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segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

FOLIA-DE-REIS



João Naves de Melo*




"TERNO DE REIS, folguedo pertencente ao ciclo natalino, introduzido pelos portugueses e encontrado em todo o Brasil, com suas variantes regionais" - é o que diz o mestre Câmara Cascudo.

          Em São Francisco os ternos são dezenas e se distribuem por vários pontos do município, despertando muita atenção de pesquisadores, rendendo tese, publicações em jornais, revistas e vídeos.
          Podem ser encontrados grupos com características diferentes, como observou o pesquisador Wagner Chaves, o que se vê comparado os ternos da margem esquerda do rio São Francisco com os ternos da margem direita, considerando o instrumental usado e até mesmo as músicas e danças. Contudo, o que importa mesmo é a riqueza do folguedo, aqui confessional.

Os ternos já estão na estrada.

          Eu pretendia fazer uma homenagem a todos os ternos de folia do nosso município que são muitos, muitos mesmos. Infelizmente, não consegui listar todos eles - ainda. O pesquisador Wagner Chaves que por aqui andou sertões - dias e noites - preparando-se para mestrado e doutorado, conheceu - e listou - cada canto, cada rancho, cada comunidade, de onde partiam foliões em funções. Estudos importantes fizeram, também, Joaci Ornelas centrado em grupos de foliões na comunidade de Taboquinha e Paulo Freire, com o folião Adão Barbeiro. Da mesma sorte temos a ONGG Cultuarte que vem realizando importante trabalho com nossos foliões, levando-os a lugares distantes, numa demonstração viva de nossa cultura.
          Pois é, queria ter todos eles na ponta do lápis (ou do computador), mas a informação não chegou a tempo e os grupos, como os Reis Magos, já saíram em função, na luz da Estrela Guia.
          Desfilo alguns nomes históricos, tradicionais e muitos outros ficaram de fora para correção futura: mestre Imperador Lúcio do Quebra, Adão Barbeiro, João Pomba Triste, Olegário, Locha, Marciano, Vicente Quiabo, Irmãos Correa, Henrique Quente, entre muitos foliões que, no correr de anos tantos, têm a função de, a cada ano, levar seu canto e adoração ao Deus Menino, na Lapinha.
          Com eles - e por tantos e tantos que não estão nesta lista - mergulho no mundo encantado dos foliões, como se empreendesse uma viagem acompanhando a estrela guia até a humilde manjedoura onde resplandece o Menino Jesus.
          E saio, em pensamento voltado no tempo, de menino e adulto, no mesmo espírito, para caminhar com os foliões, na sua trajetória de amor.


          As caixas gemiam surdamente, solenes, fazendo fundo para os acordes melífluos das rabecas que inundavam o ar, acompanhadas de graves violões e lépidos volteios das violas. Ao fundo, quase imperceptíveis, o titilar do reco-reco e tampinhas do pandeiro.



“Deus vos salve, casa santa/ onde Deus fez a morada...”



          Desponta o grupo de foliões, na penumbra da noite. Chapéus displicentemente caídos na testa; toalhas brancas, bordadas com figuras de aves e bichos, descendo do pescoço, em duas tiras, até a cintura e os olhos pesados do sono guardado. Respeitosos, como chegassem à própria manjedoura, em Belém, aos pés do Menino-Jesus. Cerram os olhos e cantam o Auto do Natal, repetindo os Reis Magos, iluminados pela Estrela Guia. Soa a primeira voz que narra o nascimento do menino, entrecortada pela segunda, mais retida e, depois, a oitava, um doce lamento que brota do mais profundo da alma; por fim, todos os foliões, de vozes roucas, repetem o verso com toda força, querendo que seu hino acorde o pequeno e adorado infante. Aquele canto superposto, a oitava, de uma nota só, profundo, onírico, invade a alma e nos leva a viajar nas recordações pelo tempo corrido. Rebrota a infância trazendo imagens familiares, os amigos, as vielas, praças, casebres iluminados por candieiros, onde nossos pés visitaram e os corações palpitaram de emoção pueril. O olfato fica ouriçado e dá para sentir o cheiro gostoso à imagem das mesas repletas de biscoitos de polvilho, broas de milho, pães de queijo, café-com-leite, pés-de-moleque e tantas iguarias. A orelha até esquenta, aparecendo a mãe muito brava diante das peraltices do moleque... e os homens sérios turrando. É um terno telúrico, que nos leva a aprofundar nas raízes, na própria vida, sentir o chão, os caminhos passados, o céu apinhado de estrelas, o perfume inebriante da dama-da-noite, o cheiro de terra molhada abrindo-se, generosa, ao vôo das mariposas, deixando fugir, também as tanajuras com suas bundinhas cobiçadas; os besouros, de toda cor e tamanho, sendo mais apreciado pelos meninos o de chifres que era transformado em boi nos carrinhos de sabugo. Evoca-se, com ternura e saudade, a vida bucólica em que escorria solta a infância, quando a vida/cidade ainda se arrastava.
          Saudação feita, vem o agrado ao dono da casa; uma catira, a dança do quatro - quando os homens revelam sua habilidade motora, trocando de lugares, brandindo instrumentos que passam zunindo rentes às suas cabeças, enquanto desfiam histórias locais, quase sempre de bichos e paixão - ou o lundu, com a picardia e engodo dos casais, sapateando, rodopiando, enquanto cantam cantigas hilariantes e picantes, puxadas por repiques alucinados das caixas e a marcação dengosa das violas, tudo cadenciado com palmas bem fortes. É quando a alma se abre de vez para extravasar toda a alegria da noite/folia.
          Um golinho de pinga, uns biscoitos, um naquinho de prosa e lá se despedem os foliões pinicando, marotamente, malemolentes, as violas - apenas acordes perdidos, dolentes e apaixonados. E vão desaparecendo na escuridão em busca de outra manjedoura, pois Jesus nasce em todos os lares.
          No relicário da saudade desfilam velhos e tradicionais foliões, entre eles o Imperador Lúcio, empunhando a bandeira que carregou, por mais de trinta anos - até morrer - para cumprir promessa. Vai-se matando saudades, enquanto passam os foliões seguindo a tradição, anos após anos: Locha, sempre tão inventivo e exímio dançador, Adão Barbeiro - o rei da dança do facão e da garrafa -, Pedro-Duro - dos poucos conhecidos com coragem para pinicar o Rio-Abaixo, depois de muita adulação e agrados -, Marciano, Vicente e tantos outros. Carregam na sua jornada a história de um povo.
          Dá para ouvir, um pouquinho da sua glosa:



“Gosto de folia / Não é da conta de ninguém / Lá em casa não tem galinha / Na folia eu sei que tem...”