro-pés.
4 de outubro de 2001, nosso rio foi festejado por seus quinhentos anos de descobrimento. Uma data e tanto. Contudo, por que foi comemorada? O que importa ao Brasil o Rio São Francisco, a sofrida região do Norte de Minas, Bahia e outros estados nordestinos? Nada. Ele não precisa do rio São Francisco que só é olhado como mote político, promocional.
São Francisco é do santinho que quis ser pobre... e paga por isso.


O HOMEM E O RIO

Pois é o que conto, não por inferência do saber de livros ou de conselhos de entendidos, mas por ter morejado no sertão: a vida bucólica é modo do homem ser natureza e da natureza ser homem, um continuado e descontinuado do outro conforme o sopro dos ventos. Não queira precisar indagações biológicas. A certeza tem pousada na simplicidade que brota do ambiente onde o espírito tem mais profundeza que a matéria, a gosto, poderia se dizer, dos fisiocratas de tantos anos idos. É que muito do homem permaneceu, no costume de vida que teve – ele é ontem pelo atavismo de seus modos e viver; ele é hoje, pelo modo de romper a vida, como o correr dos rios, volteando e volteando, sem necessidade das retas; ele é amanhã, no modo amoletado de gostar da natureza e de se deixar por ela ser envolvido naturalmente, demoradamente, dolentemente, malemolentemente, eternamente....
Homem-terra; terra-homem – é preciso a interação para que subsistam ambos.
O tempo correu desleixado... Arre! Um entendimento nasceu nas fontes das sabedorias de livros e teorias: preciso era socorrer o homem da letargia, do esquecimento, do abandono em que se encontrava no campo, à margem das grandes conquistas levantadas por revoluções e evoluções. Sim, imaginaram, com boa vontade – ou não – que ele se encontrava à margem do neo inaugurado. Quebraram-se os elos e, no aplicar de doutrinas avançadas, acabou-se por violentar a vida natural, virginal, podendo-se dizer que o passo empreendido contrariou um mecanismo milenar, mudando o rumo de uma vida sedimentada ao longo de séculos. Daí mudar o rumo da história sem nunca ter pisado, descalço, no chão, arrebentando o dedão do pé num toco, ou tomado banho pelado num córrego cheio de bagres e traíras; sem sentir o orvalho da madrugada escorrendo na pele e a brisa fresca cantando nas cavernas das orelhas; sem apertar as tetas de uma vaca ou dobrar a valentia de um potro, é possível de provocar um desastre humano!
Taí, o sertanejo, o pelejador no campo, é, antes de tudo, uma extensão da terra e dela não se desassocia – ela é a sua vida, a sua mãe. Cortar esse cordão, essa ligadura, é roubar-lhe a essência do viver. Vira zumbi....
De guardar tantas recordações e de gostar do que vi, faço este pálido registro, contrariando o muito que se fala e diz, quando se separa a alma do material – para dar mais valor a este. Vou lembrar, enquanto ainda é tempo de confirmar, umas coisinhas de nada do que vi e vivi no sertão do homem-terra. Depois, sei, uma ruma de coisas mudaram de vez....

O corpo

De como o homem do campo cuida da saúde é ciência empírica que vem dos tempos perdidos nas noites seculares. É comparação grosseira dizer, mas faz sentido por ser natural: a maneira do cachorro cuidar dos incômodos gástricos, passando de carnívoro a herbívoro; também o gato tem seus dias de capim; o boi nas precisões do organismo lambe barro para saber do sal, tudo leva à relação íntima do ser com a natureza, é o instinto que leva à preservação. Com o homem, da necessidade vem a repetição do ato e, com os tempos vira conhecimento. O homem compreendeu a natureza e a sabença foi escorrendo de descendência a descendência.
Surgiram, então, as figuras do curador e do raizeiro, que conhecem cada planta e animal do sertão, relacionando-os com as doenças que vem de padecer o homem. Até os menos entendidos conhecem do trivial no tratamento dos incômodos contumazes: febres, dor de barriga, úlceras, gripe e outros mais comuns. De um pouco para cada um é repartido o entendimento, pois o homem é natureza.
Lá no seu rancho, na entrada de um tabuleiro ou no cerrado, ele dispõe de uma imensa farmácia: raízes, cascas, folhas, flores, frutos, sementes e, na fauna, outro tanto de ingredientes para seus cozidos, xaropes, infusões, ungüentos, emplastos, banhos, pós... Algumas receitas de Zé Guedes, raizeiro de fama, estão registradas neste livro no capítulo Raízes e Raizadas.

O espírito

O padecimento pode ser do espírito. Então há de se valer dos avoengos, do antes, com toda sabedoria, certeza e aceitação, por ser de tão correto e factível de curas profundas.
As benzeduras em primeiro lugar. Não tem quem quebre a fé que se tem num bom rezador ou numa senhora rezadeira ou benzedeira. Eles sabem o mistério de penetrar na alma da pessoa e, lá do fundo, arrancarem os amuos para devolver a vontade de viver de novo, a querência de se abrir para o mundo, quando se está tomado de incômodos ruins, coisas de mal olhado, de infuncas do "coisa-ruim", despeito e até mesmo fraqueza da cabeça.
Pode-se, ainda, prevenir, antes do acometimento dos males, valendo-se das simpatias, pois cada um, na medida de sua crença pode fechar o corpo contra os malefícios que ensombreiam os caminhos do homem por fruto das invejas, cobiças e maldades tantas, e até mesmo contra faca e bala. Para fazer suas simpatias ele usa pé-de-lobo, chocalho de cascável, semente de mucuna, palha de milho, amuletos, pedra da cabeça da curvina, patuás e um tantão de coisas.
O curador é uma figura respeitadíssima ... e temida. A vida do sertanejo gravita em torno do curador. Ele pode curar, mas pode, também, atrapalhar a vida da pessoa, se quiser.
O saber: à vista, o homem do campo pode parecer um simplório. Não se dá nada por ele, aquele tipinho desmiligüido, embutido, cabeça baixa sempre encimada por um chapeuzinho de palha ou couro, roupa de algodão grosso, precata de couro cru e o pito de palha na boca ou atrás da orelha, de pouco papo e jeito abestalhado...
Qual o quê! Fica perto dele umas quadras para se surpreender e logo ver que se está diante de um ser todo especial: contemplativo, espiritual, supersticioso, solidário, sábio no seu universo, como ninguém. O seu conhecimento da natureza é espantoso, formidável, inda mais considerando que sua fonte vem da observação e das experiências acumuladas, passadas por seus ancestrais. Cada detalhe captado é um rumo para as suas decisões; nada fica despercebido e, por isso, numa inter-relação constante ele se faz parte da natureza, um ser integrante, um galho da vida.
Eis alguns casos comprovados:

O doutor em meteorologia: anuncia com muita antecedência se o ano da próxima cultura será bom ou ruim de chuva, tendo como informações as "marcas de São João" e o comportamento de animais: jacarés e tartarugas nas estradas, longe dos cursos d´água ou lagoas - sinal de grande enchente; a
correção de formiga ou cupins, traz o mesmo anúncio. De olho na flora, capta sinais registrados pela experiência: a produção de frutos silvestres – pequi, cabeça-de-nego e outros, quando é abundante, anuncia a carência de chuva – a natureza compensa a perda das roças com frutos naturais. Ele prevê a chegada das chuvas, também, pela velocidade do vento. Como? Só a experiência explica.

O artesão: conhecimento da matemática e física é visto na construção dos engenhos de cana, oficinas de farinha, carro de bois e outros instrumentos. Como explicar seu conhecimento para chegar à perfeição na construção das peças do engenho – as três moendas rodam com perfeição, sem travar os dentes, sob a pressão das canas introduzidas; a balança que move a moenda principal, puxada por bois, é de uma leveza espantosa – o princípio da alavanca aplicado. O mesmo se vê na colocação das serrilhas nos molinetes da fábrica de farinha – a distância entre elas deve ser precisa para que não ocorra o travamento do eixo forçando o deslizamento da correia de tração. Como ele chegou ao entendimento da contagem milimétrica sem qualquer instrumento de medição? O artesão dos instrumentos musicais - fabrica todos para os seus folguedos, especialmente as folias: violão, viola, rabeca, caixas, pandeiros, balainhos, reco-reco... Fazer um instrumento tão delicado como uma rabeca não é ofício facilitado, não é só juntar peças de madeira - existem parâmetros que devem ser observados com relação ao som que ela deve produzir. O mesmo se diz do violão, viola e caixas – há uma relação entre todos, quanto à sonoridade, à afinação, o que se vê, com surpresa e em especial, nas caixas (é afinada com a viola). Como se explica tal conhecimento para quem sequer tem o curso primário?

A arte: a sua alma mergulha na simplicidade e alça, depois, vôos levando as imagens que buscou no coração da terra para nos mostrar suas coisas - é de riqueza de inexcedível singeleza.
A música é agradável, simples e pura. A inspiração está na própria natureza - o canto das aves: sabiá, canarinho, inhaúma; os piados do ariri; os guinchos da gaivota; a graça e leveza da garça e a placitude do jaburu; o comportamento do guacho; a sutileza da raposa; a utilidade do gambá; o abraço do tamanduá e a graça dos peixes, entre tantos animais que fazem parte de sua vida. Tudo serve de inspiração para suas décimas, pasquins e guaianas, em que conta histórias, envolvendo as pessoas do seu relacionamento ou para as danças do quatro, catira, suça, lundu, onde as pessoas, com suas paixões são mescladas aos bichos e à natureza, com graça e simplicidade.

"Canarim preso na gaiola / que tristeza não será"
"Coitadim do ariri / ele vai fazê seu ninho / na gaia do pau mais alto/ lá na beira do caminho / Vai-tum, vai-tum, vai-tum, ariri / vai fazê seu ninho"
"Guacho véio tava dormino / acordô com a cachorrada / Ei! guacho véio / Cê perdeu a madrugada".
"Olelê carneiro dê! / Olalá carneiro dá / Quem quisé carneiro manso / manda o vaqueiro amansá".

Nas folias ele mergulha a sua alma, a sua vida, por extenso, na nostalgia que o prende às vidas passadas e o alça ao amanhã, com que não se preocupa, pois lhe basta o vivido, mas que ele passa com sua história. Nas noites caminhadas pelas trilhas, recebendo chuva ou o orvalho, nas madrugadas, indo de rancho em rancho para saudar presépio e cantar com os "compadres", ele escreve a história de sua gente. É o telúrico que se manifesta nos atávicos folguedos.
No artesanato - da seda ou palha do buriti; da taboca, do barro, do couro, da madeira macia como a imburana vermelha ou o duríssimo pau ferro ou jatobá - em tudo ou para tudo, ele transporta parte da sua alma, em traços leves, meigos e ricos, fazendo nascer objetos que vão compor seu dia a dia. A relação dele com determinadas plantas é de total dependência, do nascer ao morrer, como o buriti.

As lendas e mitos: estão internalizadas no homem como um sentido de vida. Nelas ele encontra explicações para muitos fatos que o envolvem e que servem de freio para muitas de suas intenções. O fazendeiro que virou rico da noite para o dia, é logo denunciado de ter feito "pacto com o famaliá"; o Romãozinho é invocado para por freio no menino traquina. O caboclo d´água entra nas histórias dos pescadores para mostrar os perigos do rio e os cuidados que devem ser tomados, pois, grande parte deles não sabe nadar e de como ter – ou não – fartura de peixes numa pescaria; a décima do Rio Abaixo, o temor arraigado do "coisa-ruim", uma bela melodia, uma história interessante, evitada com o sinal da cruz.
No campo da crendice, deve-se considerar a simplicidade, a alma pura e a bondade do barranqueiro que se sacia com a verdade que conheceu, que lhe foi repassada, sem querer saber além do necessário ou refleti-la, buscando extrair outra compreensão. Basta o que seus avós e seus pais lhes passaram. Aí tudo se torna mais simples e a vida flui com maior naturalidade, sem grandes indagações ou complicações.

O trabalho: o homem do campo tem na terra a sua única fonte de riqueza, sua ordem natural - o permanente convívio com a natureza. Tem-se o preconceito que ele come mal e pobremente. Ledo engano: ele jamais passava fome. Na terra busca o sustento sem grandes avexamentos, preocupações ou neuroses – é o plantar com sabedoria, no tempo certo, aquilo que precisa para seu sustento imediato, na quantidade que pode cuidar, prevendo a sobra para a catira a fim de se suprir daquilo que não produz – querosene e sal. Feijão (geralmente o catador que não tem como perder, fava ou guandu), mandioca (uma variedade de alimentos dela oriundos: farinha, tapioca, croeira, puba, margarina...), milho, arroz; a mamona para comercializar (uns chegam usá-la para extrair o óleo combustível para os candeeiros), algodão (alguns têm um tear rude numa tenda rústica, no quintal, onde tecem seus panos para costurar calças, camisas, saias e cobertas); um cercado de cana, para fazer a rapadura ou a garapa para adoçar o café da meninada; alguns pés de laranja, limão, mamão, caju, pinha e moitas de bananeiras. Alguns pés de fumo para suprir seus pitos; moitas de capim santo e erva cidreira; gamelas ou cochos nos jiraus (para evitar os bicos das galinhas) com salsinha, coentro, hortelã, malvão e poejo. Um poleiro enjambrado para o pouso das galinhas que passam o dia catando bichinhos no quintal, sempre atentas para evitar as garras do gavião ou ataques de raposas e saruês; o cercadinho para a engorda dos leitões... De quando em quando é abatido um capado - é fartura oportuna para descansar do gosto do ovo e da galinha. O toucinho é salgado; os pernis pendurados à fumaça do fogão num processo lento de defumação; os pedaços menores são cozidos na banha e guardados em latas para serem conservados o tempo que for preciso. Quando a colheita de milho e mandioca é boa, aumenta-se a criação de porco e galinha. Se é fraca, diminuem-se os porcos e as galinhas – tudo tem que ser de conforme as posses É comum trocar dias de trabalhos com os vizinhos, os compadres – é o mutirão de tanto apreciamento, pois é oportunidade de conversar suas coisas guardadas, tomar umas branquinhas, cantar no eito, comer diferente e, ainda, de ocasiões, até dançar baile. É tempo para reunir e manter os laços tradicionais, segurar as amizades e fazer compadrios que se confirmam em volta das fogueiras de São João. Não trabalha à exaustão, só o suficiente. Guarda uma grande quantidade de dias santos, mas isso não faz falta à sua subsistência.
Uns lidam no campo, com animais, para um patrão rico: vaquejando ou tirando leite; domando animais, castrando ou viajando com tropas.
Com o seu trabalho ele lembra a lição dos fisiocratas: “somente o agricultor produz além do necessário para os seus próprios gastos. É então o excedente da sua produção que constitui o fundo econômico do qual vivem os demais membros da sociedade”
Talvez já não sejam tanto assim, com o advento da agricultura extensiva, mas o foi por séculos e séculos.

As festas: como se diverte? Fácil, barato e salutar ao corpo e ao espírito. As tradicionais festas do solstício de verão: saudação à lapinha (folia de reis), com todo respeito e amor, de fincar o joelho no chão até doer e dar dormência; as danças de agrado para o dono da casa: quatro e lundu. É um contentamento. São Sebastião, merece agrado com sua folia. De tal modo vêm as do solstício de inverno, a tríade Santo Antônio, São João e São Pedro – deles o predileto é o do carneirinho, por ter cara tão meiga. Agosto não passa sem a folia de Bom Jesus da Lapa que enche os corações dos fiéis ao longo das barrancas do rio até sumir nos gerais, entrando em todo ranchinho perdido no mundéu e, de igual modo, com o mesmo fervor, a de Sua mãe, Nossa Senhora Aparecida. Nas datas móveis tem a do Divino Espírito Santo.
É emocionante acompanhar uma folia; a sua música as pessoas arrasta para um mundo de sons que tomam conta da alma: a rabeca repete as vozes, quase chorando, numa doçura de embalar; as violas traçam acordes e volteios acompanhados por violões que marcam seu passeio por dentro da alma e de fundo, numa suavidade fascinante, as caixas, apenas dizendo, num toque de saudade distante, muito distante, que estão ali, num tum-tum de chamar os santos para receber as oferendas dos corações embevecidos de foliões e acompanhantes. Um concerto que traz as notícias de muitas noites e histórias milenares, porque é brotado da alma dos homens, fluindo por seus dedos até às cordas que nos transmitem, então, a vida.

A família: o regime familiar é o patriarcal. Mulheres e crianças são submissos, não têm voz ativa e pouco se manifestam, dando tudo como muito bem sob a proteção do "senhor meu marido", ou do "senhor meu pai".
Por comum é numerosa e se explica: não há recursos para contratar serviços e tocar os trabalhos da pequena propriedade, o que necessariamente envolvem o homem, a mulher e os filhos. A cada ano aumenta a prole, o que faz lembrar um tipo popular dessa região, Pedro Duro: “aumenta a prole porque num acredita em pirla e faz a vontade de Deus” e assim vai até a mulher se exaurir de vez, quando não falece, antes, de parto, muito comum, pois são sempre feitos por parteiras – mulheres veneradas, também chamadas de "mãe de apanhação".
A educação escolar dos filhos geralmente é relacionada ao trabalho na lavoura que sempre está em primeiro lugar – problema que vem sendo resolvido com a implantação de escolas rurais facilitando o acesso da criança, evitando as grandes e demoradas jornadas ausentes de casa.
Dorme-se com as galinhas e acorda-se com a Estrela D´Alva.
Os mais velhos são respeitados religiosamente e sempre têm a derradeira palavra.

Vícios: nem se pode dizer que seja um vício o costume antigo de "pitá" e tomar uns golos. É de tradição, pois, como se diz no sertão: "de mamano a caducano todo mundo pinta e bebe pinga". Raros são os bêbados contumazes, que aborrecem e criam problemas. Bebe-se nas folias, nas festas e nos fins de semana, quando permite o dinheiro, pois não são muitas, e próximas, as vendas, por isso, para beber fora das ocasiões de festas é preciso comprar um litro ou uma meia, e isso nem todos podem.
O pito é de fumo de rolo, da plantação do quintal ou de um morador da região – é o paiero que ele tem quase sempre na boca ou atrás da orelha, o tempo todo. O paiero e homem parecem companheiros. As paradas na limpa das roças são constantes para pitar e aí se vê como é demorado acender o paiero com a binga (geralmente muito rústica: um recipiente feito de chifre de boi, recheado com mecha de algodão seco que é aceso através de fagulhas provocadas por um pedaço de ferro - "fuzive" - fricionado numa pedra de fogo). A mulher não é de muito pitá; sua preferência – e isso é comum – é mascar fumo. Dizem que é bom para clarear os dentes.
O fumo e a cachaça são muito usados em remédios. O fumo com a cachaça para curar picadas de insetos e até de cobra. A cachaça vai em quase tudo que é raizada, o que acaba sendo uma boa desculpa para sempre tê-la em casa.

O respeito: Deus, em primeiro lugar, depois o padre e, seguindo, os mais velhos. Deus lá no alto, mas aqui na terra ninguém tem mais prestígio e merece mais respeito do que o padre. Dele é o melhor lugar na mesa, a melhor comida, os melhores pedaços da galinha, os doces, a cama e forros especiais. Ele é tão especial que a água em que toma banho não é jogada fora: vai para as garrafas, pois existem muitas simpatias apontando suas excelências de curas. Seguindo a linha vem o pai, a mãe e os irmãos mais velhos. As pessoas de fora também são muito respeitadas - sempre recebidas com reverência e, pelos meninos, com o pedido de bênção.
O homem do campo, em seu território, sabe tudo, domina tudo, fala com propriedade do seu universo – dos bichos, das plantas, dos remédios, do regime de chuva, do tratamento de animais, da caça e de tudo que o cerca. Fora do seu universo ele olha, invariavelmente, para baixo quando fala com as autoridades – prefeito, juiz, delegado, polícia (dos quais tem verdadeiro pavor) ou comerciante rico. Interessante anotar, no caso, que embora abaixe a cabeça, não é comum tirar o chapéu, nem quando adentra numa casa, só o faz na igreja, quando participa das rezas ou nas folias, quando é beijado o Menino Jesus. O chapéu é parte do seu corpo, continuação de sua personalidade. Todos fazem o uso, desde o pequenino ao mais idoso – quem não o usa é tido como doido. As mulheres preferem o pano prendendo os cabelos, descendo as pontas nas costas. De hábito o homem fala pouco, muito pouco mesmo. É monossilábico – "Inhor sim; inhor não". É tão resumido que muitos deles respondem o cumprimento de bom dia e boa noite, simplesmente com um"dia" ou "noite". De comum fala mesmo quando é perguntado e não estica conversa. "Quem conversa muito dá mio prus bode" - dizem. As mulheres falam menos ainda com estranhos ou com as visitas, sequer fazem parte das rodadas, das conversas, ficam sempre à parte, de longe, só comparecendo se chamadas.

Água e Terra: não se encontra um rancho perdido no meio do cerrado. Se uma fumacinha subiu de uma chaminé é possível logo deduzir que, por perto tem água e uma tira de terra boa. O homem não se instala longe da água: córrego, vereda ou onde pode abrir uma cisterna. Ele tem métodos e noções para saber da boa localização de um bom lençol d´água - uso da forquilha de um arbusto (com ela mapeia o chão – a ponta da forquilha pende, quando localizado um veio d´água) e a observação das plantas que só crescem onde há fartura de água no subsolo: pimenta-de-macaco, sambaíba e outras. Não carece de ser muita água, pois pouco ele usa. Vasilha para lavar são poucas; roupa lava-se com raridade, pois geralmente ele usa a mesma muda por tempo indeterminado, no trabalho. Vestir roupa limpa, passadinha, só por ocasião de missa no tempo das desobrigas ou quando das idas à cidade. O banho também não é exigência diária..

O ecológico: ele precisa da terra, de onde tira todo seu alimento, mas a prática do cultivo é arcaica, como lhe veio dos anos passados e das farturas de terras, imensidões de matas e campos virgens. Entende que a queimada é necessária para matar os bichos ruins da terra e que, na cinza, a produção é maior. Faz sentido em um ano, nos outros a terra enfraquecida produz menos. Aí ele repete o processo e vê que, na cinza, dá-se mais e não aparecem "imundiças". Fora das áreas de cultivo, não estraga a terra, não procede a derrubadas, senão por absoluta necessidade: "furar abelha", tirar uns postes para fazer cercas, madeira para casa e por aí afora. Quanto à caça só abate o extremamente necessário: veado, tatu, teiú, inhambu, codorna, verdadeira e outros. A carne, o couro, o chifre, a pata, os testículos, a bolsa (gambá), tudo tem utilidade prática e indispensável à sua sobrevivência.

DOS TEMPOS IDOS

Essa história foi o ontem. Gostaria de estar escrevendo e retratando a vida, assim, nos dias atuais. Lá se foram os tempos. Do meu primeiro contato com os gerais urucuianos até à entrada deste milênio, muita água brotou e secou no cerrado, muita areia foi arrastada para o Velho Chico e muita, mas muita coisa mesmo mudou no sertão. Hoje a vida do sertanejo não é nem mesmo um arremedo da que vi, vivi e aqui contei, só de lembranças e por achar, por experiência, que apesar da aparente pobreza, isolamento e coisas mais, que ele vivia muito melhor. Antes, muito antes, acontecera o mesmo com os índios. “Criaturas ímpias, precisavam de uma religião; ignorantes, precisavam de escola e saber da leitura; selvagem, precisava ser civilizado” – chegou alguém, um “civilizado” e enxergou isso.. Com o tempo muitos povos que nada tinham de selvagem – a não ser aos olhos dos pretensos civilizados – ficaram sem identidade: não conservaram seu estado natural nem foram transformados em "civilizados"; perderam suas raízes, não sabiam mais das suas coisas e jeito de viver e não aprenderam nada do branco. Ficaram no meio ou sem meio e, para completar, sem terra, sem tradição, viciados e doentes, muito doentes.
Quanto à vida no sertão, de como vi e vivi, não tenho autoridade para dizer se era melhor, só do meu gosto, da minha emoção, mas posso garantir que a transformação ocorrida foi para pior, em todos os aspectos, pois nela não se observou a relação do homem com o meio, com a natureza. Levou-o a uma vida diferente em que ele, de repente, passou a ser um acessório, desligado da natureza que lhe provia de bens materiais
e espirituais. Pode-se dizer, sem medo de estar enganado, que ele foi prostituído.
A vida mudou demais, muito mesmo. O sertão está virando cidade. Tem luz elétrica, escolas e igrejas de todos os credos por todo lado – de repente, daquela relação ingênua, pura e simplista que ele tinha com Deus, quase fetichista, ele foi informado que para ganhar o céu era preciso dar dinheiro, dinheiro que ele não tem, mas tem que conseguir, senão... Foram abertas estradas largas para os automóveis; tem televisão por todo canto – enormes bacias das parabólicas; telefone fixo, e celulares na cintura de jovens empolgados; motos e bicicletas rodando por onde antes trotavam garbosos cavalos e fortes burros – até mesmo no ofício de campear reses. A meninada se veste como os jovens urbanos, das capitais (muitos deles se aventuraram por São Paulo e Brasília-DF em busca de dinheiro) onde, quase todos adquiriram hábitos estranhos e, quase sempre, vícios perniciosos. Quando voltam ao sertão, é uma festa, pois chegam coloridos, trajando imensas bermudas, camisões, bonés e tênis grossos; rádios e máquinas fotográficas; brinquinhos na orelha e adereços espetados no nariz; correntes grossas enroladas no pescoço e pesadas pulseiras nos braços; um palavreado ininteligível e quase sempre – com ar urbano e importante – desejando saber o nome de coisas que foram parte de sua vida num passado recente, tendo-as como novidades. Manifestam estranheza quando vêem um grupo de foliões e não se identificam mais com as danças do quatro e lundu, com o batuque das caixas – só sabem como rebolar ao som estridente da onda, que repete à exaustão em seus gravadores – uns imensos para mostrar importância.
Não foi tudo. Veio o êxodo rural. Os espaços foram ocupados
pelas grandes empresas, apertaram os campesinos e muitos se viram obrigados a deixar o campo – por bem ou por mal. Era preciso espaço para o plantio extensivo de pastos, soja e eucalipto. Teve mais: o Estatuto da Terra e a extensão da Lei Trabalhista ao campo, paradoxalmente, ao invés de atender ao homem do campo, criaram-lhe uma situação piorada, pois, de repente ele ficou sem trabalho, sem terra, sem seu rancho. Faltou mais cuidado e conhecimento para implantação das medidas que, infelizmente, vindo de cima sem observar a realidade local, causaram efeitos adversos. Não se observaram os benefícios da relação que havia entre o pequeno agricultor ou agregado com os fazendeiros e, por isso, hoje, não existe mais lugar para eles nas fazendas. O fazendeiro, quando necessário, contrata trabalhadores "boia-fria". Veio mais: a insensatez que foi construir complexos de casas populares para abrigar, na cidade, a população rural, alegando questões sociais, quando a assistência deveria ser levada a ele, no campo. Muitos foram atraídos pela fantasia, pelas luzes, pela ilusão, considerando, é claro, a dificuldade em que viviam, especialmente pela falta de água, em algumas regiões. Programas posteriores mostraram que o rumo era outro, a assistência foi chegando ao campo através de associações comunitárias e a abertura de poços tubulares comunitários (antes era coisa de política, só para o fazendeiro); energia elétrica, instalação de escolas, transporte... Para muitos já era tarde, o mal já havia sido feito.
As mudanças... tudo contribuiu para empurrar o homem para a cidade ao invés de levar o conforto e a assistência ao campo. Tanto fizeram que ele foi viver na cidade, com uma mão na frente e outra atrás. Deixou seu universo, escorraçado pelos fazendeiros que não podiam mais ter agregados ou premidos pelas grandes empresas de reflorestamentos ou carvoejamento, ou enganados por tutaméias de dinheiros por suas propriedades. Deixou seu universo por um mísero espaço de 50 m2 (casa popular) na cidade: sem quintal. Não tem onde criar uma galinha, o porquinho, plantar sua rocinha ou uma moita de cana. Não tem serviço. Não tem nada, senão a caridade da Igreja e de almas generosas. De repente seu mundo desmoronou de vez: ele perdeu a alegria e a dignidade, vai à rua, cabisbaixo, para pedir uma esmola – ele o forte e valente sertanejo. Seus filhos seguem-lhe no caminho da dor e humilhação – "uma esmola pelo amor de Deus". Suas filhas vendem o corpo: meninas, ainda crianças, começam a parir e parir filhos, para aumentar o tamanho da dor e da miséria. Um consolo, para uns, como se fosse uma loteria: o benefício do INSS, quando chega a idade. Ou ter de viver na dependência da cesta-básica, na humilhação de cadastramentos, quase sempre políticos, e enfrentando filas públicas, servido à execração ouvindo, humilhados: "vagabundos, porque não vão trabalhar".
Imagino as noites desse homem. Será como fica seu coração, quando vem uma lua cheia, quando chegam as quadras das folias? Para onde vai seu coração que era acostumado com os gemidos de uma viola ou rabeca; ele que cantava as coisas bonitas da vida e do sertão. O que teria, agora, para cantar e contar?
A vida do homem ainda está na natureza...




FECHANDO O LIVRO

Encerrando este relato, fruto de andanças e observações, de contatos com o sertanejo, o chapadeiro e companheiros de jornadas, trocando de idéia, não poderia deixar de fazer alguns registros.

I
Não combato o eucalipto. Eu sei da sua importância econômica, sobretudo de suas qualidades como madeira empregada como postes, cercas e na indústria moveleira, com excelente aplicação. Suas folhas e flores têm grande importância medicinal e para a produção de mel. Combato a maneira como ele foi introduzido em nosso município, o que deu causa à devastação de um riquíssimo complexo de fauna e flora. Não houve qualquer medida de preservação das veredas e nascentes de córregos, e zona de recarga dos mananciais que alimentam o Rio São Francisco. Vejo no caso – e isto acompanhei, olhando e confirmando – um crime contra a natureza e o homem. Um, porque secam as fontes e entope o Rio São Francisco de areia (antes dele seus afluentes) e, outro: força o homem a deixar o campo para minguar na cidade.

II
Devo registrar, com profunda saudade, a contribuição que me deram, por muito gostar do sertão e das veredas, José Alberto Corrêa – Zé Caçapa, o homem que mais amava o Caldeirão – e Zé Guedes, profundo conhecedor do sertão, raizeiro que por longos anos me supriu de carapiá e raízes tantas que exibia em Belo Horizonte em saborosas garrafadas. Eles se encantaram, mas certamente nos contemplam em nossa luta na defesa do nosso cerrado.

III
O estímulo que sempre recebi dos amigos barranqueiros - mestres Domingos Diniz e Saul Martins. Fizeram eles com que eu adquirisse coragem de passar uma vida para o papel porque ela conta a vida de nossa gente dos campos soltos. Divido com vocês essa alegria.

IV
Mestre Minervino, do qual me transformei num agente, empacotador e despachador de violas e rabecas. Com que orgulho o fiz e com que alegria vi seu nome ganhando fama alhures. Levou nossa São Francisco longe...
Mestre Adão Barbeiro (encantado no dia 28.06.2003, em plena função da Folia de São Pedro, como gostava) com quem dividi horas de gravações e apresentações do nosso folclore, mostrando ao Brasil o quanto é belo nosso rio, nossa música e nossa gente.

V
Luiz Gandra Bittencour Filho, José Alvino, João Botelho Neto (encantado em........), turma do PRESERVAR e Marcelino Pereira que tornaram possível tantas jornadas e comigo trocaram informações valiosas sempre me enriquecendo. Todos têm parte neste projeto.

VI
Meu Rio São Francisco, meu cerrado de lonjuras tantas, minha amada São Francisco, terra que me acolheu e me fez muito mais chão e gente, minha vida será para você, sempre, um só cantar.

VII
Vilma, companheira; Ricardo, Eduardo, Beatriz e Rachel, os filhos; Janice e André, nora e genro; Ricardinho, Gustavo, Gabriel, Larissa, Júlia e Marina, os netos. E todos os meus caros amigos e irmãos que sempre dividiram comigo os meus sonhos, a colheita.


O REGISTRO ATUAL

As águas das veredas foram diminuindo; bancos de areia foram tomando conta do Rio São Francisco e o tempo passou, não muito depois do ano de 2000, quando começamos este pequeno livro. Antes, no ano de 1997, com a realização do I Seminário do Meio Ambiente em São Francisco, um movimento inusitado, acendeu-se uma luzinha. Aí lembrei de um provérbio oriental gravado no meu convite de formatura como professor rural – “por menor que seja uma chama ela é capaz de iluminar a mais completa escuridão”. E começamos uma jornada.
Aquele trabalho inicial, quando eu, Luiz Gandra e José Alvino nos embreamos nas quadras de eucalipto nas proximidades da fazenda Lages de Josedir Pinto, quase despretensiosamente, apenas levados pelo idealismo e a imensa preocupação com o que acontecia com nosso cerrado, veredas e o Rio São Francisco, mostra resultados. Foi muito rápido pela dimensão do problema.
Tiramos, de imediato, uma lição: é preciso acreditar, é preciso dar o primeiro passo. Tudo que se conseguir será muito compensador. Por pouquinho que seja.
O tempo passou e hoje São Francisco tem para mostrar ao Brasil o seu Projeto João Botelho Neto (trabalho voluntariado que congrega trinta entidades do município – públicas e privadas), uma iniciativa pioneira nas barrancas do Rio São Francisco, um trabalho realizado e em andamento para atingir muito mais na revitalização do Rio São Francisco. Pode parecer pouco, mas temos uma resposta pronta – melhor e muito mais importante do que nada. Nada como tem sido tratada a população ribeirinha. Nada como tem sido tratado o Rio São Francisco e, por extensão os campos que lhe dão a vida – o cerrado, o “Pai das Águas”.
São Francisco tem hoje muito para mostrar ao País. Um trabalho voluntário que acabou recebendo o apoio do Ministério Público e das Escolas com o que se transformou, como muito bem cunhou recentemente o procurador geral do Estado, Dr. Jarbas Soares Júnior (um dos inspiradores desta arrancada) numa grande obra imaterial.
Nascentes cercadas, matas ciliares replantadas, solos recuperados e a preciosa água da chuva retida no campo, recarregando os lençóis d´água.
O Pajeú vai correr água o ano inteiro e a vida, em suas abas, vai explodir com pujança. O Guará está chegando, depois o Angical e dezenas de nascentes. Á água volta aos campos secos.
As veredas estão sendo cercadas e cuidadas. As empresas que degradaram o cerrado estão reparando o dano e uma consciência cívica e preservacionista vai se sedimentando no seio da sociedade, em especial no meio estudantil.
Por fim, a nossa turma do PJBN foi mais além e abraçou a causa de instalar o Comitê da Bacia Hidrográfica SF9 – Grande Sertão:Veredas que abrange 22 municípios do Norte de Minas, uma grande conquista para a nação barranqueira, povos do cerrado e da caatinga.
Sentimos, meio a esta jornada, que nossa causa se realiza e que nosso sonho não era fantasia.
Este livro poderá ser editado, quando temos, com orgulho, muito para comemorar e saudar em defesa dos nossos cerrados até às barrancas do Rio São Francisco.
São Francisco, agosto de 2008.



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