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terça-feira, 6 de outubro de 2009

SAGA DE UM URUCUIANO

João Naves de Melo



Foto Dirceu Lelis de Moura - O vale do Ribeirão da Conceição corre sinuoso entre as serras da Conceição e São Joaquim. Ali viveu a matriarca Joaquina, construindo um grande império; ali os Bandeirantes de Urucuia, depois, plantaram um sonho que se fez realidade colocando aquela região no mapa do Brasil.


UMA HISTÓRIA



O resgatar a minha passagem pelo Urucuia veio para saciar a grande saudade de um curto tempo vivido que, por encanto, ficou parte de mim. Quis rebuscar, passando pela tangente, um pouco da saga dos Bandeirantes do Urucuia, por sentir que eles foram esquecidos na história de Caio Martins, e reviver, na lembrança deles, de como aprendi a gostar tanto do sertão. Quis registrar os nomes de homens-meninos que, com muito idealismo e alegria, foram artífices da transformação de um pedaço esquecido do Brasil, onde plantaram uma civilização. Quis buscar na lembrança a imagem da primeira escola, um reboliço de meninos debaixo de um enorme tinguizeiro e, porque eles estavam ali, atrás vieram os homens, seus pais, processando-se o que pretendia a Bandeira: transformar o homem do campo através da criança.
Um dia há de ser escrita a história do Urucuia, por inteiro, aprofundando-se nos propósitos da instituição, como se deu a implantação de uma filosofia e os resultados alcançados. Isto será muito importante para Caio Martins e para os estudiosos das áreas da educação, sociologia e antropologia, entre outras ciências – o material é farto e inesgotável. E assim se provaria que muito pode ser feito pelo País sem a necessidade de projetos mirabolantes, onde se despejam fortunas e poucos resultados são obtidos. Até lá, no entanto, a transformação terá que ser bem maior, onde se sabe que jamais será tentada por satisfazer, como está e melhormente, muitas ambições.
O meu pequeno dizer ou redizer de fatos tem mais de gosto e necessidade pessoal - a saga de um bandeirante no no Urucuia, de junho de 1957 a março de 1960. O que escrevi, foi o que vi e senti e não pretendendo, necessariamente, um registro histórico, porque não coletei dados, não conversei com meus amigos e irmãos bandeirantes e não voltei ao Núcleo para conferir os lugares. Tudo brotou do mais profundo da alma, onde, por muitos anos, tenho guardado um pedaço de minha existência tão gostosamente vivida – foi, assim, o recolher de saudades. Todos os fatos são verdadeiros. Alguns nomes ou lugares podem estar equivocados, o que peço compreensão, especialmente dos companheiros bandeirantes que, como eu, aprofundaram no Urucuia.
Presto minha homenagem carinhosa aos meus companheiros Holmes Geraldo da Silva e Emílio Milton da Silva – in memoriam -, Flávio Bracarense da Silva, Raimundo Gonçalves de Melo, Ivo Andrade Villefort, Geraldo Moreira Soares, Francisco Ferreira Resende, José Maria Pinto, Jonas Batista Pereira, Pedro Buchene e Geraldo Saldanha da Silva, expressando a minha alegria de ter, com eles, composto a Bandeira do Urucuia, os 12 Bandeirantes do Urucuia.
Das veredas guardo os mais belos retratos em minha alma; das morenas de olhos verdes, se não as vi, tão formosas como foram cantadas, pelo menos por elas muito esperei e fiz da minha passagem pelo Urucuia um momento de rara beleza e encantamento - sonhei! Por esses sonhos e por ter servido com tanto orgulho a um ideal e a uma grande instituição, presto minhas homenagens a duas grandes personalidades da educação deste nosso Brasil: professora Maria Célia Santos e coronel Manoel José de Almeida (in memoriam) – eles foram os grandes artífices da Bandeira do Urucuia, moldando e plasmando o caráter e o ideal de uma plêiade de jovens sonhadores que, depois, responderam sim ao Brasil. Por isso temos essa história para contar: a saga de um urucuiano.


PREFÁCIO

Esta publicação, do professor João Naves de Melo, é na verdade um livro de memórias que envolve a instalação e desenvolvimento do Núcleo Colonial do Vale do Urucuia, parte da tríada pedagógica das Escolas Caio Martins, segundo projeto elaborado pelo seu fundador, o idealista Manoel José de Almeida, que via além do horizonte e viveu adiantado no tempo.
Há dois anos, aqui na Capital, o Autor lançou O Homem e suas Tempestades, prosa e verso, obra da melhor qualidade, edição da Arapuim Ltda., 105 páginas.
Como escritor, Naves começou cedo. Responsável por uma coluna permanente no SF, Jornal de São Francisco, eu não perdi texto algum de sua lavra. Lia-os todos com indizível prazer e ainda os recortava para o meu arquivo, porque o maior número deles envolvia temas folclóricos. Sim, ele é também folclorista, e dos bons.
Do que escreveu no jornal, chamaram-me a atenção, principalmente, Rio-Abaixo, A Dança do Carneiro e As Parteiras, o primeiro dos quais está a merecer publicação em plaqueta de luxo, bem ilustrada. Narra a crença regional de um demônio que transformou em canoa um caco de cuia, desceu o rio tocando viola e seduziu uma pobre mulher, que deixou o filho na praia, desesperado.
Tudo que Naves escrevia era resultado de suas pesquisas, nas quais adotava o modelo antropológico da observação participante, como ainda o faz.
Em A Saga de um Urucuiano, que mais me parece uma odisséia, o Autor descreve com espontaneidade a ocupação das terras de antigo matriarcado para onde doze jovens foram encaminhados com o propósito de estabelecer um núcleo colonial nos moldes do de Carinhanha, já em franco progresso. João Naves de Melo era um deles. Não teria mais do que dezessete anos.
Realmente, pode considerar-se aventura a permanência dos doze pioneiros naquele oco de mundo, longe de tudo, sem casas para morar, abrigados em ranchos de palha, sem estradas e sem comunicação. “E não nos arrependemos, não pelo que nos fizeram, mas pelo que fizemos", disse o Autor.
Desde os preparativos, que duraram cinco meses, os jovens eram denominados bandeirantes, numa clara alusão aos primeiros colonizadores da Província de Minas Gerais. Enfrentaram com denodo todos os percalços: amassaram barro e produziram tijolos e telhas, construíram casas de alvenaria, plantaram roças, abriram estradas e regos d'água. Em três anos modificaram a própria fisiografia do lugar. Além de professores, artesãos, para-médicos, motoristas, agricultores, faziam as vezes de assistentes sociais na comunidade. Em feliz expressão, Naves chamou universidade à sua vivência no sertão do Urucuia.
Por meio das palavras, o Autor pinta a natureza em toda a sua diversidade – matas, cerrado, veredas. Igualmente, descreve os padrões culturais existentes no Vale do Urucuia, bem como as características físicas, sociais e psicológicas de seus moradores. Revela os hábitos de vida do sertanejo, seus usos, costumes, tradições e espírito religioso. Tudo lá possui a marca da religiosidade. Nesse gênero da literatura, a descrição, João Naves ultrapassa, excede o escritor comum, é grandioso, ninguém lhe leva a palma. Qualquer de suas descrições pode ser reproduzida na tela por um pintor.
A obra é merecedora de referência especial pelo seu valor dialetológico, pois registra elevado número de localismos, regionalismos, brasilerismos e expressões verbais.
Das viagens que se fizeram no sertão, a mais tumultuada realizou-se, de afogadilho, para transportar companheiro enfermo a Pirapora no Ford francês e em que o Autor se extravasa em elogios ao velho caminhão, transforma-o em personagem, dá-lhe vida e ânimo como se fosse gente. Chegou a pensar em agraciá-lo com medalha do mérito. Vou além: deveria ocupar um lugar no Museu Histórico das Escolas Caio Martins, em Esmeraldas. Mais que professor, em São Francisco João Naves de Melo tornou-se educador. Dirigiu o Centro de Treinamento para Jovens Líderes Rurais, onde formou várias turmas, centenas de rapazes e moças, os quais retornaram a suas bases no campo e lá desempenharam a contento o papel que lhes era destinado. Alguns deles sobressaíram e ganharam fama e prestígio.
Chamo epílogo de saudade à última página da Saga, onde o Autor revela ter guardado o Urucuia em um cantinho do coração, inarredável, preso como se fosse parte dele.
Este livro é um poema, uma ode heróica à natureza.

Belo Horizonte 26 de fevereiro de 2000

SAUL MARTINS


PARAÍSO ENCANTADO

Veredas que nascem como encanto nos gerais, com buritis roçando pindaíbas, balançando ao sopro da brisa dos campos altos com os altaneiros troncos presos por raízes fortes, fincadas nos olhos das fontes ou à beira de corredeiras cristalinas, límpidas e reluzentes como prata, cobertas de algas, como um lençol de veludo a bailar e a sussurrar suave canção no lamber de raízes soltas, no perpassar escarpas e ocos de palmeiras deitadas como pinguelas, nos redemoinhos das locas e no roçar de tenras folhagens tombadas sobre seu gracioso leito. É um cenário paradisíaco, refrigério dos gerais tão secos, de vegetação áspera e repetida. Ali se achegam, para bebericar, bandos de emas, enormes pernaltas cercadas de ariscos filhotes que, à vista de qualquer sinal estranho, desaparecem num sopro entre as moitas de capim de raiz; chegam as estridentes seriemas, de pescoço esticado, sempre atentas; os cervos lisos e arredios ali têm passagem sutil, quase imperceptíveis, com as orelhas antenadas e o rabinho girando como a captar sinais alheios ao meio. No alto, disputando as copas das palmeiras abertas em leques portentosos, chegam as araras de matizes vários. Precisa ver: vermelhas, azuis e amarelas, de rabos enormes a equilibrar o pouso nos olhos da palmeira buscando um tronco ocado onde possam se aninhar e renovar a vida alada dos gerais; papagaios graúdos e galegos; jandaias e periquitos, em bandos. São mais, muito mais, quando amadurecem os frutos do buriti, pregadinhos em cachos enormes que reluzem num tom avermelhado, chamando as aves do céu. Das veredas descem, serpenteando o árido sertão, filetes de água que vão se engrossando, se engrossando e ganhando fundura, até alcançar os leitos de pedras em busca dos vãos. Correm sobre lajes quiabentas, contornando e furando pedras, lambendo as verduras que se deitam sobre a corrente, gemendo o chuá-chuá, como cantiga de mulher apaixonada. De pequenas em pequenas quedas, chegam, córrego formado, nas gargantas das serras e se despencam no espaço livre. Alturas imensas. Em cada uma se vê: o volume se esfacela em milhares de gotículas, que bailam no ar, como espuma, que impressão dá de querer subir para o céu, sem querer deixar os gerais e as plácidas veredas. Lá embaixo, bem no fundo, o borbulhar e o ronco do esbarrar da água no poço cavado nos anos sem conta. Em volta tudo é úmido, respingado: as pedras enegrecidas e esverdeadas pelo musgo; as locas escuras; os imbés sustentados pelas raízes que penetram em gretas invisíveis querendo terra; avencas de singelas folhinhas que bailam respingadas por saltitantes gotículas. O sombreiro do poço é feito por seculares aroeiras que saem das pedras para ganhar as alturas. Precisa ver a vereda! São as veredas tropicais de beleza indizível, só os olhos de cada um podem levar a sua formosura ao coração. E lá, naquele mundo encantado, saindo de recônditas choupanas, encravadas entre veredas e luxuriantes capões, ou espalhadas pelos vãos, pingados aqui e acolá, nos meandros dos ribeirões Conceição e Conceiçãozinho, ou nos pés da Serra da Conceição, escondidas nos férteis grotões, as mulheres, "morenas de olhos verdes", mulheres de beleza pura, selvagem, sem igual! Assim o Urucuia me chegou e se aninhou em meu coração. Foi a primeira imagem dele e a que, no mundo da fantasia que alimenta o espírito, a que me ficou. Ela povoou e tomou conta dos meus sentidos a centenas de quilômetros e muito anos anteriormente à minha pousada de corpo naquele sertão. Por muitos anos, doze jovens, entre 13 e 17 anos, ouviram essa história, todos os domingos após a missa matinal. Sentavam-se em torno de Manoel Almeida - idealizador e fundador das Escolas Caio Martins - homem idealista, pragmático e sonhador que fez da educação seu projeto de vida. A história da "vereda tropical" e das "morenas de olhos verdes" se repetia, como preâmbulo de cada palestra sobre o Urucuia. Com o tempo, o grupo percebeu: desenhava-se o seu futuro - a fundação do Núcleo Colonial do Vale do Urucuia. De história em história; de exaltação em exaltação, caldeou-se um ideal de força misteriosa e impressionante no espírito daqueles jovens: seriam eles os doze Bandeirantes do Urucuia. Ao fim de cada palestra, sentiam-se bem mais próximos da Fazenda Conceição, nas fraldas da serra e das barrancas do ribeirão do mesmo nome, nas ruínas da fazenda da Joaquina, legendária personagem daquele mundo esquecido e abandonado, onde se levantaria o Núcleo. Em dezembro de 1956 os doze jovens concluíram o Curso Normal Regional - eram professores e estavam prontos para a missão. O difícil foi segurar a ansiedade de cada um até o dia da partida. A largada dependia apenas de estágios de especializações, pois, naquele sertão inóspito estariam sós e entregues à própria sorte ou às respostas de sua capacidade. Foram cinco meses de angústia - cada dia era contado como um ano para quem precisava, com urgência, mergulhar os olhos nas "veredas tropicais" e ir bem fundo nos "olhos verdes das morenas" urucuianas, donzelas meigas e angelicais que de braços abertos já os esperavam, também ansiosas - no pensamento e desejo de cada um, pelo menos.


ESTÁGIOS

O Curso Normal Regional da Escola Caio Martins de Esmeraldas era, ao seu tempo, uma das mais avançadas experiências educacionais do Estado. Transcendia, em alguns aspectos, às escolas congêneres quanto à proposta educacional – "a preocupação de preparar o aluno para a vida". Com simplicidade, como a própria vida no seu ambiente social de origem, o alunado se preparava para o exercício pleno da cidadania, consciente de seus deveres para com a sociedade e para com a Pátria. Quatro anos de estudos, em regime integral - aulas teóricas e práticas, com inter-relacionamento de disciplinas e interação de conteúdos. Os conhecimentos teóricos adquiridos em matemática, desenho e física, na aula prática, o aluno empregava em construções rurais - casas, galpões, tanques; português, geografia e história, na prática, ele empregava no contato com os homens da região, nas reuniões de grêmio, no teatro, acontecendo o mesmo com as demais disciplinas, entre elas o canto, a religião e a agricultura. Em quatro anos, ao tempo do conhecimento teórico, o aluno era forjado nas atividades práticas o que permitia a sua imediata integração ao campo de trabalho - naquele caso, no meio rural, como professor, pois a proposta era o “soerguimento do homem do campo”. Manoel Almeida era o grande mentor, o homem das idéias, o visionário que via além dos horizontes e que abria janelas num mundo então alheio aos problemas emergentes - da criança e do homem do campo. Maria Célia Santos, a diretora do Curso, a executora que moldava o caráter de cada aluno empregando uma filosofia que a deixou indelevelmente marcada no coração de cada um: a do amor. Desvelo maior não poderia haver. Em 1956 formou-se a primeira turma: 22 professores. Doze deles tinham uma missão pela frente - o Urucuia. Antes da partida para o sertão, muitos foram levados a fazer estágios de especialização em determinadas áreas, antes definidos de acordo com a função que cada um iria exercer: encarregado de escritório, da cooperativa, agricultura, pecuária, sapataria, alfaiataria, motorista, da farmácia... Interessante é que, à época, estando tão empolgados com a aventura, não perceberam eles que tudo fora engendrado como motivação para o empreendimento e que, de fato, nada daquilo fazia sentido - pelo menos para a maior parte. Enchia o ego saber que lhe era destinado um papel de importância na chamada Bandeira, como o caso do professor escalado para motorista - ele mal sabia dirigir um carro de passeio, quanto menos um caminhão, mas tomava toda a pose de motorista do grupo. A arrumação podia ser percebida por ocasião dos estágios. Um grupo - Raimundo, Pedrinho e Jonas, foi enviado para Alagoas - Palmeira dos Índios - onde Arnold de Melo, então Governador do Estado e encantado com Caio Martins, queria ensaiar igual programa em sua terra. Eu, primeiramente fui para São Paulo, onde fiz um estágio de um mês na Ford, em mecânica de trator. Depois, com o Ivo, fiz estágios em rizinicultura e pomicultura na Escola Agrícola Florestal - o Ivo estagiou na área da pecuária. Fiz outro estágio, no Instituto Agronômico de Belo Horizonte, nas mesmas áreas. Acredito que foram os únicos estágios direcionados para um fim determinado e que, de fato, teriam utilidade imediata no Urucuia - agricultura e pecuária. Embora fossem definidas as funções, na prática, isto não queria dizer nada, pois muitas delas não seriam exercidas. Contudo, a preocupação com os estágios, demonstrou que se pretendia dar melhores condições de trabalho ao grupo em setores essenciais: a comunidade (grupo que foi a Alagoas) e no campo da agropecuária. Ficou nisso ou, pelo menos, é o que registrou minha lembrança.


A INSTALAÇÃO

A Bandeira do Urucuia deixou Esmeraldas no dia 30 de maio de 1957. Foi uma cena emocionante. Depois de dias de reuniões festivas os bandeirantes se viram, numa fria manhã, encarapitados na carroçaria de uma caminhonete que desfilava vagarosamente entre duas colunas formadas por alunos, professores, funcionários e gente da região. Acenos se misturavam com as lágrimas copiosas dos que partiam e dos que ficavam. Ainda que vivessem um momento de alegria por estarem a caminho do Urucuia, os bandeirantes não podiam segurar a emoção à medida que se afastavam daquele vale, deixando para trás muitos amigos e, uns, as namoradas. Recepção no Palácio do Governador - Bias Fortes; recepção calorosa em Corinto; muita festa em Pirapora-Buritizeiro e, depois, a entrada, de vez, nos gerais, imensos gerais urucuianos. Uma perua Opel levava os bandeirantes; duas caminhonetes levam passageiros e suprimentos; um caminhão francês levava um trator de esteira e, outro, suprimentos e passageiros, entre eles a banda de música formada por alunos de Esmeraldas. O comboio se arrastava numa lentidão entediante cortando uma paisagem, a princípio desprovida de qualquer atrativo: bancos-de-areia intermináveis transpostos a custa de sacrifício, empurrando e calçando com ramos e tocos os veículos; passagens esburacadas cortando grotas vincadas em morrotes vermelhos salpicados de pequenas árvores retorcidas - era o cerrado que se anunciava. Um dia de viagem, o acampamento à beira da primeira vereda - a! a primeira vereda tropical. O primeiro contato foi emocionante. As descrições do Cel. Almeida em nada foram desmentidas, embora muitos ficassem de vigília permanente, esperando o surgimento de alguma morena de olhos verdes entre as palmeiras. Colossais buritis, agitados pela brisa que arrancavam canções nos seus flabelos; água cristalina escorrendo e cantando entre as ramagens, como agradecida de ser apreciada e de servir a saciar sedentos lábios e a deslumbrar ávidos olhares de espanto. Fogo aceso, barracas aprumadas e os cozinheiros em atividade, preparando o jantar trivial - arroz com carne picada – "Maria-Romana". Um violão dedilhado, algumas canções no ar e o sono resultado da dura jornada de um dia. O céu apinhado de estrelas e a canção dos buritis, interrompida, de quando em quando pelo gemido de corujas, o estalido de gravetos quebrados por animais e o latido distante de cachorros de algum rancho perdido naquela imensidão. No outro dia, bem cedo, a retomada do caminho. O sertão parecia outro. Vastas campinas forradas de capim rasteiro, uniforme, salpicado de pequenas e retorcidas árvores bem espaçadas. Aqui e ali um capão, com árvores de maior porte e mais ajuntadas. Foram surgindo mais veredas e córregos, uma imensidão de água, dezenas de veias a cortar o cerrado, deixando tudo verde e bonito nas suas abas. A vida ali se via. De repente acabava a estrada. Desembarcado o trator de esteiras, ele rugia assustando os gerais, assustando as aves, afugentando bandos de emas e de seriemas. Agarrado aos comandos ia o Grilo, um homem pequenino, muito alegre, que, nas noites animava o acampamento cantando, com seus dois filhos, toadas caipiras. De tropeço em tropeço, de desce e sobe trator, o comboio chegou à fazenda Boa Vista dos Palmas, já perto do destino da Bandeira. Recepção animada. Muita comida e discursos. Na manhã seguinte, prosseguir precisava e o primeiro empecilho era a travessia do ribeirão da Conceição. O barranco de saída do ribeirão era muito íngreme e tinha um atoleiro profundo. Meio dia foi o tempo de trabalho para empurrar aquelas máquinas barranco acima, calçando daqui e dali, com aqueles monstrengos escorregando para baixo a ponto de quase massacrar quem lhes adjutorava. Enfim, Urucuia ou Conceição do Urucuia. O comboio saiu de uma trilha estreita, passando debaixo das copas de imensas aroeiras e tinguis, desembocando numa pista de avião, preparada uns tempos antes pelo pioneiro, Audálio Lisboa e dois bandeirantes. Uma paisagem deslumbrante: a serra da Conceição formava uma moldura ondulada cercando o vale que se estendia ao longo das margens do ribeirão da Conceição, forrada de densa mata de angicos, jatobás e perobas. Na altura do meio do campo um rancho enorme para proteger o avião e um ranchinho de palha de buriti com paredes de palha de arroz. Mais nada, absolutamente nada. No entanto tudo parecia um paraíso. No outro dia a festa de instalação do Núcleo. Levantou-se o altar para a celebração da primeira missa, e nele, colocada a imagem de Nossa Senhora da Conceição que fora levada no comboio, cercada de todos os cuidados. Depois, o lançamento da pedra fundamental - tive o privilégio, assim como em nossa formatura, de falar em nome dos Bandeirantes. Caravanas de moradores da região - vindo a pé, de cavalo e carro-de-boi; aviões e mais aviões, com as autoridades do Governo de Minas e deputados. A banda de música fazia a alegria dos locais, com seus dobrados. À noite o baile. Na manhã seguinte os aviões ganharam os céus urucuianos. Lá no fim do campo assentava a poeira do comboio que regressava, tão arrastada como vira até ali. Então, os doze bandeirantes se descobriram sós naquela imensidão, um olhando para cara do outro como se a perguntar: e agora?


A REALIDADE

Os bandeirantes se acomodaram no rancho de palha - um vão enorme, lembrando uma oca - onde um quarto era reservado ao diretor do Núcleo, Audálio Lisboa, um januarense rígido, muito amigo, espirituoso, poeta e amante da pinga e, outro maior para os primeiros alunos, alguns vindos do Núcleo do Carinhanha, outros da região e um – Jair - que veio, com a caravana, de Corinto. Nos primeiros dias a ambientação, depois, o trabalho – foi quando os sonhos se desvaneceram. A realidade era outra e não aquela pintada nas manhãs de domingo, em Esmeraldas; não aquela das funções definidas. O Pedro foi para o almoxarifado; os Jonas para o escritório; eu, montado num trator Ford pensei em revolver todas terras à minha frente; o Ivo, ao lado de Zé Branco, um vaqueiro arregimentado anteriormente, foi cuidar do rebanho; o Chico foi montar sua farmacinha. E os outros? Foi uma redistribuição terrível. O Emílio (o único casado do grupo) foi com sua mulher Teresinha para o Cabo Verde, uma das fazendas da Escola. Saldanha – o que seria motorista - e Geraldo Moreira, outro farmacêutico, foram para o Brejo Verde, outra fazenda. A primeira muito bonita, assentada nas margens do córrego Riacho Morto, com um buritizal exuberante se estendendo por imensa várzea e ao pé de uma imponente serra - imponente e intransponível. A segunda num lugar árido, desolador, de terra branca e infestada de lobeiras – não precisava ser mais triste. É difícil de imaginar como uma pessoa pode ter ali assentado uma fazenda (Vicente Campos, o don o primitivo tornou-se uma grande amigo da Escola, em Fróis, hoje Bonfinópolis). O motorista que nos acompanhou não suportou a solidão, e abandonou o paraíso; Grilo, com seus filhos, pôs o trator no sertão, foi abrir as veias de estradas para ligar o Núcleo a outras fazendas - depois, soube-se, foi abrir estradas para fazendeiros e políticos, contudo, as primeiras estradas a riscar aquele mundo esquecido. Jonas, Flávio e Zé Maria abriram as salas de aulas atraindo o sertanejo e, com isso, cresceu o número de ranchos do Núcleo. As necessidades absorveram os bandeirantes que, de precisão, foram se entregando a atividades diversas, pois o Núcleo precisava de vida: era o plantio da horta, a fabricação de tijolos, a preparação de terras para o plantio... muito trabalho para poucos operários, por isso era preciso trabalho redobrado. As noites pareciam imensas, pois a partir de seis horas um manto escuro cobria o sertão e um silêncio mortal a tudo envolvia. Acesas as pequenas lamparinas a sua luz trêmula animava alguns à leitura, outros preferiam as chamas crepitantes da fogueira à beira do campo, onde toda noite se instalava Audálio para assar úbere e dedilhar num violão nostálgicas valsas. Em quase todas as noites eu e o Chico éramos seus companheiros. Ali, debaixo das estrelas, numa solidão profunda e oprimente, chegamos a compor muitas músicas, lembrando as paixões distantes. Voltar, depois, ao rancho, cobria-se de nostalgia acompanhada de muitas precauções. Ao apagar das lamparinas percebia-se o deslizar das cobras imensas pelas palhas de buriti, no teto, à caça de roedores; no chão as caranguejeiras passeando em busca das mariposas caídas da luz recente; as palhas de arroz, das paredes serviam de pasto para os bois carreiros que ficavam no cercado do rancho - entre eles o Marrudo, um embrutecido e enorme boi de coice do carro que vivia às turras com o reprodutor Maravilha, como se pudesse possuir uma vaca - nostálgicas vontades suprimidas pelo cutelo do castrador. Quando eles se encontravam em embates, arrebentando as frágeis cercas, para confrontarem as forças, era proibido a qualquer um dos humanos deixar o rancho para ir ao banheiro, um pouco afastado. De uma feita, o Raimundinho, tomando de mal estar estomacal, se viu na contingência de aventurar-se na incursão. De lamparina na mão arriscou a empreitada, mas não foi à metade do caminho, voltando com o Marrudo em seu encalço, bufando toda sua raiva. De manhã, antes de calçar a bota, exame minucioso se fazia mister, pois elas eram ninhos preferidos das pequenas jararacas. Com o tempo, tijolos e telhas feitos, a primeira providência foi melhorar o rancho, levantando paredes, com divisão de quartos, instalações para o escritório, sala de aula e a farmácia do Chico. Foi a primeira obra - um palacete para a região. Isso, no entanto, não esmoreceu o grupo que permaneceu no Núcleo com o mesmo amor e disposição. O Urucuia entrara-lhes no sangue, ainda que sem as “morenas dos olhos verdes”. A bem da verdade não existia era morena de olhos verdes de jeito nenhum, mas sonhar com elas fazia um bem danado de gostoso.


A VIDA NO NÚCLEO

A vida dos bandeirantes era muito divertida, sem descuidos da imensa responsabilidade assumida. Imagino hoje: não passava por nossa cabeça como era importante e temerária a nossa missão. Era um projeto novo no Brasil – pelo menos nunca ouvíramos falar num trabalho igual: doze jovens professores, saídos dos bancos da escola para fundar e implantar um núcleo de colonização, civilizar um imenso pedaço de sertão até então abandonado e esquecido de tudo. No dia seguinte à instalação do Núcleo, quando nos vimos sozinhos, apenas com a companhia de Audálio, o diretor, imaginamos o primeiro passo. Na verdade não havia nenhum projeto definido. As funções de cada um, preparadas ao longo de muitos anos, se perderam no imediatismo da situação. O Ivo era o encarregado da pecuária – por meses se preparou em estágios castrando porco e mochando boi, mas o núcleo não tinha porcos e o gado era curraleiro, despropositado seria mochá-lo; eu era encarregado da agricultura, mas não tinha nenhum projeto e, muito menos, qualquer recurso para implantar qualquer coisa na área – era seguir o que se fazia na região, plantar como podia. Em pouco tempo lá estava eu comandando mais de cinqüenta peões plantando feijão a lanço. Era interessante. Chegava-se a uma baixada coberta de capim onde não se via um palmo de chão: alguns homens tomavam a frente lançando sementes a esmo e outros atrás, picando o capim, tombando as moitas de modo a atingir o chão. Terminado o serviço só se via aquele mar de capim mascado que, dias depois, estava todo murcho, despontando dele os pés de feijão com os cordões entrelaçados, tomando conta de tudo. Mais dias era um só tapete da leguminosa. Não havia capina, pois os pés de feijão entrelaçavam uns nos outros. Na colheita se via que o resultado não era nada satisfatório, com baixíssima produtividade, pois os pés perfilavam muito. O Saldanha, que seria o motorista, e Geraldo Moreira, que seria enfermeiro, foram tomar conta da Fazenda Brejo Verde, ocupando a sede da fazenda que fora de Vicente Campos, então comerciante forte em Fróis. Naquele lugar inóspito, triste e feio, se transformaram em professores de minguados alunos. Foi bom, pois as crianças da região sequer ouviram falar, antes, em professor. Saldanha se dizia o “rei das lobeiras”, pelo tanto da planta que por lá grassava na entrada do cerrado de terra escorrida, lavada, cheia de pedregulho. Emílio Milton, o Lourinho, que seria o chefe do escritório, foi com sua esposa, Terezinha – era o único casado do grupo – assumir a Fazenda Cabo Verde, também como professor. Era um local bonito, uma vasta campina coberta de buritis, se estendendo à frente da sede da fazenda - uma casa muito boa; e tinha uma vantagem: muitos moradores na adjacência. Pedro foi tomar conta do almoxarifado; Jonas do Escritório e da sala de aula, onde também lecionava o Flávio; Francisco era o doutor e tinha muito trabalho; Zé Maria acompanhava o Grilo e seus filhos, no trator de esteiras, Nordest Vander, abrindo estradas de “integração” – Raimundinho tomava conta do jipe americano e uma boa temporada, como eu, ele passou rodando mundo, só que fora do Urucuia, noutras plagas, em plena campanha política -, Holmes era o caçula do grupo e exercia o papel de curinga, assistindo as obras e outros serviços que careciam de atenção, como a olaria e a horta. Trabalhava-se duro o dia todo. A noite uns aproveitavam à beira da fogueira, com o Audálio, outros ocupavam o tempo lendo à luz da lamparina e outros rondando os ranchos dos moradores chegantes para prosear. Do Núcleo do Carinhanha vieram uns meninos para compor a bandeira, destacando-se entre eles Raimundo Santos, uma pessoa dócil, responsável, amabilíssima; Manoelzinho, pau para toda obra; João Reis, um garoto encrenqueiro, Anísio, um bom menino, estudioso e outros. Raimundo era o artista da cerâmica, comandada pelo Geraldo Chorró, também do Carinhanha – um bom reforço para o Núcleo nascente. Jair fora arrebanhado em Corinto, na passagem da caravana. O grupo completou-se com meninos da região - mais de dez foram internados nos primeiros dias, entre eles os irmãos Osvaldo e Orlando, Gaspar, filho de Tião Ema, Lindomar, Zé Mariinha... Os moradores primeiros, no Núcleo e na sua área próxima, foram Zé Branco e dona Lilica, Vicente e Mariana – um casal raro e especial em nossa vida – os cearenses Francisco Bezerra, Zezinho e Xixico; Antônio Farias, Antônio Veadinho, Geraldo Preto, Maria José, Agenora, os amigos serradores Avelino Baiano e João Baiano e sua mulher Cula, João Vazante, Ditinho, Ieié e dona Lauzina (chefe de lar), Tonhão, Ananias, João Lambisóio, Marçal, João Alagoano, Álvaro, Zacaria e Tião Ema.


O RANCHO

A serra da Conceição, na verdade, nada mais é do que a descaída dos gerais, um chapadão que vem de lonjuras, das bandas de Goiás, para debruçar-se sobre a depressão do ribeirão da Conceição, formando uma extensa vazante, com largura variada, acontecendo, por vezes, da serra beijar as águas do ribeirão e, noutras, ficar a mais de dois ou três quilômetros distantes do rio, dando à vazante a forma de uma enseada. Os boqueirões e as margens do ribeirão eram cobertos de densa mata; pelo meio até nas fraldas da serra e sopés de boqueirões cobertos de aroeiras, estendiam-se belas campinas, como lagos verdes, cercadas de mata rala com paus sem muita valia, mas de beleza extravagante. Bem no meio de um desses vãos, partindo de uma ruga da serra, mais apontada para o rio, onde tinha plantada a ruína da velha Joaquina, no sentido paralelo à serra, tendo a cabeceira no córrego Conceição e parte baixa embicada quase numa curva do ribeirão da Conceição, foi construído o campo de aviação do Núcleo, a segunda obra. Antes dela, de um lado, levantou-se o rancho, nossa primeira moradia no Urucuia. Uma imensa palhoça, bem inferior a algumas moradias locais que eram de enchimento ou outras, também de palhas, porém de melhor acabamento. O nosso rancho era imenso e muito tosco. A minha primeira visão, dele, quando cheguei ao Urucuia, naquela manhã do dia 7 de junho, era a de um monte de palha, bem alto. Devia ter de doze a quinze metros de cumprimento por oito de largura. Camadas grossas, mal agasalhadas, de palhas de buriti, faziam a cobertura e os tapumes eram de palha de arroz. O chão, batido. Muitas portinhas apontavam de cada lado, dando entrada a vários compartimentos. Numa ponta, de fora a fora, a cozinha e a copa; pela frente, o escritório, o dormitório dos alunos e a farmacinha; pelo fundo, a partir da cozinha, o minúsculo aposento do diretor e dele até ao outro extremo, a maloca dos bandeirantes. Nenhuma janela, só as portas, também de palhas que, à noite, eram apenas puxadas para evitar a entrada do gado – também não carecia delas, pois tantos os raios solares quanto os da lua, se infiltravam varrendo todo o interior do quarto. Era gostoso dormir coberto pelos fiapos de luz da lua, só incomodados pelos passeios das imensas cobras papa-pinto à caça de ratos, deslizando na madeira do teto, ou pelos bois carreiros arrancando as palhas dos tapumes. No fundo, no lado externo, um pequeno compartimento que servia como privada, de um lado, e banheiro do outro. Banhar ali era tão incômodo que se dava preferência ao córrego – era uma trabalheira e tanto para encher o tambor de água. Por alguns tempos ficamos ali, meio a cobras, ratos e caranguejos, com os bois comendo os tapumes, deixando buracos por todos os lados, expondo-nos ao vento e, às vezes à chuva. Com os primeiros tijolos e telhas, mudamos o rancho: paredes foram levantadas no lugar dos tapumes; a cobertura recebeu telhas portuguesas (colonial feita em nossa olaria), o chão atijolado, com direito a passeio e um gramado. Virou um palacete na região. Com os colegas dispersos pelas fazendas lembro bem da fase em que, num quarto, pelo fundo, dormiam eu, Chico e Raimundo. Confronte a ele, pela frente, Pedrinho, Jonas e Flávio. O quarto deles era um primor de ordem. O Pedro com sua cama impecavelmente arrumada – a colcha tão esticada como se passada a ferro e cobertor artisticamente dobrado, nos pés. O Flávio com seu armário tendo suas coisas meticulosamente guardadas, como peças de catálogo. O Jonas com seus pertences inexpugnáveis como se guardasse os segredos do mundo. Animava a noite deles o primeiro rádio que chegou ao Núcleo, acionado por uma imensa bateria de lata. Só funcionava à noite na hora das novelas da Rádio Nacional ou do noticiário. Era um suplício para o Pedrinho, pois, desrespeitosamente, tomávamos a sua cama como assento para melhor acompanhar os capítulos de "Jerômino, o Herói do Sertão". Do outro lado, a bagunça: cavaquinho do Chico, meu violão e as doiduras do Raimundo; mulheres cobrindo as paredes de fora à fora, espantando os santos. As guarânias e boleros avançavam na noite, provocando protestos do outro lado. Às vezes guerra de travesseiros e botas, por cima da parede, tudo muito “esportivamente”. Numa feita o visitante Saldanha extrapolou: com seu jeito debochado jogou, do outro lado, um tição em brasa. Zé Maria, que lá se encontrava, se armou e virou uma fera. Saldanha, tomado de medo, corria em volta do rancho com Zé Maria atrás, até que fosse contido. Naquela noite o Saldanha dormiu num rancho vizinho. Em tempos recentes, o velho rancho foi levado ao chão sem nenhum compromisso com a história. Fico a imaginar, hoje, como doze rapazes, cheios de juventude, sonhos, com tantas portas abrindo-lhes, a tudo viraram as costas para se internarem no Urucuia, morejando meses num rústico rancho de palhas, sem o mínimo conforto meio a cobras e caranguejos e, ainda assim, felizes.


AUDÁLIO LISBOA

Audálio Lisboa foi o primeiro diretor do Núcleo. Antes, porém, ele fora ponta-de-lança da Bandeira, cuidando, meses antes, das condições mínimas para recebe-la: o rancho de palha, o hangar e o campo de pouso. Ele viu a fazenda Conceição no estado bruto, só com as ruínas da velha Joaquina. Era um homem baixo, atarracado, tez bem morena, olhos empapuçados, escondidos detrás das lentes de óculos escuros que raramente tirava. Jovial, de trato agradável, manso e ponderado. Sensível ele via o sertão como um poeta, escrevendo belos poemas inspirados nas coisas que nos cercavam. Duas peças guardo na memória com carinho – a Ema Xandu e o Buriti. Como bom januarense, ele não ficava dia algum sem a cachaça, guardada debaixo da cama. Quando ele dava uma sumidinha, já se sabia, fora bochechar. Durante o dia ele se movimentava de um lado para o outro, atento às várias frentes de trabalho que se desenvolviam no Núcleo; à noite ele gostava de estar escoteiro – sempre à beira da fogueira, dedilhando belíssimas valsas ao violão. Eu e Chico, normalmente, éramos seus companheiros de vigília das saudades que ele trazia no peito. Depois dos solos de violão, o Chico começava a cantar suas guarânias, o que despertava agudas gozações por parte do Audálio, pelo espanhol por ele criado. Mais tarde versejávamos e arriscávamos a compor algumas músicas. Audálio era um grande conselheiro, amigo e muito espirituoso – ele não deixava ninguém deprimido. Acredito que o Cel. Almeida conhecia bem essas características, dele, colocando-o à nossa frente, pois naquela solidão, nos primeiros tempos o que realmente recisávamos era de uma pessoa madura e que representasse mesmo a figura de pai. O melhor de tudo é que, em pouco tempo, se viu que ele exercia muita influência no grupo, mas, por outro lado, ele ia se tornando um caiomartiniano cheio de ideal e sofrendo, com o grupo, quando angustiado por qualquer questão relacionada à escola. De uma feita o encontrei macambúzio diante de problemas surgidos com alguns colonos que por questão despropositadas deixaram o Núcleo. Audálio ficou apaixonado, pois via nos assentamentos uma das realizações da Escola. Vivi com ele aquele momento de decepção e amargor, dedicando-lhe um poema de desagravo e cheio de esperança em nosso trabalho - “Eles Voltarão” (Eles voltarão e nós os queremos. Nós os esperamos de braços abertos para apertar no peito aquelas criancinhas inocentes). Nas reuniões do grêmio ele animava os calouros (meninos da região que estudavam na escola) – depois de cada apresentação, quando saudados, ele sempre repetia, sobre as palmas: “são poucas, mas são sinceras. Dizem que no Riacho do Mato tem mais”. Riacho do Mato era uma fazenda que ficava meio a caminho de São Romão, onde Zezinho Cearense tinha uma propriedade. Não descobri o porquê dessa referência. De uma feita, sendo mordido por cachorro doido, fiquei um mês na casa de Audálio, em Belo Horizonte, em tratamento. Foi um período gratificante, pois vi e conheci o outro lado dele – a sua generosa e simpática família, tendo à frente uma criatura muito doce e amiga, sua esposa, dona Iza. A minha amizade com Audálio foi muito sólida, curtida nas noites à beira da fogueira, filosofando a vida e cantando para a lua e estrelas. Assim, quando fiquei noivo escrevi-lhe dizendo que ele seria meu padrinho de casamento. Não deu, pois, naquele tempo viajar até São Francisco, onde se realizou o meu casamento com Vilma, era mais difícil do que ir hoje ao estrangeiro. Contudo ele me enviou uma belíssima mensagem o que demonstrava, isto senti, que em espírito ele estava ao meu lado em um dos momentos mais importante e feliz de minha vida. Meu amigo Audálio, o Urucuia tem muito de sua pessoa, de sua voz, do seu sentimento e de sua crença inquebrantável no sucesso do Núcleo. Sua semente transformou-se numa comunidade muito interessante no coração do sertão urucuiano Batemos palmas para você. “Dizem que...”


JOÃO PITANGUY

João Fernandes Pitanguy, engenheiro agrônomo, diretor do Núcleo no período que coincidiu com as obras de captação de água do córrego Conceiçãozinho, ao pé da cachoeira do mesmo nome, para servir ao núcleo. Em várias ocasiões estive ao lado dele aprumando balizas ou segurando o guarda-sol para protegê-lo, e ao teodolito, do sol inclemente, ou, então, como anotador das marcas da baliza que ele cantava alto. Falar alto e ouvi-lo falar muito alto era o comum, pois ele era quase surdo, o que não escondia e até fazia pilherias, dizendo que era uma maneira de só ouvir o que lhe interessava. Assombrava-nos a sua imensa resistência, agüentando um trabalho duro, nas picadas que rasgavam a encosta da serra da Conceição, muitas vezes agarrado em galhos de paus para não escorregar ladeira abaixo, considerando sua idade que devia ser acima dos cinqüenta anos. Impressionava-nos, também, a sua capacidade de fazer contas – era mais rápido que alguém na máquina de somar (não existiam, ainda, as calculadoras eletrônicas, pelo menos no Núcleo). Ele anotava na caderneta as marcas da baliza e, no final, puxava a soma com incrível rapidez. Embora agrônomo, não gostava de ser tratado como doutor, tinha que ser “seu” João Pitanguy - um homem simples, muito vivido, experiente, com muito conhecimento de mecânica e eletricidade – enquanto ele esteve no Núcleo, não tivemos problema algum com os motores e nem faltava energia para a radiofonia e para umas poucas horas na noite. Ajustava os motores da carpintaria – todos a gasolina – tão bem que sequer dava para perceber o seu ruído, quando na marcha lenta. As histórias que nos passava eram de trabalho, de como vencer na vida, sem vaidades, com honestidade e seriedade. Contava muito de sua passagem por São Francisco, onde foi diretor do Campo de Sementes do Estado e suas incursões na política do município, como partidário da antiga UDN, tendo sido, inclusive, candidato – vencido – a vice-prefeito. Contava que as manobras políticas eram tantas que dificilmente um candidato da oposição a Brasiliano Braz poderia lograr sucesso. Desgostoso ele deixou São Francisco e foi morar em Pirapora com sua esposa, dona Iolanda. Foi
lá, em sua casa, que, quando fui transferido para São Francisco, passei quase um mês, graças à greve que estourou na navegação do São Francisco. Foi estágio muito importante em minha vida, pois, às noites, após o jantar, pacientemente, ele descrevia a história, os homens e os costumes de São Francisco. Assim, quando ali cheguei tinha uma acurada noção de como era o seu povo, especialmente os líderes políticos e de como deveria agir em relação a eles. Sobre o pessoal que trabalhava na escola (antigo Campo de Semente) ele fez um interessante perfil psicológico de cada um deles, o que me valeu, mais tarde, uma grande amizade com o velho José Domingos, o encarregado da turma de serviços de campo - servidores do Estado - que conhecia a escola como a palma da mão; em tudo que ali se via tinha sua marca - os pomares, os coqueiros, as lavouras, as trilhas nas matas então existentes. E mais, ele tinha os camaradas seguros em suas mãos com muita austeridade. João Pitanguy foi o meu mentor profissional. Aprendi muito com ele, sobretudo, por seu caráter, sua mansidão e a grande compreensão que tinha em relação ao ser humano. Todos os bandeirantes e moradores do Núcleo tinham uma grande admiração por ele que foi muito importante na implantação da Escola naquele inóspito sertão.


ZÉ BRANCO

Zé Branco era vaqueiro do Núcleo. O rancho dele ficava próximo ao nosso, no fundo do curral, de onde ele saía toda manhãzinha para brigar com as vacas - isso mesmo, quando Zé Branco tirava leite era só briga, ele xingava o tempo todo, batendo com o chapéu de couro ou um pedaço de pau na cabeça das vacas mais inquietas e dificultosas de dar as tetas para ele sugar o leite com as mãos calosas. Curiosamente nunca cuidei de saber as origens dele, mas acredito ser nordestino, pelo modo de falar, pela cor – era branquicela e de cabelos muito claros, daí o apelido. Estatura mediana, muito magro, mas não de doença, de natureza mesmo, pois era rígido, de carnes duras. Duas coisas eram-lhe comuns: o chapéu de couro surrado e os impropérios na boca – como xingava! De comum como os homens da região, às vezes excedendo, ele tinha a predileção pela cachaça. Quando extrapolava, a sua casa virava um inferno e dona Liquinha, sua santa mulher, e filhos, tinham que buscar guarida noutro canto. Fora da pinga, mesmo com o costume de brigar com o mundo, era um homem muito bom, trabalhador e confiável. No trato com os animais, embora um pouco violento, não tinha outro igual – acredito que as vacas e os bois tinham medo dele, pois eram mais obedientes que do comum, no seu trato. Só ele conseguia separar as terríveis brigas do boi carreiro Maludo com o reprodutor Maravilha – nós outros o que mais queríamos era distância. Ele entrava no meio dos dois, montado no cavalo Brinquedo – um animal pequeno, mas muito experto e entendedor das manhas do gado vacum -, com a vara de ferrão bem firme na mão ele avançava sobre os dois imensos bois ferroando-os e xingando-os a toda altura, até que eles abandonassem o palco da luta. Zé Branco tinha uma mula muito bonita, a Morena - era imensa, lembrando a mula cantada numa música caipira – “a mula de sete palmos de altura”. Poucos experimentavam o pêlo dela, pois o Zé Branco a preparara nas manhas a modo dificultar o gosto de amigos tomá-la como empréstimo. Só de seu gosto é que se montavam nela – o incauto que se atrevesse, quando menos esperava ia para o chão sem saber o motivo. Zé Branco nos revelou, um dia, entre muitas risadas uma das manhas da mula: "é só butá a mão no peitorá ou nas banda do pescoço qui ela dispara a pulá". De tempos em tempos ele reforçava o condicionamento da mula - quando bebia além das medidas, montava na Morena e a irritava sem parar, batendo o chapéu de couro no seu peito e pescoço. A coitada pulava até exaurir-se e ele, em cima, gritando e xingando o mundo. Observando o Zé Branco lidar com os animais e a trabalhar no campo, sempre que chamado, com determinação, sem desânimo e com muito engenho, um verdadeiro "pau para toda obra", transformei-o em meu ajudante, assim que fui designado para fazer as viagens com o caminhão do Núcleo. Audálio achou estranho: “um vaqueiro como ajudante de caminhão não tinha propósito”. Depois das explicações ele se convenceu e viu que não poderia ter escolha mais acertada: como um rapaz sem vivência nenhuma naquele fim de mundo poderia enfrentar o sertão em viagens que só se tinha como certeza a partida? Zé Branco foi, também, companheiro, como guia, em algumas viagens de cadastramento de eleitores. Com ele eu me sentia muito seguro – as trilhas do Urucuia eram-lhe comuns, podia percorrê-las com os olhos fechados, só no faro e, no mais, era um homem valente que impunha muito respeito. Das minhas aventuras ao volante do Ford, o Zé Branco esteve por perto, em quase todas e, graças a ele, sai-me muito bem, vencendo dificuldades que pareciam intransponíveis. A sua coragem, determinação e bravura, me animavam e davam forças. Homem simples, sem letras, briguento e, às vezes irascível, mas, no fundo, muito bom e amigo. O Núcleo, hoje uma bonita Vila, concretizado o ideal da colonização, tem sua marca, dele, indelével. Os seus gritos são parte da história da Conceição, como o são suas mãos e o seu coração que tanto laboravam para ali plantar a civilização.


VICENTE E MARIANA

Vicente era um homem singular, um urucuiano autêntico, do Capão da Cinza, de um rancho à beira do rio Urucuia. Ele chegou ao Núcleo quase ao mesmo tempo da Bandeira, levantando um ranchinho no fundo do hangar que se transformara em garagem e almoxarifado. Era um rancho simplório, com os tapumes e a coberta de palhas de buriti e chão batido; cozinha conjugada com a sala e um quarto, onde ele se recolhia com sua mulher Mariana. O rancho tinha duas portas – frente e fundo - e nenhuma janela. Além do fogão, alguns bancos e nada mais. Era de uma simplicidade tamanha que chegava dar a sensação de vazio. Contudo, ali estando, ouvindo o Vicente, sentia-se no meio do universo urucuiano – o rancho era um mundão só. Sempre chegávamos ali, eu, Raimundinho, Chico, Flávio e Jonas, com maior freqüência e os motivos eram tantos. Primeiro o café que só o Vicente sabia fazer: tinha um sabor, uma consistência, um tempero que nunca experimentei igual – parecia alimento, (alguém, mais tarde, me disse que era por causa do sujo arraigado na chocolateira – vasilha que recebia o café coado); depois o pão-de-queijo que Mariana assava na panela, iguaria sem igual. Enquanto a massa era assada a gente ocupava os bancos para ouvir a conversa do Vicente, o que se estendia por horas, especialmente nas noites de lua cheia: um espetáculo raro e maravilhoso - a porta de entrada do ranchinho bandeava para o nascente, de onde se divisava o capão dos angicos na beira do ribeirão da Conceição. Ao soprar da brisa, roçando nossos rostos, sabia-se: era o prenúncio da lua, da lua cheia a chegar ao sertão. Sem palavras ou sinal, todos se voltavam para os lados do capão onde uma luz prateada, muito tênue, preguiçosamente alçava ao céu, até tingindo, de lento chegar e beijar, as copas dos angicos. De olhos pregados naquela suave luz que pintava o barrado no horizonte, atirando tímidos raios para o alto, em minutos acompanhávamos o parto da lua: um corola, um naquinho mais, outro tanto e, rompendo a imensidão, despontava, enfim, brilhante e vaidosa, a soberana da noite. Como era grande aquela lua, meu Deus! A natureza quietava no sopro da frescura da brisa e no gozo do banho de raios de prata, ganhando uma placidez agradecida. Era comum fazermos versos naquele momento e, os mais próprios e interessantes saiam dos improvisos do Vicente que tinha o jeito de dizer o sentimento com as palavras e coisas da terra. Ele era, de fato, um tipo curioso - se mostrava tão simplório, com uma enorme barriga, de uma morenice amarelada que levava o Chico a exigir que ele tomasse vermífugo, certo de que ele estava entupido de ancilostomídeos – não tinha como refutar a observação, pois o Vicente, embora de tudo participasse e sempre pronto a ajudar, não era muito afeito ao trabalho duro e contínuo; carecia sempre de descanso, tanto é que sua atividade no Núcleo era de empreiteiro da construção de cercas, o que ele fazia muito bem, mas dilatava no tempo; falando era uma graça, tinha uma tirada divertida para tudo e via o mundo como uma fantasia, não se aperreando com nada-nadinha. Se na conversa perguntavam-lhe: “Vicente, o que você acha?”. No tiro ele respondia: “Do couro curtido faz a borracha”. Ou se era incitado de outra forma, como “o que você diz”, ele respondia num átimo: “em cima da boca está o nariz”. O que eu mais gostava mesmo era como ele via, interpretava e vivia a vida: fora do tempo, estando, contudo, no meio do tempo, a par de tudo, tirando e dando lições que, de tão simples, não eram percebidas como deviam ser. Os filósofos são assim, muitas vezes só são levados a sério ou compreendidos, quando paramos, um pouco, como eles, para sentir a vida. O Vicente, aos nossos olhos, tão simplório, era um filósofo de alma, perdido no fundo do Urucuia. Estava em desencontro com a nossa pressa de fazer as coisas, ocupar espaços e correr para frente. A conversa sempre espichava, pois tudo era propício. A lua, subindo ao céu, não sendo vista mais pela porta, se fazia presente, com seus raios filtrados nas gretas das folhas de buriti, respingando nossos rostos e o chão e, de repente, o interior do ranchinho era tomado de uma claridade suave, toda rendada. Ali, com Vicente, por tantas noites, aprendemos muito da alma do sertão, de sua gente, dos bichos e da exuberante natureza. A nossa amizade, curtida naqueles saraus e no trabalho no campo – ele trabalhava sob minha responsabilidade – estreitou-se muito, havia entre nós muita cumplicidade – eu querendo ser gente e ele, sem pensar em ser gente, querendo ser tão somente ele um urucuiano despretendido, mas satisfeito com a vida, moldando-me no entendimento de muitas coisas, sem querer ensinar nada. Simbiose de que só eu aproveitei, pois o que tinha para dar nada lhe interessava senão o seu sustento e o de Mariana, assim mesmo sem muitas pretensões.
Assim, quando fui para Escola Caio Martins de São Francisco, eis que, em menos de um mês, apontaram no portão daquela escola Vicente e Mariana, levando seus “terens” nas costas, ou seja, quase nada – Vicente não carregava o mundo, andava com o mundo. Foi por conta própria e se abancou no meu novo pouso, ficando comigo durante todos os anos em que fui diretor daquela escola, revelando-se um excelente chefe de lar. E Mariana? Era a sombra do Vicente. Falava quase nada e seu riso era de boca fechada, carecedora que era dos dentes da frente. Também era ela morena, desbotada como índio, às vezes tinha-se a impressão ser mais próxima do verde que do pardo. Calada, mas excelente cozinheira, no que era do seu conhecimento, nas iguarias do sertão, mas com tempo aprendeu a lidar com o nosso indefectível macarrão e a cozinhar galinha sem o carregado de urucum e coentro. Um dia, sem dizer nada, como se fosse encantada, Mariana, sem levar nada do quase nada que carregou na vida com Vicente, bateu asas, ouvindo a canção do Urucuia, soprada lá do Capão da Cinza. Vicente não resmungou, nada falou. Tempos depois encontrou Maria que o acompanhou até a morte. Saudade agradecida, amigo Vicente.


BEZERRA

Das primeiras famílias que se instalaram no Núcleo, fora os habitantes de mais tempo, dispersos nos boqueirões, estava a do velho Bezerra, um cearense. Seu rancho, tão rústico quanto o nosso, ficava no mesmo quintal, na área cercada abaixo do campo de aviação e acima da área de pasto. Era uma família especial, por suas características e sotaque nordestinos. O velho Bezerra era um homem alto, forte, muito branco, com os cabelos claros, que nunca penteava, sempre amassados, sobrando as pontas debaixo das abas de um chapéu de couro que não tirava para nada; comumente andava trajado com camisas frouxas, abertas na barriga proeminente; tinha um andar cansado, arrastando as precatas de couro, provocando o delicioso chap-chap tão comum nas trilhas sertanejas. O que mais chamava atenção era a sua dentadura, dando impressão ser maior que a boca, pois estava sempre à amostra, com sinais de nunca ter sido escovada. A boca ficava presa e, por isso, sua conversa era arrastada. Era um homem muito bom de trato, embora rude a não mais poder, principalmente quando punha uma coisa na cabeça, nada mudava sua opinião. Era o carpinteiro do Núcleo, de trabalho arrastado como ele – sempre tinha que ir ao rancho estar com a dona “Cosma”, sua mulher. Era ela muito grande, imensa em relação às mulheres urucuianas, chamando atenção suas canelas grossas e cumpridas –, alma boa, boa demais para suportar as implicâncias do velho Bezerra. O casal tinha alguns filhos. Deles me lembro muito bem da Chiquinha, uma menina muita aplicada nos estudos e inteligente. Ao concluir o 4º ano do curso primário, o primeiro ministrado naquele sertão, ela sonhou ir para Esmeraldas fazer o curso normal, como tornara costume na região. Nem pensar, estrilou o velho Bezerra. Alguns bandeirantes foram argumentar com ele dizendo que seria muito bom para o futuro da menina, ao que ele retrucou com convicção sem alongar a conversa: “muié num foi feita pra istudá. Ela foi feita pra pari e para isso ela já tá no ponto”. Levou tempo para convencer o velho Bezerra que, estudando, ela poderia fazer muito mais pela família. Ao fim de muitas e muitas conversações ele se dobrou, mas não antes de ditar a sua condição: “não dô uma pataca”. Os bandeirantes se cotizaram comprando o enxoval para a Chiquinha, com sobras para mantê-la nos primeiros anos na Escola, onde se formou e veio a ser destacada professora. Outra peculiaridade do Bezerra era a sua alimentação: não passava, de jeito nenhum, sem a carne de bode. Para isso ele tinha uma pequena criação de caprinos e, de quando em quando, proporcionava o espetáculo da matança, o que era muito cruel e indesejável de se ver: ele amarrava o pobre animal pelas pernas e o pendurava num galho de árvore. Deixava-o por uns instantes naquela posição, dizendo que era para o sangue escorrer para cabeça e, depois, aplicava-lhe uma violenta pancada na cabeça com o olho do machado. O berro do pobre animal nos acompanhava por dias. Aos argumentos de que aquela matança era cruel e maldosa, ele respondia: “desde menino aprendi que se mata bode é assim e num posso mudá, pois de outro jeito a carne fica ruim e cum chero”. Diante daquele suplício, ouvindo o pobre animal berrar, tremendo o corpo todo até levar uma peixerada no coração, ninguém se atrevia comer carne de bode, mesmo quando faltava carne de gado no Núcleo. Bezerra, já foi dito, era devagar no serviço, mas era esperto ao prover sua despensa, pois bocas ele tinha de sobra em casa para comer. Assim, quando a coisa apertava, ele baldeava para o lado do almoxarifado, onde as brigas eram homéricas com o Pedrinho: “seu Pedim, vim aqui pro sinhô me arrumá um mercadim pra atendê os minino lá em casa”. Era costume socorrer os moradores do Núcleo com o estoque do almoxarifado do Núcleo, abastecido sempre com as colheitas de nossas lavouras e de arrendamentos. O Pedrinho, no entanto, nem sempre estava pronto para atender ao velho Bezerra, mesmo porque “fazê seu mercadim” virara um hábito semanal. O bom mesmo era ouvi-lo, arrastando a precata rumo ao almoxarifado, batendo a dentadura solta, que carecia de ajuste com o maxilar, dizendo arrastado: “sô Pedim e mercadim”.


ZÉ DA PALMA

No pé da serra da Boa Vista, num vão que se estendia até ao ribeirão da Conceição, uma imensa vazante de terras férteis e muitas matas, com fartura de água descendo da serra, conduzidas em regos, estava plantado o povoado dos Palmas, a Boa Vista. Um grande largo, com a casa de Geraldo Palma de um lado, a de Tarcísio Palma do outro, mais casinhas, fazendo fila e, no centro, a igrejinha de São Domingos Sávio. Ali se via pastando, constantemente, os animais de uso imediato. Geraldo fabricava cachaça num alambique no fundo do quintal e Tarcísio era carpinteiro, fabricante de carros de boi e outras utilidades no sertão. Zé da Palma, o mais abastado e famoso, ergueu sua casa curiosamente fora do largo, à margem da estrada de acesso a São Romão e Pirapora. A casa ficava de um lado, com fundos para a serra e frente para a estrada; do outro lado um galpão e o curral. Da serra descia um rego, com abundante água que jorrava no quintal da fazenda, servindo aos moradores do aglomerado e irrigando pomares. Era uma casa muito grande e confortável. Ali foi o nosso primeiro contato com o povo urucuiano. Zé da Palma e sua família nos receberam com festa, oferecendo-nos um lauto jantar – muito apreciado depois de dias comendo arroz com carne seca. Fernando, um de seus filhos, tinha a idade dos bandeirantes e, por isso, com o tempo, estaria sempre mais ligado ao grupo. Naquela época a política municipal era comandada pelos coronéis, geralmente os fazendeiros mais importantes e ricos – Zé da Palma era um deles, um homem de muita influência na cidade e em todo o município. Foi para ele que, sem saber, no ano de 1958 passei seis meses no lombo de burros alistando eleitores – ele candidato a prefeito e o Cel. Almeida a deputado estadual (eleitos). Por muito tempo vivemos em harmonia com Zé da Palma e, em especial, com os outros Palmas, com seus filhos estudando na Conceição. Uns para lá se transferiram, morando com parentes que se instalaram no Núcleo, outros faziam a jornada diária, a cavalo, para assistirem às aulas. Os professores, então, foram os mais chegados e íntimos dos Palmas. Eram comuns os passeios à Boa Vista, onde fomos introduzindo o futebol com saudáveis peladas no gramado do largo – era ocasião, também, para saborear frutas, então inexistentes no Núcleo, e olhar as meninas Palmas, moreninhas brejeiras e bonitas. O tempo passou e com a influência que o Núcleo foi adquirindo, transformando-se no pólo natural da região, a posição do Zé da Palma foi mudando e, nem sei porque razão, depois que ele tomou posse como prefeito, chegamos a um estágio de beligerância. Não havia mais conversa. Comumente passávamos à frente de sua fazenda no escuro da madrugada e, estranho, muito estranho para nosso espírito jovial, civilizado e despojado, levando uma carabina receando qualquer ataque. Até hoje não consigo atinar porque aquela preocupação. Acredito que a desavença, na verdade, fora de ordem política, entre o Cel e Zé da Palma, o que assumimos de corpo e alma, tomando as dores. Levou tempo para voltarmos às boas, o que se deu por precisão, dos Palmas, como está contado no caso das viagens que fiz conduzindo o próprio e seu filho Fernando. Zé da Palma, então prefeito num certo dia ele teria que estar em São Romão, impreterivelmente numa certa manhã de um certo dia, para reunião política na Câmara Municipal. Na véspera ele ficou sem carro - o jipe da fazenda apareceu com uma avaria, sem conserto imediato; a cavalo ele não chegaria a tempo – eram 20 léguas. Não deu outra, ele dependia do nosso transporte e, assim, o Audálio me obrigou a fazer a viagem de caminhão para os Palmas, então inimigos da Escola (fizera, anteriormente uma viagem conduzindo o Fernando, narrada noutra história). Viagem marcada, às 4 horas da manhã deixamos a fazenda Boa Vista. Na cabina eu, Zé da Palma e Zé Branco. Na carroçaria um acompanhante do prefeito. Na subida da serra o Ford deu alguns sinais de má vontade, engasgando. Foi com custo que chegamos ao topo parando ao pé de uma porteira, onde o Ford deu a última tossida e pronto, apagou-se. Tentei, repetidas vezes, fazer funcionar o motor. Nada. Abri o capô e percebi a natureza do problema – estava muito afogado, conseqüência do esforço da subida com o motor totalmente aberto, numa primeira, sem alívio sequer da segunda. Eu sabia que era questão de esperar. Zé da Palma não, ele tinha pressa e mandou logo que o seu acompanhante voltasse à Boa Vista para buscar o socorro de um entendido em carro – cada lugar tem um curioso. Não fiz questão, embora soubesse da desnecessidade, pois ele não iria entender mesmo a minha explicação. Ele tinha pressa. O mensageiro desceu a serra e, apoiando a cabeça no volante, peguei no sono. Com o dia raiando Zé Branco me despertou. Coincidentemente, ao erguer a cabeça vi, pelo retrovisor, que se aproximava o “mecânico”. Sem nenhuma maldade, mas certo do que iria acontecer, toquei o arranque do motor e esse funcionou macio, descansado, como se também tivesse tirado uma boa cochilada. Zé da Palma não falou nada, mas mostrou certa indignação, embora satisfeito para poder tocar a viagem. Seguimos pelo alto da serra, cortando o cerrado de areia branca e macia. Dali eu já me punha a imaginar o que viria pela frente: a famosa Campina - um extenso trecho de estrada, cortando uma planície a sumir de vista, depois do córrego do Escuro. A estrada, pelo uso dos caminhões, era um sulco ou uma vala de quase 50 centímetros de fundura, rasgando o baixio. Com chuva, para ultrapassar aquele trecho levava-se horas, tantas eram as atoladas. Para a sorte do Zé da Palma não estava chovendo – sorte dele que precisava estar no horário certo em São Romão; para mim era indiferente, ainda mais que as feridas ainda não estavam de todo cicatrizadas e eu era um danado dum cricri, cheio de convicções. Ele pediu pressa – foi o que eu esperava, pois era apaixonado pela velocidade. Pisei fundo, sem respeitar curvas, buracos ou o que fosse – era preciso levar o prefeito, determinara o Audálio. Zé da Palma ficava mais no ar do que assentado no banco. O caminhão zunia cortando cerrado, ora na estrada, ora fora, mas rompendo como um boi bufando. Foi demais, num ponto, atordoando e com os olhos arregalados, Zé da Palma capitulou-se: “oiá, pode ir mais devagá mesmo. Eu preciso chegá em São Romão para bendita reunião, mas se for morto num adianta não. Deixa que a reunião espera”. Maneirei a velocidade. Sorte dele: a campina não tinha água empossada e, assim, chegamos a São Romão bem na hora da reunião. A volta? Ele dispensou.


AGENORA E MARIA JOSÉ

Duas mulheres, tão somente duas mulheres descomprometidas, existiam no Núcleo. Antes delas, uma linda garota nos despertava a lascívia: Geraldina, filha de Zezinho Cearense. Era pensamento prisioneiro: por muita amizade àquela família, nenhum de nós foi além de furtivos olhares, mesmo porque era ela ainda imberbe. Assim não pensou Fernando Palma que por ela também se engraçara e com bons propósitos: o casamento. Com tantos rapazes por perto ele cuidou de selar um pacto, pedindo a menina em casamento. Sobraram, então, Agenora e Maria José. Não era muito. Agenora era horrível, toda desmerecida de atrativos. Mulher diferente do povo da região, pela tez branquela, olhos claros e os cabelos castanhos alourados. Era roliça, muito roliça, o que lhe dava um aspecto estranho considerando ser de pequena estatura: parecia uma bola. De peculiar ela tinha uma anca tão proeminente que podia servir de garupa. Os braços pareciam toras de aroeira e as mãos fortes, calejadas como de um homem do eito. Tinha mais: era desbocada, atrevida, truculenta, sem o agrado da simpatia, era mesmo, como dela se dizia, uma verdadeira “tomba-homem”. E não é que havia quem a cobiçasse para o descarrego das forças selvagens! Ela não se dobrava a nenhuma insinuação, pelo contrário se insurgia como uma onça acuada, quando abordada com propósitos libidinosos. O instinto, às vezes, rebenta tão forte que cega as pessoas precisadas e, por isso, não poucos procuravam pilhá-la no ribeirãozinho, quando raramente descia para lavar os trapos, na esperança de que, também, lavasse as particularidades. Debalde, isso nunca aconteceu, ela tinha mais essa desvantagem: não tomava banho. Pelo que sei, no meu tempo de Urucuia, Agenora passou incólume às tentações da carne. Maria José era diferente. Uma recatada moça, mais avançada na idade que a média dos bandeirantes. Lava e passava nossa roupa e, de quando em quando ia para a cozinha. Muito asseada, reservada e atenciosa, cativava a todos com sua discrição. Era uma morena bem carregada, quase negra para os padrões urucuianos. O tempo passou e Maria sempre presente, a toda hora, na vida dos bandeirantes. O tempo foi passando e as necessidades também, o que acabou levando o instinto sobrepujar a razão e os bons costumes – os bandeirantes, no geral eram por demais respeitosos – levando o mais afoito dos rapazes a uma perigosa aproximação com Maria. Por mais que fôssemos unidos nenhuma sinalização apontou para o fato de que os dois mantinham encontros sigilosos. Eram tão discretos que o fato só veio a público quando ela começou a engordar. Foi curioso: todos queriam adivinhar o autor da proeza. Como se diz que o “criminoso sempre volta à cena do crime”, daí, chegar a ele foi só questão de tempo e paciência – todos eram, discretamente vigiados em seus passos. O autor do engravidamento de Maria voltou e foi pilhado, numa cena grotesca e hilariante, com as calças arriadas e ela com o rosto coberto com as mãos. Ele só teve uma palavra, com a voz sufocada pela emoção – não por ser pilhado, mas por ser interrompido: “Sai pra lá”. Não fosse o inusitado da cena, ela poderia estar, até hoje, no anonimato, mas quem viu não resistiu e, entre boas risadas pôs tudo a perder. Não houve escândalo, aceitou-se o acontecido como um fato normal, naquela situação em que vivíamos. Aconteceu que ele foi mais afoito e necessitado, saindo da linha. Enquanto estive no Urucuia nada se comentou e o amigo teve a sua companheira por muito tempo. Interessante que, outra vez, passando o tempo, outros sentiram o aflorar irresistível da masculinidade e quiseram, também, um pouco dos favores de Maria. Ela, honestamente, só teve um amante. Numa feita um dos companheiros, muito necessitado, não resistiu e a esperou num galho de uma árvore à beira do caminho do córrego onde as mulheres iam tomar banho. De lá, à passagem dela, muito respeitoso e ressabiado, morrendo de medo de ser visto, ele assobiava chamando-lhe a atenção. E ela indiferente até que ele se exaltou e gritou: “Maria, sou eu, vem cá, me dá um pouquinho”. Ela se fez de desentendida e seguiu caminho e ele, furioso, esbravejou aos ventos: “Puxa vida, não respeitam...” Reservei-me de declinar os nomes do companheiro de Maria e do galante assobiador por questões óbvias: hoje eles são casados e não sei se suas esposas conhecem a história.


MANOELZINHO E OUTROS

Os bandeirantes contavam com o apoio de uma equipe de jovens vindos do Carinhanha e outros garimpados na própria região. Manoelzinho, entre eles, foi um destaque: muito trabalhador e dedicado, imprescindível no trabalho agrícola pela facilidade de lidar com os peões. Nos folguedos ele completava o nosso time de futebol, jogando pelo Flamengo. A sua vida foi no Núcleo, tornando-se um de seus esteios com a saída dos bandeirantes, chegando a ser o motorista da escola – muito mais tarde teve um de seus filhos, formado em Esmeraldas, como diretor do Núcleo. Ali se casou, constituiu família. Outro foi o Chico Carinhanha, o alfaiate da turma, que também jogava bola em nossas peladas, sem ser excepcional e nem esforçado como Manoelzinho. Também ele se casou na região e ali se estabeleceu, tornando-se servidor de carreira. Até onde não sei, porque o seu maior problema era a bebida. Como dava trabalho colocá-lo no caminho. Outro foi o Zé Lopes, que chegou como auxiliar de pedreiro no início das construções e lá ficou. Era um rapaz festivo, descontraído, folgazão e divertido. Gostava da sanfona, com o que alegrava as nossas noites. Ficava só na música, pois dos tempos em que vivi no Urucuia nunca tivemos um baile e o motivo era simples – a falta de donzelas. Zé Lopes também jogava no Flamengo, mas bom mesmo era vê-lo nas peladas, com suas pernas cumpridas, parecendo um jaburu. A cada jogada bem sucedida ou gol marcado – raridades – vinha o seu grito de guerra: “esmoeu, égua!”. O significado nunca fiquei sabendo. Ele fez muitas viagens comigo, como ajudante de caminhão. Zé Mariinha foi outro colaborador que comigo fez algumas viagens como ajudante. Franzino, pequeno, mas muito esperto, disposto e satisfeito com a vida. Parece-me que ele era urucuiano, fato que não me lembro bem. Nas peladas ele era um terror, não por ser bom de bola, mas porque corria como um veado e tinha as canelas duras como ferro – um encontrão com ele era um hematoma certo ou o baita de um ovo na perna. Pantaleão outro rapaz da região que trabalhou no Núcleo. Impressionava por seu enorme bigode e pouca disposição de trabalhar. Lembro-me de um caso em que ele foi protagonista. No Urucuia, infelizmente, eu já era chegado ao tabaco. A maior parte do tempo fumava cigarro de palha valendo-me das toras de fumo que me leva com muito carinho o seu Zacarias, feita das folhas cultivadas num cercado em volta de seu rancho. Cigarro de papel era uma preciosidade que se guardava escondida, de volta das viagens de Pirapora. O mais apreciado era o Continental. De uma feita descobri que me ajudavam no seu consumo e fiquei fulo da vida, pois por mais que mudasse a moca os cigarros continuavam sumindo. Astuciei, pois, um plano macabro: tirei grande parte do fumo de vários cigarros, coloquei pólvora no meio, enchendo-os novamente com o fumo retirado. Não levou tempo a descoberta: numa manhã o Pantaleão apareceu com parte de seu enorme bigode todo sapecado. Sem poder negar e danado da vida, ele confessou ser meu sócio no Continental. Nunca mais invadiu meus guardados. Não sei precisar bem a época, mas teve um tempo no Núcleo, como chefe de lar dos meninos o seu Bráulio. Era um homem afável, muito falador e contador de histórias. A diversão dos bandeirantes era puxar conversa com ele para que relatasse fatos de sua vida enquanto um, escondido, ia anotando. Depois, reunindo os fragmentos – tempos de açougueiro, de mecânico, de alfaiate, de viajante, de comerciante, disto e daquilo – a sua idade sempre passava, e muito, dos cem anos. João Baiano e Avelino Baiano, dois cabras arrelientos, sertanejos caldeados na dura lida do eito ou debaixo dos tinguis serrando toras de madeira, eram dos colonos os mais presentes. Estavam sempre metidos em confusão por causa da cachaça, mas, de comum, eram bons de trato. Eram muito, mas muito amigos mesmo e, por isso surgiu uma lenda no Urucuia, depois da morte do Avelino o que me foi repassado e que narro noutra página destas memórias – o seu enterro. Lembro-me com carinho de Tião Ema, morador dos gerais, com o ranchinho encravado à beira de uma bela vereda – o filho dele, Gaspar, foi um dos primeiros alunos internos do Núcleo, junto com Osvaldo, Orlando, Jair, Maurício, Quelé, Fernandinho e outros que o tempo roubou-me os nomes. Estes eram especiais – os irmãos Osvaldo e Orlando pela bondade, atenção e alegria; o Maurício pela disposição de trabalho, especialmente no pêlo de um animal, galopando pelos campos como um índio – sem areio e rédeas, apenas uma cordinha fazendo a focinheira; Quelé por sua extravagância - era um tipo especial que, a cada dia, dava um motivo para gozação com suas estripulias. Era negro como uma noite sem lua. Do Fernandinho lembro bem por um fato: ele era quase surdo, o que o sempre o deixava fora de sintonia, nunca entendendo o que se lhe dizia pela primeira e segunda vezes. De uma feita chegou ao Núcleo uma pobre senhora, vindo de Belo Horizonte, para visitar o filho ali internado. Uma viagem longa, sofrida, vencida em carroçaria de caminhões que raramente cortavam aquele sertão, e, para completar, um longo trecho a pé – da fazenda Boa Vista ao Núcleo. A primeira pessoa que encontrou, para sua má sorte, foi o Fernandinho a quem perguntou pelo filho: “Meu filho, você sabe do Luizinho?” Fernandinho sem pensar, na bucha, respondeu: “Morreu”. O susto foi uma pancada e quem quase morreu foi a pobre mulher que passou horas desmaiada aos cuidados do Dr. Chico. Cula, mulher de Avelino Baiano, muito bonita para aquele caboclo desleixado. Seu Zacarias, pai de Maria, homem muito solícito. Chichico, um cearense de orelha cortada – colonos do Núcleo - e Manoel Tempo-Duro, morador das Lajes, vendedor de queijos para viajantes de Patos de Minas – seus filhos estudavam na Escola e se saíram muito bem. Eram, com os já citados em outras páginas, os moradores do Núcleo e adjacências, a população daquele mundo vasto, sem fronteiras, cujos limites topavam nos horizontes.


AS VIAGENS

1958. O Núcleo do Urucuia dominava a paisagem e se transformava num pólo regional, absorvendo a influência antes detida pela Fazenda Boa Vista. Tudo girava em torno dos bandeirantes do Urucuia. Na sala de aula adaptada no rancho, antes de palha, ouvia-se, no correr do dia, o alarido dos alunos internos e da região - a vida regurgitava. A administração ganhava feições bem definidas com escritório e almoxarifado em pleno funcionamento. No campo áreas eram desbravadas para o plantio de arroz, milho e feijão e outras novidades que o Cel. Almeida queria implantar, como resultado de seus arroubos de inovação: mamona de Israel, foi um exemplo, fracassado, diga-se de passagem, pois preocupava-se mais, na ocasião com o provimento básico. O Chico montou um pequeno posto de atendimento de primeiros socorros, com minguados medicamentos, mas, em pouco tempo se transformou em Dr. Chico, tantas eram as consultas que dava e de como se saia bem. Partos, alguns complicadíssimos, pequenas cirurgias, como reconstituir pés despedaçados por machadadas, em acidentes de trabalho e outros. Ele vivia no lombo de animais, sem hora marcada, visitando escondidos e distantes ranchos, onde um aflito clamava por socorro. Sempre foi bem sucedido. Da turma de Bandeirantes, seguindo o roteiro de intenções, quanto às funções adredemente estabelecidas, foi ele o mais bem sucedido, cumprindo inteiramente a sua missão. Funcionava, no Núcleo um serviço de radiofonia conectado com a rede de uma Secretaria de Estado (central) e estações da Comissão do Vale do São Francisco (PPC), que ia de Pirapora até ao Núcleo do Carinhanha - era o único veículo de comunicação do Núcleo e o ponto de referência no sertão, para os moradores e aviadores que se aventuravam muito pela região - também, era o avião o meio de transporte mais regular, confiável e rápido daquele vasto mundão. Um pequeno gerador acoplado em um motor à gasolina permitia a estação entrar no ar, duas vezes ao dia - eram momentos de muita expectativa e curiosidade para saber o que acontecia no mundo. Muitas vezes só se ouvia conversa fiada, sem nenhuma importância, mas era divertido, porque alguns operadores eram movidos a álcool e, daí, soltarem histórias ocorridas em suas cidades, muitas hilariantes. No mais, a vida seguia rotina de se levantar com o sol, trabalhar e trabalhar até ao escurecer e, depois, acender a lamparina para ler algum livro velho, contar umas histórias ou ir para beira da fogueira, no terreiro à frente do rancho, conversar com Audálio, saboreando ubre de vaca. O tempo passava como o vento. O núcleo crescia e era muito movimentado, especialmente porque já recebera muitas crianças e muita gente da região fazia ali o seu ponto de referência. Aconteceu que, de uma feita, chegando ao Núcleo o Cel. Almeida, nos trouxe uma nova missão: cadastrar os moradores das terras da Escola. Na hora ninguém se deu conta do tamanho da empreitada, mesmo sabendo que as fazendas da Escola formavam um complexo de mais de doze mil alqueires - quase sessenta mil hectares, o que só mais tarde tomamos consciência. O plano foi bem elaborado. A equipe seria formada pelos bandeirantes Chico, Raimundinho e eu. O Chico para fazer consultas dos moradores, distribuir-lhes vermífugos e vitaminas; eu e Raimundinho cuidaríamos do cadastramento dos colonos. Puerilmente recebemos as instruções complementares - fotografar os colonos. É normal que num cadastramento se preencha formulários, mas para que fotografá-los? Ficou a pergunta no ar até o dia em que se deu início a viagem ou dezenas de viagens. A primeira jornada foi alcançar os pontos mais distantes e abandonados: fazenda Rodeio e Vereda do Chico Velho. Até nisso o plano foi bem urdido – intencionalmente ou não. A fazenda Rodeio um paraíso que nos foi descrito como as veredas tropicais, vivia em nossas cabeças porque nos fora prometida para instalar a nossa cooperativa. Interessante, então, seria conhecê-la, sentir as suas pradarias a perder de vistas, suas aguadas e matas. Numa bela manhã lá fomos nós, guiados por Vicente Barbosa e Cesário, levando nas mochilas o propósito da empresa: o Chico os remédios; eu uma máquina caixote Kapsa e o Raimundinho formulários para inscrição de eleitores. E mais: a nobre e romântica missão de desbravamento do sertão inóspito, à procura de gente escondida e nunca vista, transformados em agentes eleitorais, os primeiros a pisar naquele mundaréu abandonado.


POLEIRO DE PATO

A estrela D’Alva se apagava no céu enquanto os sinais rubros do sol pintavam o horizonte semi-encoberto pelas copas dos gigantescos angicos dos capões na vazante que se estendia até às barrancas do ribeirão da Conceição. O Núcleo estava quieto. Um silêncio agradável cobria a natureza ainda molhada pelo sereno, só quebrado pelo canto dos galos, ainda empoleirados, depois do estalar de asas ou pelos latidos esganiçados de cachorros ainda em vigília. No curral de varas, Zé Branco dava os últimos retoques no arreamento da tropa - as mulas Ruana, Sucupira e Moeda e o burro Avião. Arreios curvelanos, com coxins confortáveis e espaçosos, diferentes das selas cutuca, que eram curtas e duras, no puro couro próprias para serviço de campo. Cada cavaleiro tinha que cuidar dos seus apetrechos - o coxinilho ou um cobertor dobrado e a capoteira, onde se levava umas mudas de roupa e material de higiene. Vicente montou a mula Sucupira – de viageiro macio; Cesário foi em seu próprio burro; Chico montou a Ruana e Raimundinho o Avião. Eu tentei montar a Moeda. Tentei, pois ao segurar a rédea fui recebido com mordidas e coices. Pouco habituado à montaria, senti que a empresa era mais complicada do que o esperado e, àquela altura, se mostrava uma temeridade - como domar aquele bicho? Não havia como substituí-la e mais por necessidade do que para querer mostrar-me corajoso, arrisquei passar para cima do arreio - o que só foi possível com a artimanha do Zé Branco, quebrando o pescoço da mula e tampando-lhe os olhos. Lá de cima, depois de suportar alguns pulos acanhados e três de-bundas, ouvia a instrução do Zé Branco: “pra montá nesta besta, ocê puxa a rédea, bem curto, pro outro lado. Ela num vai te vê e vai perdê o jogo. Dispois pode ir sossegado que o viageiro é bom”. Num ranchinho, na saída do Núcleo, pegamos o outro guia, seu Cesário que, antes, nos convidou para fazer um lanche de arroz-doce – ou arroz-de-doce, como conhecido na região. Em pouco ganhamos a estrada poeirenta, uma trilha cavaleira, por onde, de quando em quando cortava um carro-de-boi. Os cavaleiros iniciantes, atentos às lições do Vicente, procuravam manobrar as rédeas para obrigar os animais ao viageiro - uma caminhada suave em que o animal parecia deslizar sem pisar no chão. Era difícil pegar a manha e, com isso, qualquer descuido os animais passavam para o trote que lhes era menos penoso, pois podiam andar a vontade -o resultado para o cavaleiro era doloroso, cada pisada refletia no corpo todo, desde a bunda até aos ombros que no sacolejo seco pareciam sair do lugar provocando uma dor lancinante. Às vezes, seguíamos em fila indiana, cortando as trilhas, outras, quando se alcançava uma campina, lado a lado, o que permitia alguma conversa e brincadeiras. Atravessamos, primeiro, o córrego Conceiçãozinho – um fiozinho tributário do ribeirão da Conceição - no lugar tudo era Conceição: a fazenda, a serra, os córregos, a padroeira. O pequeno córrego corria no fundo de um enorme caixote, uma vala aberta, anos após anos, pelas furiosas enchentes. A descida, do alto do barranco até o leito, obrigava o cavaleiro a se segurar firme no arreio para não sair pelo pescoço do animal; na subida, tinha-se que dobrar o corpo para frente, quase junto ao seu pescoço para evitar dele sair pela anca. No Conceiçãozinho, a cada tarde-noite, os moradores do Núcleo tomavam banho e, no correr do dia, as mulheres iam lavar roupa ou buscar água para a provisão diária. A água não sobrava em abundância, mas era uma corrente graciosa, deslizando entre lajes, algumas pedras redondas, lavando cascalho e formando poços aqui e acolá – em alguns dava para nadar. Serpenteando as fraldas da serra da Conceição, às vezes margeando o ribeirão da Conceição e outras o deixando à distância, avançamos na estrada poeirenta até chegar a outro córrego, o dos Porcos, logo depois da Fazenda Santa Rita onde morava um nordestino conhecido como Sô Miro. Ele tinha um pequeno comércio onde vendia café, sal, ferramentas agrícolas, comprimidos, querosene e bebidas para os moradores da região - era a única venda naquele vasto sertão. Por ocasião da safra de grãos – arroz, feijão e milho - ele reunia sua tropa de mulas e saía de rancho em rancho, de roça em roça, recolhendo as colheitas que já havia comprado e pago no plantio, aos agricultores, com o fornecimento de mantimento e outras mercadorias – se mais fosse o valor ele pagava a diferença. O córrego vencido a seguir foi o Riacho Doce, um filete de água escondido em densa mata. Saindo das sombras abria-se uma imensa clareia, onde se via, altaneira, uma imensa cruz, tendo ao fundo a casa de José Pereira, um amigo do Cel. Almeida e dos bandeirantes. Ali, a cada ano era festejado o Dia de Santa Cruz. Deixando o Riacho Doce para traz mais nada encontramos a não ser a mata que cobria as fraldas da serra, e um lado, e de outro as matas serpenteando o ribeirão da Conceição; no meio, rala campina, ponteada de pequenas lagoas, povoadas de garças. Bandos de seriemas apareciam sempre, assustando-se com a tropa e em agitada carreira iam à frente dos cavaleiros por algum tempo. Bonita a paisagem, mas chegava ser monótona, pois não se via uma alma sequer durante horas e horas de viagem. Com o sol inclinando-se para o poente, chegamos à fazenda Poleiro de Pato, com sua sede embeiçada quase nas barrancas do ribeirão da Conceição. Das casas conhecidas era a melhor de toda a região, muito parecida com as casas das fazendas do Sul: paredes de adobes, bem rebocadas e caiadas de branco, coberta com telhas coloniais – pouco conhecidas e muito menos usadas na região - e muitas janelas de madeiras, queimadas pelo sol. Um grande curral de madeira partia da casa, forrado de estrume do gado que ali passava a noite, principalmente as vacas leiteiras. Fomos recebidos pelo seu Juca Alkmim, administrador da fazenda que, com alegria, instalou-nos confortavelmente em pequenos quartos, com catres forrados com colchão de palha de milho e guarnecidos com colchas de algodão grosso e colorido, tecidas na própria fazenda. Com o corpo moído, logo depois do jantar, sem muita prosa, nos recolhemos. Foi o nosso primeiro pouso. Na madrugada seguinte, ainda escuro, a movimentação no curral deu sinal de vida. Uma zoeira imensa: bezerro berrando para se anunciar e a vaca-mãe desesperada berrando de outro lado, já com as pernas amarradas, chamando a cria. O vaqueiro chegava à cancela da casa de bezerros gritando o nome de uma vaca e, mal a abria, um bezerrinho surgia galopando, indo diretamente às tetas de sua mãe. Vaqueiros praguejando ou gritando o nome das vacas e o chuá-chuá do leite enchendo as latas. O som retumbava ampliado dentro dos quartos onde dormíamos. Passado o inusitado despertar, dava para se acostumar com o barulho que, na hora matinal, tornava-se até mesmo agradável, bucólico. De repente, no ar, a música caipira. Surpreendente - música de rádio, ali, naquele fim de mundo, sem luz? A surpresa foi esclarecida ao chegarmos à sala: um enorme rádio de madeira, RCA Victor, alimentado por uma bateria não menos enorme, de lata. O Sr. Juca curtia a vida. Depois do café, com muito leite e quitanda lá estávamos, outra vez, na estrada.


A TRAVESSIA DO CONCEIÇÃO

Poucos metros percorridos, deixada a fazenda Poleiro de Patos, chegamos ao barranco do rio Conceição. Naquele local, por ser bem próximo da sua foz no Urucuia, era bem mais volumoso do que no Núcleo. Desavisados e sem conhecer nada sobre as aventuras que eram as viagens por aquele sertão, cortando serras, bocainas, veredas, campinas e rios, acreditávamos que era o fim da viagem, pois não víamos nenhuma balsa para fazer a travessia. O rio devia ter, no mínimo uns cem metros de largura. Vicente, o primeiro a chegar, desceu silencioso da mula Sucupira. Nenhuma palavra, mas percebia-se que ele ostentava um risinho zombeteiro, malicioso, se divertindo antecipadamente com alguma coisa. Desceu e começou a desarrear a mula. Virou-se para nós e perguntou, como já soubéssemos o que fazer: “Cumé, num vão apiá e disarriá os animá? Ocês num vão querê atravessá o rio com os animá arriado, né?" Foi aí que demos conta do que vinha pela frente: a travessia do rio. Mas como? A maneira era a trivial na região: os cavaleiros se embarcavam numa canoa – melhor dizendo, num cocho – segurando firme o cabresto preso na focinheira de um animal que tinha preso em seu rabo o cabresto de outro que, por sua vez era preso a outro - formava-se uma fila. Tudo pronto eram eles tangidos para dentro do rio, se preciso com o uso da pirata. O homem do remo tinha que ser firme para manter a direção da proa para não ser arrastado ao gosto dos animais, quando começavam nadar. Era uma arte mantê-los na mesma direção, sem o que, certamente, tornaria a empresa impossível, levando a canoa rio abaixo. Feita a travessia, arrear os animais era um trabalho desagradável com barro e areia impregnando as enxergas, os arreios e as botas. Para os animais era horrível, pois cada grãozinho que ia na enxerga provocava-lhe muito incômodo, deixando-os inquietos a ponto de saltar. Com tempo, durante a viagem, a areia seca ia se desgarrando, ficando pela estrada. O destino era Capão da Cinza, a terra do Vicente, nosso guia. O que não sabíamos, também, é que atravessado o rio, tínhamos adentrado na fazenda Rodeio dos nossos sonhos. Ninguém perguntou nada e, por isso mesmo nada disse o Vivente, pois o sertanejo não é oferecido.


CAPÃO DA CINZA

Deixamos as barrancas do ribeirão da Conceição para trás para ganhar o vão do Urucuia - da mata à beira do rio em pouco tempo avançamos pelo cerrado, com suas árvores tortas e pequenas, subindo do terreno de areia branca, forrado de capim de raiz. A natureza se desenhava diferente a cada légua vencida – era o anúncio do rio Urucuia. Palpitação geral: enfim, o encontro com o Urucuia que dera nome à bandeira – a Bandeira do Núcleo Colonial do Vale do Urucuia. O cerrado tornava-se mais denso, dando lugar aos capões, sombreados de jacarandás, pau d´óleo, sucupira e outras madeiras de lei. Havia até mais umidade no ar e dava para sentir o frescor vindo de água, muita água. De repente nos deparamos com uma mata fechada, com belos troncos de jatobá, aroeira, pau d´arco, braúna, cedro, peroba - velhas árvores de copas altas, disputando a luz do sol. Verdura só. A alegria e a paz só não foram maiores porque ao chegarmos a uma clareira que dava acesso a um porto de passagem, no Urucuia, o tempo fechou-se de vez. Pesadas nuvens, escuras como chumbo foram turvando o céu, precedidas da ventania que agitava violentamente as copas das árvores, levando-lhes, de roldão, as folhas mais velhas que, rodopiavam em todas direções, trombando umas contra as outras e nos troncos antigos para, enfim, serem arremessadas para bem longe, ganhando os gerais. Além da mata, via-se o rio roncando como velhos surubins tendo o leito em escamas. Os primeiros trovões rasgaram o céu e, sem muita demora, foram se aproximando Um ribombo violento anunciava que o epicentro da tempestade se avizinhava. Foi aí que alguém lembrou sobressaltado: “Isso aqui é um convite para receber um raio na cabeça” – estávamos debaixo de uma gigantesca gameleira cuja copa daria para cobrir muitos ranchos juntos. Foi um alerta só. Não passou minuto para que a tropa fosse afastada do local, adiando o batismo nas águas reais do Urucuia. Fomos nos alojar numa tapera cheia de bucha verde. O céu turvou de vez. Pesadas nuvens deslizavam quase roçando as copas das árvores e, sem muitos espaços, vomitavam relâmpagos – cada estalo seguido de violento trovão que fazia a terra tremer e depois ia ribombando sertão adentro, assustando os bichos. Ficamos ali horas até o Vicente anunciar que o perigo passara. Por que um matuto é que teria decidir se o perigo passara e com que base, quis saber um dos viajantes? "Pois oiá a orelha dos burro... tá tudo calmo. Os burro sabe mais qui ocês" – falou e riu de leve. Passara a tormenta dando lugar a pesado aguaceiro. Horas passadas, a natureza serenou e pudemos sair da tapera. A terra estava molhada, encharcada, dificultando os passos dos animais que afundavam os cascos na lama. Das copas das árvores ainda escorria água, respingando, suavemente, gotas sobre o tapete de folhas secas. Réstias de luzes varavam a mata formando um espetáculo maravilhoso, destacando o verde das folhas que ganhavam um brilho suave. Seguimos viagem, sempre beirando o Urucuia – ora próximo, ora mais distante. Chegamos ao Capão da Cinza. Não era o povoado que esperávamos ver, onde pudéssemos descansar o corpo com certo conforto. Era um pequeno largo, com poucas casas de pau a pique, alguns ranchos e uma casa mais destacada - nela nos encostamos para o almoço, isto já bem passado da hora. Era a casa de seu Neném Nunes, amigo do Vicente. Bonita casa e muito boa para a região, com uma ampla sala de jantar, guarnecida com cadeiras de couro. Lá nos instalamos. Fomos recebidos pela dona da casa, dona Perpedina, uma senhora muito solícita. Conversa vai, conversa vem, Vicente perguntou pelo seu Nenem. Ela respondeu que ele ia de mal a pior e que fazia tempo que não saía da cama. A informação nos deixou curiosos e assim que ela deixou a sala perguntamos ao Vicente que doença era a dele. “Doença Branca”, respondeu seco. Chico, o médico da turma, logo emendou: "Tísica". Foi o suficiente para acabar a fome e a vontade de ficar ali, murchando todos como um balão. O almoço foi demorado e difícil de descer, mais pela preocupação que a todos assomava do que pelo temor real - naquela época, a tuberculose era doença mortal, quase sem recursos.


BOCA DA VEREDA DO CHICO VELHO

Sol descambado; apenas a tintura rúbea de sua lembrança fazia cenário com o verde escurecido das palmas dos buritis. Lusco-fusco – hora de tristeza de saudades perdidas. Cortando o céu esmaecido, bandos de pássaros, sem muita força, voltavam ao pouso-repouso: araras e papagaios nas copas dos buritis; ariris assuntando beirada de lagoa; jaburus em formação cerrada quase perdendo a hora, cortavam o céu no bem alto – aquela parecia ser a hora dos pássaros. De repente, o silêncio – o dia entrara em sono manso. Cesário, à frente da tropa anunciou: “vamo fazê pôso aqui”. Era uma clareira entre o carrasco e a vereda. Já não se via nada, o que causou espanto – dormir onde? Não precisou perguntar, Cesário adiantou: “vamo ficar no rancho do seu Antonho de Paco, meu cumpade”. Firmando as vistas para os lados do buritizal, onde já estava bem escuro, pela caída das sobras das copas das palmeiras e pindaíbas dava para distinguir uma sombra mais projetada para o nosso rumo – era o rancho que nos aguardava. Cada um cuidou de seu animal: desarrear, escovar, pear e soltar na larga para o descanso. Arreio pendurado nos cambitos esticados em cordas de couro nas travas da varanda e as enxergas encharcadas de suor estendida nas varas da cerca que dava volta no rancho. Seu Paco indicou o local para o banho: “os moço pode chegá no fundo do quintá, tem poço lá, fica na vereda. É água boa”. Tateando por um trilho estreito, depois da cerca, com poucas passadas chegamos à vereda – a Vereda do Chico Velho. De luz só o pisca-pisca dos vaga-lumes. Silêncio pesado, sepulcral, só quebrado pela ocasional orquestração dos grilos que parecia ensaiada, guardando certos intervalos ou então os piados de agourentas corujas, ave pouca apreciada no sertão por estar ligada à morte das pessoas. Chegando ao poço Chico perguntou: “como a gente pode enxergar num breu desse?” Vicente emendou no ato: “com os óio de burro” – fazendo alusão à boa visão dos asnos. Risadas logo interrompidas por um ronco soturno, bem próximo do local. “Que foi isso, Vicente”? um assustado quis saber. “É ronco”, respondeu ele, secamente. “Eu sei que é ronco, seu besta. Mas ronco de quê”, retrucaram. Vicente, com a naturalidade que marcava suas falas, parecendo sempre estar longe do mundo, emendou: “dos sucuruiu”. Correu um gelo pela espinha de todos, menos de Vicente, acostumado com o sertão – ele deu uma risadinha zombeteira. Ninguém reclamou, pois ao primeiro ronco, emendou-se um coral retumbando vereda acima. Chico estava se ajeitando em cima de um tronco caindo sobre o poço para molhar o corpo. Com a conversa e os alardeados roncos, ele pulou para o barranco, assustado. Ato contínuo todos se afastaram do poção. Naquela noite os viajantes dormiriam sem banhar o corpo. Voltando ao rancho, seu Paco já esperava o grupo para a janta. Ele havia preparado um cardápio especial: arroz “Maria-Romana", feijão catador frito, com pedaços de torresmo e "bife-zoião". Meio ao jantar, Raimudinho voltou aos roncos dos sucuris, virando-se para o seu Paco: “Esses roncos na vereda são mesmo de sucuri, seu Paco?”. “É deles memo”, respondeu ele sem emoção na voz. Raimundinho insistiu para abrandar sua inquietação: “Mas são tantos assim?” Seu Paco, sem levantar os olhos e como se falasse de galinhas do quintal, completou: “Tem mais sucuruiu na vereda que pinta nas cocá. Nas cinco léguas da vereda do Chico Véio, até na cabeceira, num dá outro bicho!”. Ele fez uma pausa, de aparente propósito, rodou os olhos fitando cada um dos comensais, pouco visíveis pelo tremular da luz da lamparina, e explicou: “O sucuruiu come de tudo que cai n´água ou bera a vereda. É bezerro, porco, garça, pato, tudo, menos anta e jegue.” “Por que não a anta e o jegue?”, quis saber. Seu Paco mostrou cara de espanto: “assuncê num sabe, seu moço? Apois te conto. A anta é dos bicho mais chucro e rasgador. Ela tora qualqué alagadiço, mata, cerca ou o que tivé pela frente, quando dispara na carreira. Num tem cerca pra ela. Ela vem pastá capim fresco na bera da vereda e intão se sucede do sucuriú jogá a presa nela, mas num dando tempo pra formá o laço, o bicho dispara pro carrasco cuma uma égua de meio dia. A sucuruiu vai ficando fininha, fininha qui nem uma cobra verde. Adispois ela retesa e vai arrastano a anta de vorta e quando já vai chegano perto dá água, na hora da sucuruiu jogá o laço pra mode quebrar a anta, a bichinha dispara de novo pro carrasco. É um estica e encolhe. Fica assim um tempão e se a sucuruiu num sortá a anta arrebenta ela no meio e só fica tira no chão prus carcará e aribu pastá”. Antes do seu Paco tomar fôlego, o Chico pulou mais à frente perguntando: “E o jegue?”. Seu Paco fez uma pequena pausa, puxou uma baforada no paieiro deixando no ar uma fumaça perfumada, doce e gostosa, da queima da raiz do carapiá misturada no fumo do quintal. Calmamente voltou à fala: “O jegue é diferente. É um animal mais sossegado e sem correrias. Se a sucuruiu pegá o jegue e dá a laçada pra quebrá os ossos dele e adispois enguli, ele num se avexa. Aquieta ali, vai murchano a barriga, vai murchano enquanto a sucuruiu vai apertano o laço. Adispois ele vai inchano e inchano a barriga e o sucuruiu vai afrouxano as amarra. Fica assim um tempão até que o jegue dá um turro danado e estufa a barriga de um arrancão virano uma bola e partino a sucuruiu em pedaço”. Seu Paco fazia a narração do caso passando a impressão que a luta estava acontecendo ali, naquela hora, tendo o semblante sério e profundo, com os olhos agitados e fincados em cada um dos ouvintes medrosos. Chico quis saber se sucuri saía da vereda. Seu Paco, com toda naturalidade do mundo, contou: “o bicho vem pegá galinha, cachorro e porco no quitá”. A informação foi a pior parte da história, pois, na falta de espaço nos ranchos, era comum armar redes nos esteios da varanda ou debaixo de árvores para os pernoites. Naquela noite o rancho de seu Paco ficou grande – espalhados pelo chão, espremidos debaixo da mesa e bancos, os viajantes dormiram. Lá fora apenas o Vicente e Cesário, em suas redes de buriti, balançando em sono profundo, com todo o ar do mundo só para eles. O Vicente, certamente, com um risinho zombeteiro nos lábios, parecido desenhado.


CINCO LÉGUAS DE VEREDA

Das histórias do seu Paco nos restou uma noite mal dormida, por isso, muito cedo estávamos de pé. Fora do rancho, os galos disputavam canto com o alarido de araras que já ensaiavam seus vôos em busca de comida. Com o sol pintando o horizonte, na suave claridade matinal resolvemos ir ao poço lavar o rosto. Foi uma surpresa. Aquele mundo tétrico, fantasmagórico, horripilante que nos tirou o sono, com a história de seu Paco, à luz do dia era a imagem de um paraíso. O rancho do seu Paco era fincado próximo ao encontro de três veredas: Bebedouro, Sumidouro e Chico Velho – nos encontrávamos na foz da vereda do Chico Velho, na entrada dela no córrego Sumidouro que levaria suas águas ao Urucuia, não muito longe dali - dava para perceber pela vegetação: terras boas, onde subia mata luxuriante que a um golpe de vista, da porta do rancho se alcançava. Ali, no rancho de seu Paco se despediam os buritis, entregando suas águas a um riacho formoso, de águas puras e cristalinas, tudo dádiva para o Urucuia. No poço onde à noite arriscamos o banho, os derradeiros buritis, enormes e majestosos, com suas palmas abertas ao céu, cantando canções ao sopro da brisa em seus flabelos. Delicadas avencas e crespas samambaias enroscadas nos troncos das pindaíbas com as raízes segurando o musgo dançante nas margens do regato, fiapos de algodão verde cobrindo o nado de piabinhas. Cinqüenta metros ou mais de largura, a cabeça da vereda, cheia de buritis e pindaíbas e arbustos de todas variedades, muitos deles soltando frutinhas vermelhas, comida de passarinho. Rumo ao rio, a mata; para cima, vestígios dos gerais – a vereda serpenteando, no meio do carrasco. Uma faixa marcada, de muitos metros, cem ou menos, de capim rasteiro, cobrindo a areia branca, entre a vereda e o carrasco, com suas árvores retorcidas. Ali, nenhum arbusto, planura só, lisa-lisa. Lugar bom de se ver; lugar bom de se ficar com os olhos em Deus. Um espetáculo de muita graça: o sol vinha, ainda esfregando os olhos, manso, doce e suave lá pelas bandas do Urucuia, subindo as matas. A relva guardava ainda o frescor da noite, úmida e brilhante como prata; das palmas dos filhotes de buriti escorria o sereno em filetes preguiçosos de cair e rorejando, enfim, como gotas de prata no mato rasteiro sedento de um beijo. O riacho, ali de águas grossas e profundas, cantava a música dos gerais para chegar aos vãos e, se despedindo dos brancos areais para tomar carona no Urucuia e no Velho Chico em busca do mar que é o fim de todas as águas. Do Chico Velho para o Velho Chico para pactuar com o mar – lembranças do sertão urucuiano. Nas copas das palmeiras a vida regurgitava em alaridos – araras de variadas cores: vermelhas, azuis e as amarelas, gritavam ajeitando as asas agasalhadas nos ninhos feitos nos ocos das palmeiras, para a aventura do dia em céu aberto no exercício da vida; papagaios e serelepes periquitos aumentavam a algazarra. Pelas bandas do Urucuia, por onde a natureza criou as lagoas, levantavam vôos, em bandos, os ariris, jaburus, mergulhões e as garças. É de dar gosto ver o vôo desses pássaros. Os ariris são ruidosos e ligeiros, voam baixo; os jaburus são majestosos, silentes e voam alto, como uma esquadria de aviões em exibição, sem anúncio de guerra, formam um V, com o líder conduzindo o grupo até se alcançar, indo para traz, depois, revezando-se com outros; os mergulhões são velozes em seus vôos rasantes sobre as lâminas d´água assuntando os peixes, e as garças, as garças pintam de branco as lagoas, as praias e os pastos. Seu Paco nos aguardava à mesa: café adoçado com rapadura; beiju molhado na manteiga de garrafa, queijo e paçoca de carne. “Até depois, seu Paco”, gritamos de cima dos burros. “Inté!”, respondeu ele atencioso como fora o tempo todo. Vicente e Cesário marcaram o trecho, atravessando a vereda. Viajamos pela margem esquerda. Cortamos léguas, com muitas brincadeiras e conversas ou guardando silêncio, apreciando a natureza, tudo tão diferente do conhecido.


SOLIDÃO

O tempo perde o sentido em termos de horas, quando se anda do nada para o nada. Senti isso quando, com os animais emparelhados, seguimos o curso da vereda do Chico Velho rumo à sua cabeceira. Tudo muito vasto, inóspito e silencioso. No alto um céu azul, profundo, o verdadeiro sentido do infinito de tão longe parecia estar, um precipício sem fim; de um lado a portentosa vereda com seus buritis, pindaíbas, imbaúbas e moitas fechadas de arbustos; do outro lado, as fraldas do cerrado com suas árvores retorcidas e nanicas, de um verde pardo, triste, rodeado de macambira, em blocos, e forrado de capim de raiz, de folhas pontudas e ásperas, imitando vassoura com o cabo enterrado; entre o cerrado e a vereda, o capim rasteiro cobrindo a areia branca, parecia grama de castelo – limitada no tamanho pela rusticidade do campo. Aqui e acolá uma moita de quaresmeira com suas flores tristes. Nem trilha havia. Podia-se viajar sem rumo de chegar, apenas seguir a vereda em busca de algum rancho, pois, nos gerais, ali deveria se fixar o morador, perto da água e de algum canto de terra factível de plantar. Os animais seguiam no invariável viageiro, balançando-balançando e antenando as orelhas a captar sinais estranhos. Viajamos horas sem divisar um rancho ou sinal de gente, apenas o vôo das aves e, de quando em quando, o galope de assustados veados surpreendidos no limpo, em busca de capim macio e de água fresca no riacho. Soprava uma brisa fresca que agitava os flabelos dos buritis, arrancando a canção do cerrado. A! os buritis! Que exuberante era aquela vereda: buritis enormes querendo beijar o céu; outros médios e outros menorzinhos misturados a arbustos, a proteger a entrada da vereda; samambaia do brejo e avenca formando o vergel canteiro do cerrado. A pindaíba com seu tronco fino, igual um palito, subia, subia e lá bem no alto, abria a copa a modo de chapéu da vereda. Parecia impenetrável. Não era possível ver a água no meio daquele verdume, mas pela frescura e o chuá, dela se sabia ali. A vereda parecia uma cava no meio do cerrado – o carrasco na parte mais elevada, formando um leve declive, quase imperceptível, pois entre ele e a vereda se estendia uma campinazinha quase plana. Quando baixava o tédio ou a prosa encurtava, Chico ensaiava umas guarânias. Era muito agradável, pois ele tinha uma voz melodiosa, embora insistisse em cantar no castelhano que criara. Outras vezes, com seu espírito brincalhão, ele açoitava os animais dos companheiros, o que provocava um rápido galope – sem exagero para não cansar os animais, pois a jornada era imprevisível. Era divertido o galope pela campina – galope desajeitado, pois os muares não são bons de carreira, servem mesmo é para as longas viagens. Depois de horas corridas, encontramos sinal de morador. O que vimos foi chocante. Eu, Raimundo e Francisco éramos recém formados – professores. Na Escola estudamos e aprendemos muito sobre os problemas sociais do País e fomos preparados para promover meios de fixação do homem no campo. Naquela viagem o propósito era fazer um levantamento da situação dos moradores em terrenos da Escola, mais de doze mil alqueires e levar-lhes a primeira assistência. Assim pensávamos com orgulho incontido e boa-fé, apesar de que, embutido nos propósitos, estava o cadastramento de eleitores. A mim tocava o estudo agrário e o registro fotográfico – dos eleitores -; Francisco cuidava dos aspectos sanitários, levando remédios para resolver os problemas mais urgentes – vermífugos e sulfato ferroso e Raimundo colidia dados para relatório e fichas de inscrição de eleitores. No fundo, estávamos interessados no homem do campo. O que víamos, então, nos chocava muito. O que estava diante dos nossos olhos era grave e muito triste: uma pobre choupana encravada, à esquerda, na entrada do carrasco; a cobertura e os tapumes de palmas de buriti se confundiam com o mato. Uma coisinha de nada. Na frente um cercado de pau roliço sem expressão protegendo uma rocinha miserável de mandioca e milho. De doer o coração, os pezinhos raquíticos de mandioca, mal saindo do chão, os galhos tinham aspecto de bracinhos magros estendidos ao céu implorando piedade; os pés de milho, intercalados com os pés de mandioca, pareciam caniços ressequidos, espigas choças e pendões retorcidos. Tão rala a rocinha que nem cobria a terra branca, muito fraca, que nem capim conservava. Chico desceu da mula e chegou à entrada do rancho, um pequeno buraco, sem porta. Gritou muitas vezes “Oi de dentro! Oi de casa!”. Sem resposta. Então, devagar, ele entrou no rancho e saiu logo pois o espaço para ser visto era mínimo. “Não tem ninguém. Os moradores saíram e não tem tempo, pois o fogo está aceso”. Raimundo sugeriu, despercebidamente e sem questionar a saída dos moradores, o que mais tarde entenderíamos, “Vamos seguindo, na volta a gente confere”. Chico montou na mula e chegou-se ao grupo passando notícia: “Que pobreza, gente! O rancho é uma sala só Nem tem janela. É uma escuridão danada, lá dentro. Só dá para ver o brilho do fogo no jirau. Não tem nada, só palha de buriti no chão; nem um estrado ou rede. Vai vê que os moradores dormem no chão”. Raimundinho emendou: “Pobreza até de expediente, com tanto buriti aqui na frente...” Queria dizer que o morador poderia tecer esteiras, redes ou fazer estrados com colmos de buriti. Retornamos ao viageiro matutando o quadro desolador que vimos. Mais distante dali, de repente, Cesário estancou seu animal. Assuntou, olhando para a vereda. Puxou o animal até mais perto e de lá gritou: “Tem passagem aqui”. Ele se estancara perto de uma pequena enseada onde, mais adiante se via troncos de buriti estendidos de um lado ao outro da vereda, cortando o curso d´água, sobre o leito mais fundo. A extensão não chegava a trinta metros de margem a margem. Era sinal de travessia. “Vamos ganhar o outro lado”, aprontou o Chico. Não dava para ir com os animais. Vicente ficou escalado para tomar conta deles, estirando-se debaixo de uma cagaitera, o que ele gostou muito na sua indolência. A travessia obrigou que tirássemos as botas e com a água correndo pelo meio das canelas lá fomos equilibrando na pinguela. A água era bem corrente, muito clara e fresca. No fundo e agasalhada nos troncos dos buritis, pindaíbas e samambaias, via-se moitas de lodo esgarçados, fiapos dançando meio às plantinhas aquáticas. Os troncos eram estendidos ligados a monturos que se formavam na base dos buritis, preso no mato, com escoras de tocos. A uma certa altura da travessia Chico que não enxergava muito bem, reclamou “Nisso aqui não passa cachorro sem rabo”. No meio da vereda melhorou, eram dois troncos juntos cobrindo o vão sobre onde corria o grosso do riacho. Não era largo o vão, mas dava para perceber que não era raso, pela tonalidade da água que parecia mais escura não sendo possível enxergar o fundo. Esbarrei a travessia para apreciar o bonito balé das plantinhas aquáticas e do lodo na correnteza. Uma parte, esticando-se até ficar fininha querendo seguir viagem e aventurar no Urucuia e, quem sabe, no São Francisco. Pontinhas delgadas, serelepes – parecia gente, quando nova que só quer se atirar pelo mundo afora sem medir conseqüências. Aventura, só aventura. A outra parte, mais densa, firme, enroscada nas raízes dos buritis e samambaias, apenas dançando e retendo as pontinhas salientes, lembrando a sensatez dos mais velhos que sabem a vida. Travessia retomada. Nos barrancos o barro branco lavado, matéria orgânica superposta em centenas de anos e a água lambendo e lambendo tudo deixando, com o tempo, só as raízes, milhões de raízes sugando a vida da água, enquanto dançavam. Do outro lado, em terra firme, deparamos, num afastado da vereda, meio ao mato ralo, com a armação de um rancho – a terra ali era um pouco melhor se sabia pela natureza das árvores e a sua cor, mais chegada ao vermelho. Não era muita, pois a não muitos metros dali a areia branca brilhava, sinal de cerrado. A armação do rancho dava boa impressão, era coisa bem superior à choupana miserável que víramos, antes. Raimundinho, com seu gênio de construtor, falou que o serviço era bem feito, esticando em seus conhecimentos para que todos ouvissem. E sentenciou: “Esse rancho não é passageiro. Vejam a qualidade da madeira, é de primeira. E olhem como foi bem lavrada. O travamento também é bem feito, com os encaixes bem cortados e ajustados. O serviço é bom. É provável que as paredes venham ser de enchimento no lugar de palha de buriti". Nisso surgiram os donos do rancho: um homem branco, de estatura média, barba rala, cabelo aloirado caindo das bordas de um chapéu de palha. Ao seu lado uma mulher, também branca, muito bonita, de olhos claros, com os cabelos aloirados cobertos com um pano. Ela trazia, escanchada nos quadris, a modo do sertão, uma criancinha de mais ou menos dois anos, também muito bonita. Seu Cesário fez a apresentação: “O! seu moço, esses aqui são os professô do Guverno, lá da Conceição. Tão aqui pra proseá com os home da fazenda”. O homem tirou o chapéu e, polidamente, cumprimentou um por um da turma, dizendo chamar-se Antônio Santos. Chico adiantou-se dizendo que queria fazer um exame de saúde dele, da mulher e da criança, no que assentiu satisfeito. Enquanto Chico cuidava dos seus afazeres, eu e Raimundo fizemos nossa parte, inscrevendo mais um eleitor para o Brasil. Para nossa surpresa, ele sabia ler e escrever, vinha de lugar adiantado, de Pompéu, para tentar a vida no sertão, nas terras devolutas: “aqui nas terras abandonadas do Governo a gente pode possuir uma gleba e dar jeito na vida e com o tempo pode até criar um gadinho.” Aquela coragem nos causou boa impressão e espanto. Disposição e certo preparo ele demonstrara possuir, mas como vencer naquele lugar ermo, longe de tudo e, depois, as terras de cultura não eram muitas. Disposição não lhe faltava e coragem também, bastava ver que enquanto o
rancho era construído que ele já se fixara no local, dormindo com a mulher e filho debaixo de palhas de buriti armadas num jirau. Ele teria sua fazenda, sem dúvida. Concluído o atendimento do Chico, deixando remédios com os moradores, o grupo voltou à praça onde estavam os animais. A primeira família fora atendida e cadastrada. São Romão tinha mais dois eleitores e os professores mais uma história para contar, sem saber qual sentimento predominava em seus espíritos: a determinação daquele sertanejo ou o estado de miséria e abandono do interior do País. Aquela sobrevivência à margem do mundo civilizado, aquela vida minguada, sofrida e tristemente aceita com naturalidade. Um homem “civilizado” vivendo naquelas condições, numa situação inferior aos índios, pois não contavam sequer com um grupo social para dividir suas ansiedades ou alegrias e resolver suas necessidades básicas. Não fosse pela linguagem que herdaram e pelos trajes que cobriam seu corpo não seria exagero dizer que eles lembravam os trogloditas deixando as cavernas para formarem as primeiras famílias. A vereda perdeu a beleza tal a intensidade da sisudez dos professores com espírito atormentado. Vicente, assim que percebeu a chegada do grupo, erguendo os olhos por debaixo da aba do chapéu, brincou: “Quatro-presa mordeu ocês?” Ninguém respondeu e a caravana seguiu vereda acima - ainda havia muito chão para cobrir. A tristeza vem acompanhada da fome. O sol já estava quase a pino. Era hora do lanche. Encostamos-nos sob a sombra dos buritis e fomos à matula: rapadura, farinha e queijo. Feito o lanche, tomada a água fresca da vereda, barriga inchada, de novo no lombo dos animais e vereda acima, na caminhada. O cenário não mudou nada: a vereda, a campina e o carrasco; a mesma música do vento nos flabelos das palmeiras; os gritos estridentes de araras que não paravam de cortar o céu e o suave murmúrio do regato lambendo as plantinhas.


FILHOS PARA A GUERRA

O sol caminhava pelos três quartos quando chegamos a uma bifurcação da vereda. Não havíamos colocado atenção na natureza, ela mudara: o cerrado era mais fechado, as árvores menos tortas, destacando as imburanas, aroeiras, sucupiras e perobas, entre outras – não tão altas como as da beira de rio ou dos boqueirões – meio aos pequizeiros e cabeça-de-nego, agora mais concentrados. O terreno que se estendia na faixa entre as duas vertentes da vereda do Chico Velho era de mato fechado. Não era alto, mas um capão formoso e de verde luxuriante. Cesário que seguia na frente anunciou: “Nossa parada é aqui. É a propriedade de seu Venâncio”. Dizendo isto ele e o Raimundinho, atravessaram uma pinguela estendida sobre o riacho que cortava o braço da vereda. Era de pouca extensão. Ficaram por lá uns instantes e voltaram com cara de pouca animação. Raimundinho deu a notícia: “estamos sem sorte. Não tem ninguém em casa, mas tem jeito de gente. O terreiro está varridinho e tem galinha solta". O grupo, assim mesmo, seguiu em frente até esbarrar numa clareira, logo adiante, num capão que se estendia até à vereda. Lá no meio uma casa. Não era, como se via na região, um rancho de palha. Era uma casa de adobe, coberta de telha portuguesa, caiada, com portas e janelas de madeira; de um lado o curral de achas de aroeira, bem ajustadas e, do outro, uma cobertura que depois ficamos sabendo tratar-se da “oficina de farinha”; ao fundo, muitas fruteiras – laranja, abacate, limão da China, caju e moitas de bananeiras. Não faltavam as plantas medicinais – boldo, capim santo, malvão – e os temperos: coentro, salsinha, cebolinha e pés de urucum. Uma fazendinha bem arrumada para aquele fim de mundo. Talvez tivesse razão o Antônio que veio de Pompeu tentar, ali, a vida. Melhorou o ânimo. Passamos pela trunqueira de varejões, tendo o cuidado de recolocar as varas no mesmo local de onde tiramos. À porta da casa apeamos. Cesário chegou-se mais à frente e gritou alto: “Ei Dona Joana! Ei dona Joana, cadê vosmicê?” Silêncio absoluto. Cesário continuou insistindo até que depois de muito chamar apontou um rosto na janela entreaberta. Parecia ser de uma senhora de idade, pelas cãs embranquecidas. Uma voz quase apagada respondeu: “o qui qué ocêis?”. Cesário animou e respondeu forte: “Qui é, dona Joana, intão não se alembra de Cesário de Alzira?”, fazendo alusão a sua mulher, nascida naquelas bandas. “A Zirinha do cumpade Roxo?”, quis saber, ainda escondida, a velhinha. “Isso memo, dona Joana”, correu em responder Cesário. “A! intão é o Cesaro. E esse mangote de moço aí?” - perguntou a velhinha já mostrando o rosto de todo. “São os moço da Caio Martins, dona Joana”. “Do guverno?”, quis saber mais, dona Joana. “É isso memo, eles trabaiam pro guverno”, voltou o Cesário. A velhinha demorou um pouco na janela e depois sumiu. Suspense. Minutos depois abriu a porta e convidou Cesário para entrar. “E os outros?”, ele perguntou. “Adispois. Adispois”, ela falou de manso, sumindo com ele para o interior da casa. Passava o tempo e nada de voltarem. Diante disso, Vicente, conhecedor daquela gente, foi indagado sobre o que poderia estar acontecendo e ele, filósofo e monossilábico, como sempre, foi curto na resposta: “disconfiança!” “Desconfiança de quê, Vicente?”, perguntou o Chico. Novamente curto ele respondeu: “Ducêis”. Aumentou a perplexidade do grupo. Por que estaria a velhinha desconfiada da gente? Antes que a resposta chegasse, Cesário apontou na porta da casa. Ele vinha sério. “Que foi Cesário?”, a pergunta foi em coro. “Dona Jona tá com medo. Oiá, num tem ninguém em casa. Da outra casa do gaio da vereda, onde passamo, sumiu todo mundo tomém”. "Por que, Cesário?” perguntei-lhe. E a resposta foi surpreendente: “chegou aqui a notícia que tinha uns home do governo arrebanhando os home pra guerra...”. Raimundinho não esperou completar a sentença, “que guerra, Cesário?”. “A! A guerra, oxente! A guerra! O guverno pega os home e os rapaze pra i lutá na guerra pra mode acabá com os alemão!” “Mas Cesário, a guerra já acabou tem tempo, não tem mais guerra não, sô”, expliquei-lhe. Ele não se deu por satisfeito: “É, mais aqui o povo num sabe disso não. Tá tudo muito longe...” Fiquei perplexo, pois até o Cesário estava confuso, sem segurança. Tentei melhorar as coisas dizendo “Cesário, você conhece a Escola e a gente e sabe que não tem nada disso, não”. Ele se fez de entendido, mas desentendendo “Eu sei, mas é o povo que ta cismano”. Ficamos ali, trocando de idéia, conversando sobre a situação que não era nada boa, pois no avançado da hora a fome apertava, junto com o cansaço. Aí surgiu a idéia salvadora – mandar o Chico com seus remédios e lá foi ele em companhia do Cesário. Mais tempo passado, a fome aumentando... o jeito foi esticar o corpo debaixo de um enorme pau D´óleo e cochilar um pouco, dava para disfarçar. Tempo passado o Chico apareceu na soleira da porta, todo sorridente. “Tá resolvido”, gritou ele de longe, adivinhando nossa preocupação, “dona Joana já mandou prepará o almoço”. Foi a melhor notícia do dia. Depois, todos reunidos – nós e os moradores das duas casas que enfim apareceram, como por encanto - em torno de uma enorme mesa de sucupira, saboreamos um almoço dos mais gostosos. A conversa foi fácil. Todos falavam sem embaraço e com muito respeito. Chico, para convencer dona Joana e seu pessoal disse que todos nós éramos doutores. O que não deu foi fotografá-los e muito menos fazer a inscrição deles como eleitores. Perdeu, aí, São Romão, um mangote de eleitores.


OUTRAS VIAGENS

Depois da viagem à Vereda do Chico Velho acabei sendo designado para fazer, sozinho, o trabalho de cadastramento de eleitores. Corria o ano de 1958 era véspera de eleição para prefeito e deputado e, no caso, havia uma composição entre o candidato José da Palma, para prefeito de São Romão, e a primeira eleição do Cel. Almeida à Assembléia Legislativa do Estado. Era pois aceitável aquele trabalho a imaginar que nossa instituição precisava de um deputado para cuidar melhormente de seus interesses e, mais do que isto, pensar na política do menor em todo o Estado – Manoel Almeida, pelo trabalho até então realizado era dos mais indicados. Só não entendi porque fui eu o designado e por que não me deram a menor satisfação da escolha e da necessidade do trabalho. Fui designado e pronto. Uma máquina fotográfica Kapsa caixote, própria para fotografias 3x4 , alguns filmes, uma pasta com formulários para inscrição de eleitores e um pedaço de flanela vermelha para fazer fundo das fotografias. Mais nada, nem um tostão para me manter nas viagens. Quando as elas tinham como ponto de partida a fazenda Cabo Verde, o guia era um fazendeiro da fazenda Corrente, dali vizinha, Antônio Torres. Da sua casa ganhávamos o sertão mais distante: Maiad´alta, Confins, Brejo Verde, Vargem da Galinha, Mundo Novo e outros lugares cujos nomes saíram da minha mente. Se a viagem era para a região à direita do rio Conceição, o guia era João da Palma (1), pequeno proprietário que vivia na órbita de seu tio, José da Palma – Chalé, Buriti do Meio, Barra da Onça e tantos outros pontos do então imenso município de São Romão que fazia limite com João Pinheiro, Unaí, São Francisco e Arinos. Nas viagens mais curtas, na redondeza da Conceição tinha como guia o vaqueiro Zé Branco. Foram meses e mais meses no lombo de burros, mulas e cavalos, trocados a cada fim de semana, quando, então, podia estar na Conceição. Dessa jornada vou registrar apenas algumas passagens que ainda guardo na lembrança com carinho e uma ponta de mágoa.

l. Há dúvida quanto ao nome. Sempre o guardei como João, contudo
Geraldinho Palma diz ser outro, sem, porém, identificá-lo. Guardo-o
como João, como ficou na minha memória urucuiana.


POUSADA NO CORRENTE

Seis léguas, pelo vão e cinco léguas pelos gerais, era a distância que separava a Fazenda Conceição da Fazenda Cabo Verde, uma extensão do Núcleo com a sede plantada às margens do córrego Riacho Morto. Do outro lado, a poucos quilômetros ficava a fazenda Corrente de Antônio Torres, meu companheiro e guia de jornadas pelas regiões à margem esquerda do ribeirão da Conceição – era um vasto território. A sua fazenda era muito bonita - a sede tinha um largo à frente, onde sensatamente ele deixara muitas árvores nativas, madeira de lei: jatobás, pau d´arcos, aroeiras, sucupiras e frondosos tamboris. Ali sempre se via pastando, preguiçosamente, animais de primeira necessidade de uso, carneiros e cabras, meio a galinhas ciscadoras, perus barulhentos e cocás ariscas. No lombo dos animais, anus brancos beliscando carrapatos e nas copas das árvores os perigosos gaviões vigiando pintinho desgarrado para servir-lhe na fome. Uma bonita cerca de achas de aroeira rodeava a casa que era bem construída de tijolos, cobertas de telhas portuguesas e assoalhada – era das melhores da região. Acontecia, às vezes, de ali eu ter que fazer o pernoite, quando não dava para prosseguir viagem de volta à Conceição. Sentia muito prazer pela hospitalidade, dele e de sua esposa. Lembro-me que ele tinha filhos, mas guardo mais a lembrança de Socorro, uma bonita menina-moça que, mais tarde viria ser esposa do Chico Bandeirante, meu companheiro na primeira viagem pelo sertão, o Dr. Chico, salvaguarda dos doentes da região. A dormida era agradável, pois sempre precedida de um gostoso jantar, com a galinha caipira, cozida em fogão de lenha, entranhada de gostosos temperos da região: salsinha, coentro e urucum. Aquele caldo grosso misturado no arroz ou a modo de pirão, na farinha de mandioca tinha sabor especial. No mais era arroz e feijão, com esmerado tempero; ovo frito, sempre presente em todas as mesas, e mandioca. Depois de horas de agradável conversa, reunidos na sala à luz de lampião de querosene, o famoso Aladim, chegava a necessidade de descansar o corpo. O quarto onde eu dormia, sempre que ali pousava, era muito agradável, muito asseado: o catre de madeira, feito ali mesmo na fazenda, recebia um gostoso colchão de palha, bem alto, onde me afundava com toda satisfação, ouvindo o ranger das palhas a qualquer movimento; o lençol era de algodão grosso e a colcha de algodão colorido, tudo tecido na região. Mal dava para aproveitar aquelas delícias, pois depois de um dia de jornada cavalgando, o corpo ficava moído, os olhos pesados, não sobrando espaço para sonhar. O raiar do dia era precedido pela algazarra comum de galos, perus e vacas mugindo, um agradável e bucólico despertar. Leite ao pé da vaca, espumando e espumando a marcar em volta da boca e ponta do nariz. Depois um delicioso café com petas, brevidades e bolo de fubá com sabor de limão, tudo muito saboroso e fresco –as dádivas de dona Éster Vasconcelos, esposa do seu Antônio. Ao partir ficava a saudade sentida do pouso reparador e das amizades abraçadas.


SANTA CRUZ

O sol se debruçava por trás da serra da Conceição, quando, em companhia do Zé Branco, encostei-me na clareira onde, anualmente, no dia 1º de Maio, se realizava a festa da Santa Cruz. Era uma semana de romaria regional. Zé Branco me levou até à casa do seu Zé Pereira, o líder local - na verdade só podia ser ele mesmo, pois dele era a única casa ali existente, o resto, uns poucos ranchos, eram ocupados por seus parentes. Ficavam a casa e os ranchos do lado de um descampado, onde, no meio se erguia um enorme cruzeiro, pintado de azul, de braços abertos aos céus. Nos outros lados, fechando a praça, dezenas de barraquinhas cobertas de palhas de buriti. Passando próximo do cruzeiro percebia-se a existência de dezenas de pequenas cruzes – umas pintadas de branco, outras azuis, verdes e algumas uns toscos pedaços de madeira carcomida pelos anos. Fiquei curioso, pensando tratar-se de extremada devoção e, para tirar a dúvida, perguntei ao Zé Branco a razão de tantos cruzeirinhos. Seria devoção demais? Ele, com seu jeito de deboche, respondeu rindo: “Cada cruz é um defunto!”. “O quê?” Assustado estanquei o animal que me conduzia. Zé Branco foi mais explicativo: “Ora, depois de toda festa fica um bocado de cabra enterrado na praça; eles bebem muito e começam a arreliar. Cê sabe, vem a pexera e acaba com a conversa comprida”. Era véspera da festa, a função estava armada e já se sentia o fartum azedo da cachaça tomando conta do ar. Barraquinhas espalhadas, de todo tipo, servindo de pouso para os adoradores da cruz; uns menos prevenidos aproveitavam a mesa do carro de boi como cobertura – o chão ficava todo coberto, do barranco do Riacho Doce ao largo. Olhei espantado aquela movimentação e temi pelo meu trabalho de arregimentar eleitores. Sim, depois da histórica viagem à vereda do Chico Velho, onde percorremos as terras da Escola, com o propósito declarado de cadastrar os moradores, levar-lhes assistência e preparar um plano futuro de desenvolvimento, caímos na realidade, ou seja, para que servira a viagem – alistamento eleitoral. Assim, depois daquela viagem de “estudo”, continuei percorrendo o sertão. O Jonas e Flávio fizeram uma viagem – de carro – até Capão Redondo. Foi só. No pêlo do animal sobrou para mim por longos seis meses. Ali estava eu em busca de eleitores, numa ocasião boa, pois muitos estariam reunidos, pensaram os mentores da idéia. No fundo eles até tinham razão, pois a maior parte daqueles caboclos nem sabia o que era eleição e de governo só conheciam a polícia. Viviam eles longe do mundo. Eu era a ponta do verno meio àquela concentração "religiosa”. Chegamos à casa de seu Zé Pereira. Zé Branco, muito despachado foi logo gritando “Zé Pereira, ô bode veio! Chega home! Tem gente do guverno procê aqui!”. Foi a apresentação que tive com o dono da casa e chefe local. Zé Pereira era um mulato alto, magro, de carnes duras, caldeadas no trabalho do sertão. Beirava uns cinquenta anos – talvez não os tivesse, pois o sertanejo sempre mostra idade a mais. Jeito simples e afável. Ele cumprimentou Zé Branco, que apeara do cavalo Brinquedo, a moda do meio - um aperto de mão, um leve toque no ombro, com a mesma mão e, depois, outro aperto de mão. “Vamo adentrá, seu moço”, me disse sorrindo. “A casa é pobre mais agasaia todo mundo com prazê”. O sol acabara de se deitar lá para as bandas dos gerais, por cima da serra da Conceição. Os festeiros já rodeavam as barraquinhas aonde, aos poucos, iam sendo acesos os fifós e raros lampiões. Era um lusco-fusco só, mas quando a noite caiu de vez, avultara a claridade de dentro das barraquinhas e de fora com as dezenas de fogueiras e as centenas de velas em volta do cruzeiro. O burburinho também cresceu, subindo um vozerio que se esbarrava nas fraldas da serra, misturando-se às aroeiras e angicos centenários. Os homens iam lambiscando a cachaça com jurubeba, licor de pequi e raizadas para curar de tudo. Uns contavam causos da roça, de caçada, do trabalho e outros aproveitavam o tempo para catirar. As mulheres se dividiam. A maior parte puxava a reza e a cantoria em volta do cruzeiro – ladainha sem acabar -, outras se juntavam aos homens, molhando a goela. A reza seguia o ritual da região. Uma mulher puxava o terço, entremeado de cânticos ininteligíveis, ora em “latim”, ora em português local, tudo truncado e absolutamente incompreensível. Era um coro arrastado, de tonalidades variadas, cumprido e triste. Sugeria mais uma cantoria de vigília. Encostei-me na cerca frente à casa do meu anfitrião para apreciar um pouco daquela devoção que acabava misturada à algazarra dos homens espalhados pelas barraquinhas. Espichavam causos e catiras e, de quando
em quando, se ouvia um impropério rasgando na noite: “Ce topa nada, corno véio. Curixéo!” O outro respondia a mesma altura: “Quali quê, fio de uma pelada!” A catrumanada se agitava. De quando em quando subia uma onda de maior excitação. Num átimo abria-se uma roda. Silêncio mortal, até a ladainha parecia rezada de boca fechada. A seguir um alvoroço com todo o vigor das goelas molhadas de pinga. Chapéus eram brandidos no ar, batidos nas pernas ou no chão, levantando poeira. Explodia um coro incitador: “Pega ele, cumpade. Risca logo a pexera, cabra!”. A poeira cobria as fogueiras e invadia as barracas. A gritaria ora avultava, ora diminuía e a roda, do mesmo modo que formara se dissolvia, sem emoção ou explicação. O medo perpassou-me pelo corpo todo. Fiquei ali, de longe, imaginando em que me meteram, quando, de repente, percebi alguém chegando por minhas costas. Era o seu Zé Pereira. Foi bom, pois podia saber dele o que estava acontecendo. Ele falou sereno: “É entrevero de bebo, seu moço! Acaba logo. É como o vento na fogueira: se assopra, o fogo arteia; se abranda, ele serena”. Eu insisti, sem esconder meus medos: “Seu Zé, isso pode ser perigoso”. “Se o vento persisti assoprano pode sê que sim e aí a ponta da pexera aquieta o calor deles”. “E aí?” - quis saber... “Aí - concluiu o seu Zé Pereira, com o efeito de sentença de um juiz que com muitos anos de vivência como imperador daquela festa firmara jurisprudência – "é só enterrá o cabra que sussega tudo!”. Foi o suficiente para mim, ou melhor, mais do que suficiente. Deixei o local, muito ressabiado e fui me asilar na casa do seu Zé Pereira. Na sala armei minha rede de pano, esticada de viés, aproveitando os esteios de sustentação do telhado. Estendi o corpo, naquela posição incômoda como fosse um anzol – nunca me acostumei -, puxei a capa, tampando a cabeça e procurei cair no sono para não pensar no que estava acontecendo lá fora. Não sem razão: aquilo podia acabar em morte e, como servidor do Governo eu teria que tomar alguma atitude. Mas o quê poderia fazer? Não passava de um rapazote de 19 anos que nem barba tinha, nem um fio de bigode para dar respeito e o que era pior, não carregava, sequer, um mísero canivete. Se descobrissem minha fragilidade pouco iria adiantar dizer que era gente do Governo, o chapéu poderia bater para o meu lado. Era melhor ficar no meu canto e procurar dormir, mesmo com aquela zoeira infernal lá fora. Não levou tempo o meu abandono. Um violento safanão na rede me tirou do pretenso isolamento. Fiquei quieto, de olhos fechados, fingindo dormir. Aí percebi que puxaram a capa que me cobria a cabeça e uma voz fez o convite: “Ô companheiro, a festa tá boa. Vamo tomá uns gole e entrá na dança”. Continuei quieto, procurando não dar atenção ao convite tão “lisonjeiro” e, de soslaio, tentei ver de quem vinha o chamado. Tratava-se de um homem com mais ou menos 1,75 m, roxo, de bigode espesso, com chapéu de coro dobrado na testa. E pude ver mais: um enorme facão que ele trazia na cinta. Um calafrio percorreu-me a espinha. Fiquei gelado. Outro safanão na rede, esse demonstrando impaciência e raiva. “Ô Cabra, tô te chamano, num faz de surdo não. Vamo pra festa logo. Ninguém dorme aqui não”. Buscando forças e tentando aparentar tranquilidade, ergui levemente a cabeça e respondi: “Deixa pra amanhã, hoje estou cansado e com sono. Muito obrigado, amigo”. Mal acabei de falar e senti a mão forte e calosa do caboclo agarrando-me pelo colarinho e, na outra mão, o enorme facão, no ar, balançando na direção do meu pescoço e ele gritando: “Tô pedino não, cabra safado, tô mandano. Se levanta logo senão de pico no facão”. Se fosse para levantar seria impossível, pois sequer eu sentia as pernas, tudo bambo e frouxo. A divina Providência chegou na hora com o seu Zé Pereira que, vindo de trás segurou a mão do cabra, com firmeza e foi logo gritando para ele: “Home de Deus. Sabe lá cum quem cê tá bulino? Esse aí é dos minino do Coroné Almeda. Põe a mão nele que o Coroné manda cumê seu figo”. O caboclo largou-me o colarinho e se debandou sem deixar rastro. Perdeu a festa. Mais tarde fiquei sabendo ser ele colono da escola, seu nome era Ditinho, de quem, tempos depois, ganhei a amizade. Eu tomei direção diferente: tirei a rede dos esteios, dobrando-a junto com a capa e com tudo nas costas fui parar na cozinha, onde mulheres conversavam em volta do fogão – cuidavam do café. “As senhoras não se preocupem comigo, não, faz de conta que nem estou aqui” – falei e estendi a rede num canto, onde me deitei. Ali, longe da confusão acabei caindo no sono. Cedinho acordei com o burburinho na cozinha. Nem percebi que as mulheres já estavam começando o dia, imaginando que ainda era noite e que elas estavam, ainda a prosear, o que me desagradou, ainda com sono. Refeito o engano pus-me de pé e fui passar água no rosto. Meu corpo tinha o cheiro da fumaça desprendida do fogão e as narinas entupidas de fuligem de querosene, tanto era a impregnação resultada da noite na cozinha. Tomei um caneco de café e fui sorver a fresca no terreiro, onde o barulho era terrível, tendo ao fundo urros de jegues, martelando as horas, e o fuá de resto de festa. Logo-logo me encontrei com Zé Branco que parecia não ter fechado os olhos durante a noite, pela vermelhidão que eles apresentavam. Encostamos-nos na cerca de varejão. Ao longe, questão de uns vinte metros, um mangote de homens estava às turras e não levou quase nada e eles já estavam arreliando perto de onde eu me encontrava. No meio deles Avelino Baiano, um sertanejo daqueles que fazem lembrar o cerne de aroeira – fino, rígido, capaz de derrubar touro com a unha -, estava metido numa discussão com Zé Braga, um rapaz magro, coxé – o pé dobrado -, o que o obrigava a andar manquitolando. Em razão da deficiência, era ele um dos cabras mais arrelientos e briguentos da região, contumaz comprador de confusão. Andava sempre com uma garrucha e um punhal afiado presos na cintura. Assim ele se impunha respeito, suprindo o que seu físico não inspirava. Não tinha medo de cabra nenhum, muito menos de morrer. Avelino era agregado da Escola. Tinha lá uma glebazinha onde levantou sua palhoça – plantava sua rocinha e trabalhava como serrador de madeira para a Escola e o povo da região, com seu amigo João Baiano. Valentia era o que não lhe faltava, inda mais quando animado pela cachaça. Mas era um homem respeitador de autoridade. Mudara muito em razão da convivência com os “professô” da Escola. Por isso, à minha vista, ele se aquietou querendo demonstrar que não estava brigando. Percebendo a situação o chamei de imediato. Ele veio e se apoleirou ao meu lado e de Zé Branco, na cerca. Zé Braga também se arrefeceu e chegou a se afastar com o seu grupo. Vendo a situação favorável resolvi acalmar Avelino que estava indignado com os insultos que recebera. Disse-lhe que o Braga era um criador de caso, um arruaceiro e que não merecia atenção. Avelino estava relutante: “Magina seu minino, esse cabra da peste inté provocou minha véia. Isso num compete a home inguli”. Tentei amainá-lo, ensaiando um sermão: “Avelino, você precisa ter calma, homem. Pense na sua mulher, nos seus filhos e na sua roça". Lembrei-me, na hora, do respeito que os moradores da escola tinham pelo Cel. Almeida e emendei – "Olha, o Cel. Almeida não vai gostar dessas coisas com o pessoal que vive na Conceição”. Avelino engoliu, meneando levemente a cabeça. Aproveitei da situação para o exercício de conselheiro espiritual: “E depois, Avelino, o que você veio fazer aqui? Não foi rezar?” Eu sabia que não era nada de reza. Os homens iam àquela festa só para se divertirem, ou seja, tomar cachaça até não mais aguentar e aprontar confusão. Avelino se fez de inocente: “É memo. Vim pagá premessa.” “Pois então - aproveitei a deixa -, cadê o seu espírito de cristão?”. Jesus não ensinou que quando alguém te bater numa face você tem que oferecer a outra para ele bater de novo?”. Avelino podia não estar muito convencido, mas aceitou a pregação e já mostrava intenção de ir para casa. Nisso o grupinho de Zé Braga se aproximou novamente do local onde nos encontrávamos. Zé Braga veio no meio. Nenhuma palavra, de sorrate. Foi chegando e de chofre desferiu um violento soco na cara de Avelino. Na mesma hora o sangue espirrou pelo talho fundo que se abriu no local atingido. Avelino balançou na cerca e quase tombou de costas. Percebi que o sangue esguichara mais pela raiva que lhe subira à cabeça; sua cara parecia ferro caldeado, os lábios tremiam e os olhos se apuraram como uma fera na hora do ataque sobre a presa. Tudo ficou por conta do dito pelo não dito. Como um felino ele saltou sobre Zé Braga. Eram tantos socos e pernadas que o grupo teve que abrir a roda. A fúria do Avelino era tanta que Zé Braga se assombrou – assim que se viu livre das braçadas saiu correndo pelo campo, aos saltos, pois nem dava para por os pés no chão, esquecendo-se da garrucha e do punhal. À distância, refeito do susto e livre da fera em que se transformara o Avelino, ele sacou da garrucha e deu dois tiros no rumo do grupo. Não alvejou ninguém. Antes que ele recarregasse a garrucha, corri para o interior da casa de Zé Pereira, passei a mão na minha traia e, saindo pelos fundos, meti os pés na estrada deixando para trás a mula Ruana e Zé Branco. Mais tarde, depois de um bom trecho andado, Zé Branco me alcançou, dando a notícia que não encontrara minha montaria: “De certo que ela se livrou da peia e vortô pra Conceição”. Era factível, pois aquele mundão era solto, sem cercas. Retruquei seco: “Faz mal, não, vô a pé”. Zé Branco insistiu: “Mais é longe e ocê num tirou retrato do povo. E os título?” Lembrei ao meu amigo: “Morto eu não vou fazer título nem aqui e nem em lugar algum”. Zé Branco vendo a minha decisão aprumou o Brinquedo para dentro da campina e logo depois voltou trazendo um cavalo branco troncho, cheia de pisaduras que dava dó de arrear. Contrafeito pulei no pobre animal imaginando a chacota de que seria alvo quando chegasse à Escola. Não tirei retrato naquela viagem em Santa Cruz. Depois dessa, nunca voltei a qualquer local para aproveitar a aglomeração em dia de festa, não importando o santo.


A DEFUNTA

Numa viagem ao Cabo Verde, fazendo o percurso pelo vão do ribeirão da Conceição, cortando matas escuras e repetidas planícies, a certa altura, no Poço Verde, deparei-me com um mangote de pessoas nas beiradas de um rancho à entrada de um capão. Tangi o burro Avião para lá. “Apeia, sô moço. Quale é a honra da visita?”- receberam-me com a atenção cordial comum ao urucuiano. Expliquei, sem rodeios, que estava tirando títulos de eleitor. “Oia, seu moço, tamo aqui na vigia da minha vó Bastiana. Tudo aqui é parente dela. Se vosmicê qué tirá retrate da gente tem de tira dela premero”. Não me fiz de rogado, o número de pessoas não era pequeno, fazendo inscrição deles, ali reunidos, iria me poupar tempo e outras viagens. Entrei na pequena choupana de palha encontrando o corpo hirto da velha, estendido num banco, coberto com uma mortalha roxa e com a cintura cingida pelo cordão de São Francisco, traçado de algodão, uma tradição local – o salvo-conduto para uma boa e garantida passagem. Respeitosamente bati umas três fotografias. Depois, fotografei mais de vinte novos eleitores. Ganhei muitos dias de trabalho. Passado algum tempo, depois daquela viagem, colhi o fruto daquela bondade: o juiz eleitoral de Pirapora daquela jurisdição, ao ver as fotografias da defunta que, certamente, mostrara-lhe um zeloso e indignado escrivão, fez veemente reclamação ao Cel. Almeida que, por sua vez, soltou os cachorros para cima de mim, todos achando que eu estava de brincadeiras com a justiça. Tempos depois imaginei porque tanta indignação conhecendo o velho costume regional: o de defunto votar. É factível terem entendido que eu estava fazendo uma crítica ao sistema. Indignação por indignação maior foi a minha porque agira sem nenhuma maldade, fora apenas levado por um sentimento bom. Por que não simulei que tirava as fotografias da defunta? Quem iria saber? Faltou-me uma pontinha de hipocrisia tão comum a certos políticos. Achei que não podia enganar aquela pobre gente e muito menos à dona Sebastiana que, lá no outro mundo, poderia me cobrar o engodo. Quem poderia garantir que não? Mistérios são mistérios e, lá no sertão, muito mais do que lenda, a crença quase sempre vai além da realidade. É outro mundo.


ELEITOR NO TOCO

Correndo de rancho em rancho, numa região chamada de Maiad´alta, depois de Poleiro de Pato, rodeando a lagoa das Almas, quase confronte ao Porto de Manga, chegamos, eu e Antônio Torres, a uma tapera encravada num canto de mata fechada. Aos gritos do Torres, acudiu uma mulher com um bacuri pendurado no quadril. Ressabiada, de longe, ela deixou escapulir um tímido “inhô sim!” Perguntada pelo dono do rancho, num gesto preguiçoso, apontou na direção da mata dizendo: “Tá lá na roça”. Pegamos o trecho, passando entre tocos, e, logo-logo, ouvimos pancadas ritmadas de um machado – deparamos, então, com um caboclo lavrando uma tora de aroeira. “Bons dias! A cuma vai?” – anunciou Torres. “Vô levano e vosmicê? – retornou ele. Apresentações feitas falei do propósito da visita e perguntei se ele sabia assinar o nome. “Male-male”, respondeu. Para mim era o bastante e ali mesmo preenchi o formulário que ele assinou com dificuldades em cima de um toco. Veio a foto. O Torres tomou a flanela vermelha estendendo-a como pano de fundo, o caboclo, na frente, sentado num toco. Ao enfocá-lo percebi que estava com os braços cruzados o que me levou a colocá-lo na posição certa, com os braços estendidos, mas ele insistia em ficar com os braços cruzados e não cedia. Quis saber o porquê da teimosia e ele, simplório, porém honesto, respondeu, mostrando o relógio no pulso: “seu moço, comprei esse reloginho istrudia, na Serra (alusão à Vila de Serra das Araras, famosa romaria de Santo Antônio, em São Francisco) e vai sê o meu primeiro retrate com ele. Se num fô assim, num tiro não”. Mais uma confusão para o juiz arrepiar, pensei. “Tá bom, amigo, mas vamos tirar duas fotos, uma com o relógio e outra sem ele. Tá bom?” Ele concordou. Pensei em forjar uma das fotos deixando apenas a que interessava à Justiça Eleitoral. Embora nunca fosse ver aquela fotografia, fui honesto com ele, registrando-o, num sorriso aberto, todo feliz, mostrando o relógio apertado junto ao peito. O juiz que se dane. Cliquei-o em sua satisfação. Aquela linda fotografia, nos cafundós do Urucuia, deve ter passado ao largo de um zeloso escrivão eleitoral, pelo que presumo, pois não me chegou nenhuma reclamação, depois. Quem sabe poderia estar no título do caboclo a foto mostrando o relógio. Quem sabe?


ANIVERSÁRIO

Na manhã de 5 de maio de 1958, ao lado de João da Palma, depois de ter passado pelo Chalé, eu estava a caminho de uma região bem distante: Buriti Alto. Quando o João falou que iríamos passar pelo Chalé, fiquei entusiasmado, eu gostava do nome, pois, menino, na minha Patrocínio, lembrava, chalé era casa bonita, muito imponente e bem pintada. Pensava então em ver um bonito chalé enfeitando uma grande fazenda, com muitas fruteiras e tudo pintadinho de bonito. Decepção: de chalé só tinha o nome; era uma terra nua, despontando por toda extensão o tauá, de pouco capim e pobre até de pau torto do cerrado. Seguindo a trilha numa região inóspita, nenhuma árvore para alegrar a paisagem, só capim de raiz, assim mesmo ralo, sem mesmo cobrir o vermelho do tauá que se soltava em forma de torrãozinhos na batida dos cascos dos animais no seu viageiro gostoso. Matutava comigo: “onde vim passar os meus dezenove anos, meu Deus! Fechei-me nos pensamentos para dar um pouco de alegria ao coração esalentado. Voei à Esmeraldas, pensando em Vilma, uma menina de franjinhas cobrindo a testa, de sorriso meigo e doce, que guardava com carinho, tendo-a no meu coração sem saber, naquele fim de mundo e sem qualquer notícia, se ela, ainda, me aninhava no dela. O sol subindo, nenhum ranchinho era visto. O dia passou e nada, a nossa comida foi à base de bolacha e água. Tardinha chegando encostamos numa vendinha encravada, segundo João Palma, na ponta do município de São Romão, fazendo divisas com os municípios de João Pinheiro e Unaí. Ela ficava num pé de serra, com uma grota funda logo depois do terreiro – era o ponto das divisas. Lembrei-me do aniversário. Desci do burro e, à moda do Oeste, bati no balcão e pedi ao vendeiro: “Seu moço, ponha aí uma dose de Martini”. Não tinha, bebi pinga mesmo. A danada sapecou-me os interiores, mas me deu ânimo instantâneo, mais ainda quando foi sendo redobrada. Esqueci do próprio aniversário, nada dizendo, inclusive ao companheiro de viagem. O vendeiro já era eleitor, por isso devíamos caminhar mais um pouco, aproveitando ainda o lusco-fusco para chegar à localidade de Buriti do Meio. Breve seria noite. Dia acabado chegamos a uma casinha até bem aparentada, erguida num alto, ponta de cerrado e entrada de capão. João apeou e conversou com o dono da casa que nos recebeu com alegria. A casa tinha uma varanda muito simples, mas bonita, coberta de telhas portuguesas. Conheci só a sala que era oblonga, toda atijolada (coisa rara na região), ornamentada com muitos bancos, dispostos de um lado e de outro, encostados na parede – sem mesas. Ali nos abancamos e nos colocamos a prosear já dentro da noite. A certa altura senti um grande prazer: ouvi o movimentar de pratos e arrastar de panelas no rumo que presumi ser a cozinha. Com a fome que estava, o dia todo passado a bolacha, jantar seria o meu presente de aniversário. Algumas pessoas da casa estavam ali na sala, proseando, só não vira a dona da casa – melhor – pensei -, deve estar cuidando da comida. Conversa vai e conversa vem - saem rapazes, chegam as moças. Conversa vai, conversa vem – sai o dono da casa, vem a dona que vi pela primeira vez. Vem chamar para a janta, lá pertinho do fogão, das panelas fumegantes – pensei. Chegou e abancou e prosseguiu na prosa. Voltou o dono da casa e tome prosa. De repente, ele se levantou e deu o “boas-noites”, colocando a sala a nossa disposição para pernoitar: “Vosmicês se ajeitam aqui. O Senhor guarde vosmicês!”. Que me lembre, dos boas-noites que recebi foi o mais choco e desolador. Meus dezenove anos comemorados sozinho, à bolacha e água, e com um imenso buraco na barriga, roncando forte pedindo comida sem entender o que se passava no mundo exterior. Não era essa a hospitalidade comum do urucuiano que, se nada tivesse, dividia a rapadura. Aquele homem era forante, sem dúvida, e miserável, pois pobreza não era, em vista de sua casa.


A REDE

Num lugar no fundo do Urucuia, onde pouca gente pisara, transmontando Novo Mundo e Confins, cortando a serra do Constantino, chegamos numa tarde, eu e Antônio Torres. Atravessado um trecho de vaqueta, por uma estradinha tortuosa, deparamos com um ranchinho muito humilde encravado quase à entrada de uma mata na orla de um córrego, creio ser o Confins. Na frente do rancho um pequeno espraiado até à mata e, no aberto próximo, vicejava o bengo. O dono nos recebeu com gentilezas, mas sem muito entusiasmo, pois sua moradia muito humilde mal cabia os seus. Proseamos na entrada do rancho depois de pear os animais e soltá-los no bengo, usando as artimanhas que a situação exigia: não havia cercas e, mesmo peado, o burro que é muito treitero é capaz de safar-se, indo para bem longe, dando pequenos pulos durante a noite, diferentemente do gado vacum que, por costume não anda, amaia para ruminar – a peia, então tinha de ser cruzada, isto é, uma pata dianteira presa pela peia de couro a uma pata traseira, inversa, o que o impedia de pular. O ranchinho, ainda que humilde tinha uma pequena varanda, como de costume na região. Era estreitinha, quase nada, com varões subindo para segurar as travas onde desciam as palhas de buriti da cobertura. Escurecia e assim não teríamos função. Os donos da casa se recolheram cedo - de falta do querosene para os fifós -, mas nos deixaram à vontade no uso da varanda para o pernoite que no rancho não cabia mais ninguém. Penduramos as redes, amarradas nos esqueléticos esteios. A lua se mostrou bonita e de toda cheia no céu, clareando o pequeno terreiro à frente do rancho. Espichado na rede não levou tempo para que eu sentisse aquela sensação de apertamento: na rede de buriti, muito estreita, mal cabia o meu corpo e, com isso, as bordas pareciam entrar na minha carne. Com o tempo ela se transformava numa prensa, apertando, apertando e apertando os ombros até provocar uma dor lancinante. A espinha, dobrada como um anzol, fuzilava de dor – não tinha ainda me acostumado com aquele tipo de dormida tão comum na região, principalmente aos nordestinos que dispensavam as camas. Não dava para suportar tanta dor e, então, desarmei a rede e a estendi no chão, tomando a enxerga como travesseiro.
Foi um alívio estirar o corpo no chão: correu-me uma sensação agradável pelo corpo inteiro e me pareceu estar num leito de penas. Incomodava o fortum desprendido da enxerga, encharcada pelo suor da mula, meu travesseiro. Fiquei ali matutando coisas da vida até o sono chegar, tanta coisa me passava pela cabeça, muitas trazendo boas lembranças para sossegar o espírito naquele abandono. De repente, virando o rosto, percebi pequenas sombras rastejando no terreiro de um lado para o outro. Dei de reparar melhor aquele balé sombrio até que uma sombra rastejou para o meu leito de penas. Pus-me ligeiro de pé e risquei um fósforo com luz suficiente para descobrir bem perto de mim uma enorme aranha-carangangeira, com as patas peludas, e as antenas levantadas acima do seu corpo redondo, peludo e negro. Embora nunca tivesse conhecimento de alguém que morrera com sua picada, sabia-a ser muito perigosa, terrivelmente venosa, todos a temiam muito – acredito que seja pelo aspecto repelente. Foi a conta: armei, outra vez, a rede no esteio, voltando à prensa. Uma noite sem pregar os olhos. De manhã, Antônio Torres acordou esfregando preguiçosamente os olhos, depois de uma noite bem dormida. De meu lado, eu todo moído, olhos ardidos e uma caixa de fósforos vazia.


A ONÇA

Voltando de um itinerário, pelo Corrente, resolvi enfrentar os gerais ao invés de ganhar a estrada entre a Serra e ribeirão da Conceição, caminho mais longo, porém com mais moradias e trânsito de cavaleiros. Os gerais tinham a alegria das veredas inúmeras enfeitando o sertão com suas campinas que pareciam um lago verde. Havia sobra de dia, o suficiente para alcançar a Conceição, vencendo o estirão de cinco léguas. Trotando o tempo parecia não passar e a paisagem se repetia diante dos meus olhos agradecidos: o céu profundo pontilhado de nuvens brancas deslizando de manso na vastidão azul, às vezes cobrindo sol para refresco do viajante bafejado pelos beijos da fresca brisa dos campos altos; as pequenas árvores retorcidas que eram contornadas por trilhas de areia branca meio ao capim de raiz misturado com barba-de-bode sulcados pelas patas do gado de solta, perdido naquela vastidão, sem agrado de sal, o que buscava em algum barreiro. Caminhava-se horas e horas sem encontro de uma viva alma. Só, com os pensamentos e os bichos passageiros, incomodados ou fugitivos de algum predador. Um tempo eu gastava assobiando, outro cantando, revivendo os sucessos da Rádio Nacional: Dalva de Oliveira, Caubi Peixoto, Rogéria (minha musa com sua interpretação de Luzes da Ribalta e Unchainaid Melody), Trio Nagô (Prece ao Vento) e os boleros de Bievenido Granda, Roberto Yanez e Lucho Gatica. Outro tempo era deixado para os cismejos. No meio do caminho encontrei um cavaleiro. Coisa rara. Vinha ele na mesma trilha, torto na sela com apoio em um dos estribos com a outra perna mais erguida – certamente, como de costume na região, dava descanso para um dos quartos do traseiro que, em viagem longa chegava ficar dormente. Num instantinho de prosa ele me contou uma novidade: “Cê ficou sabeno qui uma onça pulô no Totonho na Pedra da Emboscada? (A Pedra da Emboscada ficava na descida da Serra da Conceição: um corredor estreito, de, no muito, dez metros de extensão que se estendia entre duas enormes pedras, de modo que, do alto, quem quisesse acompanhava, em posição privilegiada, todo cavaleiro que por ali passasse. Conta a história local – o que foi registrado no memorável livro de Manoel Ambrósio, “A Ermida do Planalto” – que Joaquina, famigerada e perversa matriarca dona da fazenda Conceição, comprava todo gado que lhe era oferecido. Não regateava no preço e até fazia muitos agrados ao boaideiro, oferecendo-lhe lauto jantar e dormida de rei. No outro dia, no seu regresso com o alforje cheio de dinheiro, ele era esperado por dois jagunços dela na pedra, de emboscada armada pela Joaquina. O dinheiro voltava para o seu baú e o gado ia para o pasto ganhar carnes). “Sabia não” – respondi sem denotar qualquer emoção. Ele emendou: “Apois pulou memo. Ele se sarvô por poco e contam que ela ainda tá praquelas banda, entre a vereda do Tião Ema e a descida da serra”. Notícia dada, depois do “inté”, ele seguiu seu caminho e eu o meu, querendo voltar para o Corrente, pois de arma só tinha os meus braços e se outra tivesse não iria fazer nenhuma diferença. Voltar, no entanto, seria desastroso, se a notícia de que eu fugira com medo de onça corresse o sertão - eu perderia todo respeito junto aos urucuianos. E se fosse boato? Aí seria pior retroceder. O jeito foi prosseguir. Juntei o Avião nas esporas, o que ele respondeu com desagrado, dando um coice e, saindo do viageiro para o trote, pipocando os ares retidos. Pior para o meu corpo, mas eu precisava chegar com luz do dia na descida da serra. Além de cantar, assobiar e cismar eu tinha, depois da notícia, mais coisa a ocupar o pensamento: a onça. O tempo nunca me preocupou e, nas minhas andanças ele parecia nunca ter escorrido com pressa, era sempre preguiçoso. Naquele dia não, depois da notícia recebida ele escorregava no céu com vontade doida de deitar-se no poente. Eu estava perdendo a corrida. Quando cheguei à altura do rancho do Tião Ema, entrando no limite do território da aparição da onça, lusco-fusco ganhara a natureza. Não dava para chegar à Pedra da Emboscada com uma réstia de luz sequer. “É hoje que vou visitar o seu Tião”, pensei comigo. Ele me tinha muita consideração porque o filho dele, Gaspar, estudava na escola, sendo dos primeiros alunos internos, e era muito meu amigo. Dobrei o Avião para a trilha do seu rancho; ele negaceou já pressentindo a chegada de seus pastos. Foi na espora, aquele queixo duro. Da entrada do pequeno curral gritei: “Ô seu Tião, é o João Naves, amigo”. Lá de dentro ele respondeu: “Jonávio? Apois se achega meu amigo, o rancho é seu” e, saindo para o terreiro, recebeu-me com um abraço. Dona Maria, mulher de Tião me esperava à entrada do rancho com um largo sorriso de satisfação. Sem pressa sentei-me num banco de jatobá, já liso pelo uso de muitos anos. Ali ficamos a prosear enquanto dona Maria fora preparar o café, saboreado, depois, com beju. Conversamos um bom bocado até sair a história da onça. Mostrei-me surpreendido: “ora, onça aqui nesses altos, seu Tião? Num tá fora de lugar?” Ele retrucou manso: “Pois havera de sê, seu minino. Num é de comum, mais tem quadra que aparece umas pra pegá bezerrinho desgarrado”. Assenti com a cabeça, no que ele emendou: só num é do feitio dela atacá os home, pois é vermeia a cuma falou o Tonho, vermeia do lombo preto". Aí mostrei-me surpreso: “Atacou mesmo, seu Tião?”. Ele confirmou sereno e muito sério: “Atacou, seu minino. Atacou o fortunado do Tonho e por um naquinho de nada ele tinha ido pru o beleléu. Conta ele que inhantes do sarto da mardita o burro se assustou e deu um pinote para frente, no que ele gritou e saiu de carreira. A bicha tomém assustô e fugiu”. Foi a entrada para eu jogar a minha coragem: “Sô Tião, estou com um problema, sô. Não tenho nenhuma arma para espantar a bicha se ela também engraçar para o meu lado. O senhor tem aí uma cartucheira para me emprestar?”. Desolado ele respondeu: “Tenho não, seu minino; a minha porverinha tá imperrada, mas se o sinhô quisé te faço companhia inté na descida da serra”. Mostrei-me forte e corajoso: “Carece não, seu Tião, vai ser trabalho para o senhor”. Ele quase se mostrou ofendido ao responder: “Qui trabaio é esse prum amigo? Vamo lá, levo o sinhô com todo prazere, pois pode tê pirigo". Partimos, depois de despedir-me de dona Maria. Os poucos quilômetros até à descida foram vencidos com muita prosa, de minha parte falando bem alto com o propósito de espantar a onça caso ela rondasse por perto. Chegando à Pedra da Emboscada nos despedimos e mal esperei que ele virasse o burro para voltar ao seu rancho para que soltasse as rédeas do Avião e o chamasse nas esporas. Nem carecia, ele já estava mesmo decidido a chegar em casa e se ver solto no pasto; na desatinada carreira ele justificou o nome, voou serra abaixo. Passamos de galope em frente à casa de Zezinho Cearense, no pé da serra, foi como vento da noite – pressentiram, mas nada viram. Lembro-me até hoje: não olhei uma vez, sozinha, para trás.


OLHOS VERDES

Um dia aconteceu: encontrei a mulher dos olhos verdes, mas não era morena e nem surgira de uma vereda tropical. Foi numa viagem a uma região próxima ao Núcleo, nas dobras da serra do outro lado do rio, entre a fazenda Boa Vista dos Palmas e São Joaquim, onde corria o nome de um grande fazendeiro de Patos de Minas que só conhecia pelo nome: Dr. Osmar. Um lugar perto, mas isolado. Chegava-se lá por um trilha cavaleira, sem espaço para passagem de carro de boi. Descendo e subindo as dobras da serra, de repente, deparamos com um boqueirão coberto de grandes árvores, mata fechada e dele, no pé da serra para o rio, estendia-se uma bonita vazante. Numa clareira, à entrada da mata, deparamos com três ranchos sombreados pelas aroeiras e paus d´óleo. Esbarramos numa praça de lavra de madeira, onde dois homens riscavam o machado em troncos de aroeira, tirando peças bem alinhadas. João da Palma fez os cumprimentos e ficamos ali a conversar como preparativo para as fotos e o preenchimento do formulário do título eleitoral. Nisso saiu, de um dos ranchos, uma mulher com uma criancinha no colo. Fui pego de surpresa, pois ela era muito bonita, muito linda mesmo: branca, com cachos de cabelo loiro caindo do lenço que lhe cobria a cabeça, envolvendo o pescoço delgado, gracioso, branco como marfim, e escorrendo-se em fios balançantes, pelo espinhaço abaixo; tinha um corpo fino, admiravelmente bem feito, envolto por uma saia comprida. Não sei porque me veio à memória a imagem de uma cigana deslizando-deslizando como se bailasse no ar. Aproximou-se mais e ficou nos assuntando. Foi como feitiço de cobra: não conseguia tirar os meus olhos dos imensos olhos verdes dela que com simplicidade e ingenuidade não os desviava de mim. Senti o rubor tomar conta da face. Não era para menos, meses a fio sem ver uma mulher bonita, sem se encontrar com uma moça, sem namorar, só podia disparar, em galope de potro bravo, o coração. E mais: era a mulher dos olhos verdes, inda que não fosse morena como as que nos foram plantadas na mente (e no coração, cheio de fantasias) anos a fio. Seu nome não guardei, embora ela tenha sido inscrita como eleitora, mas foi melhor assim, pois ficou como a mulher dos olhos verdes. Fiquei triste, quando encerrada a função, não havendo mais motivo para demora naquela praça, tivemos que partir. Foi a única mulher dos olhos verdes que vi no Urucuia... em mim ela ficou como um sonho.


MENINO PRODÍGIO

Vencida a serra da Boa Vista, tomando a estrada que ligava o Núcleo a São Romão, depois de quilômetros cavalgados, cheguei à casa de João da Palma para mais um giro na região adjacente. Dali, embocamos mais nos gerais, em sentido inverso à estrada real. Descendo uma leve inclinação, pelo tope da serra, chegando a um bonito capão, anúncio das matas das boicanas. Cresciam ali, frondosos tinguizeiros, são-gonçalos, cagaiteiras, cabeças-de-negro, tudo em maior profusão que meio aos paus tortos deixados para trás. Espalhados, pés de buritis ensaiando ser vereda, mas solitários na bonita campina coberta de capim barba-de-bode - fino e redondo, imitando capim de colchão - e moitas de arbustos floridos – quaresmeira e murici. Descendo mais destampou-nos à frente um rancho, entre a campina e o capão, de frente para estrada cavaleira, com um imenso terreiro batido, muito limpo, mostrando a terra branca do cerrado, mais firme, porém. O rancho era misto de casa, pois tinha as paredes de enchimento, rebocadas e caiadas, com janelas e portas de madeira; só a cobertura era de palha de buriti, mas muito bem assentada e aparelhada nas pontas, como um corte de franja. O dono do rancho era amigo de João da Palma, o que facilitou o nosso trabalho, sobrando tempo para um dedo de prosa, ele contando sua vida ali naquele ermo, mas levando: uma rocinha de milho, arroz e feijão, no boqueirão; gadinho pouco na solta e algumas vacas para o leite, mantidas num cercado com pouco pasto, tratadas mais com cana e palha de milho. Durante a nossa conversa percebi um garotinho brincando com carrinhos no terreiro. Observando melhor vi que eles não eram de sabugo, eram mais trabalhados. Ele absorto, carregando areia branca e sonhos na carroçaria do seu caminhãozinho, fazendo curvas, ultrapassando montes de terra e zoando nas retas. Reparei melhor no brinquedo: o caminhãozinho era feito de colmos de buriti. Uma perfeição: cabina com volante, câmbio, pedais e assentos; carroçaria, rodas dianteiras simples e traseiras duplas. Um detalhe me chamou a atenção, quando o peguei para olhar mais de perto, bem junto aos olhos: ele tinha diferencial e, incrível, como nos caminhões verdadeiros, com o bojo deslocado do centro. A descoberta me deixou estupefato, mas não foi tudo. De um lado, outro brinquedo - um avião monoplano, chegado a um teco-teco. Tão bem construído, com janelinhas, manche, asas proporcionais ao tamanho do avião e, êpa!, um detalhe curioso que chegou a tirar-me o fôlego: ele tinha o seguimento do leme, a parte anterior da cauda ligeiramente inclinada para um lado, como os aviões de hélice. Um detalhe curioso que antes me chamara atenção e que fora esclarecido pelo Capitão Pedrinho, piloto do “Anjo Verde”, o Piper da Escola – era para o avião não rodar como parafuso quando a hélice soprasse o vento para trás. Como aquilo poderia ser verdade! Delicadamente perguntei ao garotinho quem lhe fizera aqueles brinquedos e ele, inocente, respondeu com satisfação: “Eu mesmo fiz eles. Faço tudo de buriti”. Para mim era demais o senso de observação do garoto, o que fugia a muitos adultos, acostumados aos carros e aviões, nas cidades. Não satisfeito busquei confirmar o fato com o pai dele. Era verdade. Atônito, ainda, perguntei-lhe se era comum eles irem ao Núcleo, São Romão ou Pirapora, ao que ele me respondeu: “esse minino nunca saiu daqui pra nada. É difícil viajá com a família e o sinhô sabe, num passa carro por essas banda”. Nem ao Núcleo o garoto nunca fora, sempre ali, no seu rancho, com seus brinquedos e sonhos. O que o menino sabia, sabia por saber, por ter vindo com ele. De onde? O fato levou-me a Mozart e outros gênios precoces...


ESCOTEIRO E SEM CHAPÉU

O urucuiano tinha lá seus costumes e entre eles um era o de não andar sem chapéu. O chapéu era para ele como a calça e a camisa ou até mais aderente, pois, de comum, tomava banho com ele, ou melhor, refrescava: quando estava muito calor, ele chegava ao riacho, arregaçava a calça, tirava apenas a camisa e jogava água no rosto, no peito, debaixo do braço e pronto, estava refrescado. Às vezes era permitido o gesto de tirar o chapéu com uma mão e, com a outra, molhar a cabeça. No trabalho, nas festas, nas folias, dentro de casa, lá estava ele sempre enterrado na cabeça: de couro, tipo nordestino, pois muitos deles tinham origem nas caatingas; outros de cerda de buriti e até o tradicional de palha. Os formatos variavam de modo das preferências: tipo coco, aba curta, aba larga; topo alto, pontudo ou topo achatado, rente à cabeça. Uns eram colocados com elegância, com a aba dobrada na frente para baixo; outros simplesmente enterrados na cabeça, sem o menor cuidado. O que eles não dispensavam mesmo era o precioso adereço, retido com a máxima: pés quentes e cabeça fresca. A cabeça deveria estar sempre protegida do sol inclemente do verão. Contudo, pelo costume, ficava protegida da chuva, do frio, do sereno, a qualquer hora, do dia ou da noite. Nenhum urucuiano vivia sem seu chapéu, costume que de pequeno ele adquirira, por sabedoria dos pais ou por imitação do que lhe parecia bonito. Por isso eles não entendiam porque eu, sistematicamente, viajava sem chapéu. Nunca me habituei a ele. Das vezes que tentei usá-lo não suportei o calor na cabeça, a coceira, o incômodo - e pensar que seu uso era exatamente para manter a cabeça fresca. Não fui criado no costume, deve ser a explicação. Às vezes dava de esbarrar com um viajante, no meio dos gerais. Depois do dedo de prosa, sempre vinha a observação: “O moço é doido de andá sem chapéu num sole desse!” Admiravam a minha coragem de viajar escoteiro por aqueles mundões de não ver casa ou gente, só de bicho, o que me tornava especial ao jeito deles de entenderem as pessoas. Contudo, causava-lhes estranheza o fato de não ter o chapéu pregado na cabeça. Por isso ganhei alguns, bem bonitos até, que só usava, quando percebia, com tempo, a aproximação da pessoa que cuidara da bondade. Quem não usava chapéu era louco, um forasteiro. Por bondade me aceitaram bem, ainda que declaradamente sem chapéu.


FIM DAS VIAGENS

As datas fluíram como a bruma em densa floresta deixando-me para trás. À época faltou-me cuidados de registros – o que hoje lamento. Apreciava o presente, com toda a satisfação, como todo guapo na flor de seus dezenove anos. Vivia de sonhos e desejos, menos de pensar na história. Mais tarde ganhei o hábito de fazer anotações, infelizmente sem preocupação alguma – eram apenas rabiscos de emoções. Acredito, no entanto, pelo ciclo da natureza que minhas viagens devem ter sido entre os meses de fevereiro e agosto, e explico: na primeira viagem, à Vereda do Chico Velho, o ribeirão da Conceição estava em vazante, pois foi difícil tirar os animais do rio, pela quantidade de barro nas margens e, depois, chegando ao rio Urucuia enfrentamos uma grande tempestade que são comuns na região, para “limpar o céu”, como dizem, quando vai chegando o final das águas. O final das viagens não pode ter ido além de agosto, pois sendo a eleição em 3 de outubro, não haveria tempo de processar o material coletado – formulários e rolos de filmes, considerando a distância e a inacessibilidade para entregá-los em Pirapora e que, àquela época tudo ainda era feito à mão. Assim, certamente, o período foi mesmo de fevereiro a agosto, pois de um fato me lembro bem: foram seis meses, repassando lombos de burros, mulas e cavalos, toda semana, de segunda a sexta-feira. No final da temporada eu já estava afeiçoado àquela lida. Era bom o contato permanente com o urucuiano, lá na sua palhoça, no seu eito, vivenciando bem de perto, ainda que por poucas horas, o seu mundo. Vi lugares, muitos e tantos lugares: caminhos pelos vãos, caminhos pelos gerais; cortando matas ou beirando veredas. Aprendi muito, muito além do que nos bancos da escola conseguira, com respeito às questões humanas, geográficas e sociais. Posso dizer que foi um período em que caldeei o meu caráter com muito realismo, adquirindo conhecimentos que me seriam de imensa valia no futuro. Por isso não lamento ter sido enganado, a princípio, com a viagem à Vereda do Chico Velho, pelo contrário, agradeço a contingência de ter sido um sorteado para a missão. Foi experiência ímpar que nenhum outro, dos meus companheiros, teve igual, embora por muitas outras tenham passado.
Afinal, conheci o imenso município de São Romão, de então, indo da Fazenda Conceição às divisas com São Francisco, Arinos (ainda conhecida como Barra da Vaca), João Pinheiro e Unaí, indo a todos lugares onde gente morava, não importando quantas. Os guias, Vicente, Cesário, Antônio Torres, João da Palma e Zé Branco foram muito importantes na minha universidade do sertão. Cada um tinha um modo de ver e contar as coisas, todos com experiências vividas de mais de 40 anos ali naquele mundão sem fronteiras. Terminada a temporada, por gostar que fiquei, dos animais, já havia comprado dois cavalos – Sputinik e Tarzan. O primeiro, um fogoso corcel branco, corpo afinado e muito arisco, não me teve serventia. Era novo e carecia de aprender esquipar. O amansador, nos primeiros dias de treino, quando o potro ainda trazia argolas nas patas dianteiras – recurso para obrigá-lo a abrir o passo -, foi definitivo: “Aprende não, ele joga as patas para frente demais. Parece inté que tá amassano barro”. Nunca montei nele, aliás ninguém, além do amansador. Ficou livre no pasto sem sentir os apertumes das barrigueiras, o incômodo do arreio e as pontas afiadas das esporas. O Tarzan, um alazão estiloso, alto, bonito, era de maior serventia nos meus passeios às fazendas vizinhas. Ele andava mais despachado e bonito que as mulas, de viageiro bom, mas lentas nas viagens curtas. Minha vida no Núcleo, a partir de então teve outro curso, da mesma forma de peregrino, por circunstâncias outras e do meu bom agrado. Conheci sertão, estimei o homem e ainda hoje, quarenta e três anos passados, quando escrevo, me sinto, solto, escoteiro e sem chapéu, com o rosto esfogueado, cortando uma vereda com os olhos no infinito. Uma saudade gostosa perpassa-me de todo e me vejo, ainda, um urucuiano no fundo do coração.


EVASÃO DOS MOTORISTAS

Com a caravana dos Bandeirantes foi o motorista José Francisco (Zé Breguesse) e sua esposa, Cida, que estava grávida. Ele era o encarregado do caminhão - um Ford francês, a gasolina, cara chata, com motor no interior da cabina, caixa de marcha seca e freio conjugado, o que era sempre um problema. Zé Maria e Raimundinho cuidavam do jeep americano e eu do trator Ford NA. Nos primeiros meses, logo após a instalação, das primeiras obras uma foi fazer a drenagem no campo de pouso – o único da região e, em caso de emergência, nosso único contato com o mundo – por isso ele devia estar permanentemente em condições de uso, o que era difícil como se encontrava, pois se estendia num local plano, na saída da vazante do ribeirão, facilmente inundável. Foi preciso abrir uma profunda valeta ao longo de seus quase mil metros, apenas do lado de cima, para receber as águas que desciam da serra. Zé Breguesse encostava o caminhão para transportar o barro cavado – aproveitado como aterro - e ia para seu rancho, assistir dona Aparecida, em estado adiantado de gravidez. O caminhão cheio de barro ficava tempo a sua espera, enquanto com o trator eu fazia várias viagens. Se ele demorava muito eu passava na porta do rancho e gritava por ele, de lá, ele preocupado, me pedia para puxar o caminhão, o que eu fazia com prazer. Em Esmeraldas aprendera, muito cedo a dirigir, mas apenas carros pequenos. O caminhão era diferente. Eu ficava trêmulo de emoção ao tomar posse do banco, empunhar aquele volante enorme, que carecia de mãos fortes para dominá-lo. O câmbio ficava quase atrás do banco – era necessário estender o braço para trás para manejá-lo. Para engrenar as marchas carecia de duas debreadas e, ainda, de cuidar do tempo do motor. Aquilo era fantástico. Uma chamada no acelerador, um toque no câmbio, e a marcha “entrava como manteiga”. Foi ali, do canal para o rancho, que fiz meu treinamento ao volante de um caminhão. Em pouco tempo eu já estava passando marcha só no tempo, sem usar a embreagem, apenas para desafiar a caixa seca. Dona Aparecida foi tendo complicações com o parto e o Zé Breguesse, um bom amigo, pouco ficou no Urucuia, teve que voltar à sua Boa Esperança, de onde veio o seu substituto do qual me lembro apenas do apelido – Doda. Ele era solteiro, muito animado e divertido com seu sotaque sulista, arrastado de caipirão – “poitêra, cunzinha, sô...” Com ele foram feitas as primeiras viagens para fora do Núcleo - Pirapora, levando mercadorias produzidas na região e trazendo alimentação e outras utilidades, e a primeira viagem a São Romão, o que se deu no carnaval de 1958. Também ele não agüentou a dureza e a solidão daquele fim de mundo; ele não tivera a mesma motivação com que nos envolveram durante quatro anos, não teve tempo para sonhar com as "morenas dos olhos verdes e as veredas tropicais". Para ele, moço feito, perto dos trinta, as necessidades eram mais urgentes. Num certo dia ele ajuntou as malas e ganhou o mundo, foi pousar, também na sua Boa Esperança de mais conforto e de morenas mais à vista. Ficamos, de repente, sem motorista. A missão ficou dividida entre José Maria, no caminhão, eu no jipe e no caminhão, conforme as circunstâncias. O Urucuia não era para qualquer um, hoje vejo isso rebuscando os fatos passados. Quantos foram com a Bandeira e pouco tempo resistiram deixando-nos sem promessas de retorno.


CAMINHONEIRO

Na organização da Bandeira o motorista seria o Saldanha, mas em pouco tempo lá estava ele na fazenda Brejo Verde, levando a escola a um ponto mais distante ainda naquele sertão. Com a falta de motoristas que não tiveram o espírito de pioneirismo, o jipe e o Ford ficaram entregues a Zé Maria, Raimundinho e a mim – pouco depois, o Raimundo iria para o Cabo Verde. Foram muitas e memoráveis as viagens que fizemos, onde muito mais do que ser um motorista, era preciso ser conhecedor do sertão e estar preparado para qualquer situação, inclusive quanto à mecânica, pois do contrário era arriscado ficar preso nos gerais sem nenhum socorro – àquela época os únicos veículos que cortavam o trecho de Conceição até Porto dos Cavalos eram os caminhões da Escola e de Zé Alkmim, ligado aos Palmas e que residia em Pirapora. Das tantas viagens feitas para Pirapora, registro apenas as mais emocionantes. Antes é preciso lembrar que muito de mecânica aprendi com o espírito investigativo, criativo e genial do Dr. João Pitanguy que foi diretor do Núcleo em um período. Ele era engenheiro agrônomo e topógrafo. Dirigia o Núcleo e ao mesmo tempo, riscava uma linha nivelada, no seio da serra da Conceição, para levar água, através de um rego (aqueduto para parecer bonito) do pé da cachoeira do Conceiçãozinho até à Escola. Com ele, as máquinas do Núcleo não paravam - para tudo ele tinha um jeito e fazia peças até de prego, o que nos deixava atônitos. Nada ficava sem solução. Mais tarde foi o que se deu comigo. Um certo dia, conduzi o caminhão para lavar no Conceiçãozinho, estacionando-o sobre pedras e seixos. Lembro-me que a rampa de acesso ao córrego era tão íngreme que para vencê-la o caminhão tinha que ser engatado na marcha-ré. Pois bem, naquele dia, depois de lavar o caminhão, ao fazer a manobra para retirá-lo, percebi que as rodas não obedeciam ao comando do volante. Chamei o companheiro Manoelzinho (da turma de meninos do Carinhanha) para verificar o que acontecia com elas, as rodas, enquanto o volante era girado. “Nada”, foi a resposta dele. O jeito foi improvisar: os meninos, com as mãos, iam endireitando as rodas e, lentamente, arrastamos o caminhão, centímetro a centímetro até ao imenso galpão de palha que a princípio fora destinado ao hangar, transformado, depois, em almoxarifado e garagem. Sem maiores conhecimentos de direção de carro – o que sabia ficava na mecânica de trator, cujo sistema era mais simples, mas tinha certa relação -, fui de curioso ao conserto. O que primeiro percebi era que o volante girava livre para os dois lados e que, puxado, erguia-se enquanto tinha espaço, até o teto da cabina. Desmontado, embaixo, o setor de direção se desprendeu com um pedaço da haste que o ligava ao volante. E o outro pedaço? Ficara preso ao volante. Retirado esse, caiu o outro pedaço – a haste de aço partira quase próxima ao volante, um fato difícil de acontecer. Outra haste só em Belo Horizonte e era preciso, urgente, viajar para Pirapora, pois o estoque de alimentação no almoxarifado já era quase zero. Cadê João Pitanguy para resolver? Ele já se fora, como muitos que passaram pelo Núcleo. Ficaram seus ensinamentos e seu espírito criativo e instigante de não se dobrar diante do difícil. Por sorte consegui um cano galvanizado com liga de aço no calibre da haste, pela parte interna. Com enorme dificuldade cortei um pedaço, fazendo dele uma luva onde introduzi, a golpes de marreta, as duas peças separadas da haste da direção. Feito isto engendrei um modo de contrapinar as duas partes da haste, o que levou mais de um dia para furar - ela era de aço puro e as brocas disponíveis logo cegavam. Serviço feito veio a parte mais complicada – a montagem. Numa ponta o volante que ficou uns centímetros mais alto e, na outra o setor. Como montar a haste no setor, sem saber como colocar a rosca sem fim? Mãos, braços e a cara cheios de graxa, com os murunhinhos fazendo a festa e se fartando do meu sangue. Horas de tentativas: uma montagem e uma experiência – o curso do volante não correspondia por inteiro. Sem desistir fui repetindo a operação até que deu certo: pela esquerda e pela direita, as rodas atendiam o comando da direção com suavidade e por completo. O caminhão estava pronto para a viagem. Muitas, muitas viagens depois, a haste quebrou no mesmo lugar, ou melhor, a luva não resistira aos trancos da direção naquelas trilhas do sertão – com bancos de areia, buracos, tocos e atoleiros. Soltou, felizmente, em frente à Escola de Pirapora (Buritizeiro), quando o caminhão deslizava numa segunda marcha, logo depois de sair do portão, indo ao encontro de um cerca, sem nenhuma gravidade. O serviço feito no Urucuia fora tão competente que, numa oficina de Pirapora repetiram a emenda, apenas com mais segurança, ou seja, reforçada com uma boa solda. Nunca mais quebrou, acompanhando o velho Ford francês até ao cemitério dos carros.


CAMINHONEIRO II

No Núcleo a harmonia entre os bandeirantes era muito grande, raramente uma discussão, mesmo porque faltava motivação, pelo menos quanto às causas comuns: mulher, bebida, futebol e dinheiro. Moça, para namorar, não existia na redondeza; bebida não tomávamos na Escola; dinheiro, ninguém tinha. Restava o futebol. Nosso time era imbatível, mas os jogos eram raros, o jeito era repetir as ferrenhas peladas e, aos domingos, os jogos do Flamengo contra o combinado Fluminense e Vasco – a maior parte era do Fluminense, só sobrava Zé Maria, vascaíno ferrenho que não aceitava vestir a camisa do Flamengo. Nas peladas surgiam algumas rusgas: uma entrada mais ríspida, uma gozação, o que sempre acabava no córrego em acalorada discussão. Zé Maria sempre fora o zagueiro central do time (beque direito, como se dizia). Um dia, sem mais e nem menos, resolveu ser centro-avante. Não era um craque, mas por ser alto e forte parecia um trator e, por isso, os beques o paravam na pancada, pois a cada gol que ele fazia, comemorava com gozação. Daí, eu, beque, e ele, centro-avante, vivíamos às turras. De uma feita o pega foi feio e ficamos tempo sem conversar. Vem uma viagem a Pirapora. Nessa época viajávamos em dupla de motoristas, pois mais conveniente e seguro era o revezamento e a companhia. Fomos de Urucuia a Pirapora sem trocar uma palavra, revezando ao volante nos lugares que eram comuns as trocas noutras jornadas. No regresso, no meio dos gerais, o caminhão engasgou, rateou e parou. Sem nada falar detectamos o problema na bomba de gasolina. Peguei um camburão, enchi-o com o combustível, e fui para a carroçaria, de onde passei a mangueira, pela escotilha traseira que abria como janela de correr, a outra ponta dentro do camburão. Zé Maria a introduziu no conduíte de entrada do carburador, isolando a bomba de gasolina, e deu a partida. Foi um exercício danado, manter a mangueira no camburão, cuidando para que a gasolina não vazasse, escorrendo pela sacaria de alimentos transportada. Quando a gasolina ia chegando ao fim, eu batia na cabina. Zé Maria entendia e ia para o meu lugar e, assim, fomos trocando de função até chegar ao Núcleo. As pazes foram seladas quando fomos narrar o acontecido para os companheiros: um emendava o outro e, sem perceber, voltamos a conversar. Sem abraços, voltou a paz que durou até à pelada seguinte.


CAMINHONEIRO III

Fim de ano. Como sempre acontecia nesta época quase todos os bandeirantes viajavam de férias, pois tinham familiares em Belo Horizonte ou nas proximidades dela. Para mim era mais difícil, pois minha mãe morava no Triângulo Mineiro o que, naquela época parecia ser muito distante e inacessível a um professor sem dinheiro. Ficamos, no Núcleo, eu, Flávio e Chico, cuidando da escola, sem muito o que fazer, pois chovia sem parar. Era água brotando de todos os lados. O ribeirão da Conceição regurgitava lambendo altos barrancos; os pequenos riachos se transformavam em valentes cursos d´água e o campo de aviação se transformara numa lagoa, com água clarinha brotando do barro. No canal aberto para drenar o campo era possível ver nadando, sempre apressadinhas, piabinhas prateadas, certamente levadas para ali, ainda na fase de ovos, nas garras de passarinhos – dizia-se no sertão. Flávio cuidava da radiofonia, Chico da sua farmácia e eu dos meninos. Tudo corria tranqüilo, pachorrento e sem preocupações com o tempo – tempo de chover é tempo de chover, só restava esperar e nada mais, que chegasse o sol para se entregar às atividades de campo. Numa tarde, um grande susto. O Flávio conversava com alguns meninos, quando foi acometido de um mal súbito, ficando horas desmaiado, todo roxo. A cozinheira, Maria Pepé (assim chamada porque mancava de um pé), logo acudiu dando explicação: “isso foi a bananada que ele comeu. Banana com leite é um perigo só, e ele comeu duas pratadas”. À falta de melhor explicação, essa serviu para aliviar a tensão. O Chico não se encontrava por perto, atendendo a doentes fora do Núcleo. O tempo passava e nada do Flávio abrir os olhos ou conversar. “O jeito é pedir um avião”, foi o que me veio à cabeça. Isso pensado, fui para a salinha do rádio. Liguei o transmissor e esperei que ele esquentasse – àquele tempo eles eram equipados com válvulas. Não levou tempo para que do interior da caixa subisse uma fumaça preta e fedida, obrigando-me a desligá-lo. O rádio transmissor entrara em curto. Pronto, estávamos fora do mundo, sem nenhum meio de comunicação. Mais tarde o Flávio se recuperou, meio bambo e com a língua presa, dando-nos um certo alívio. Não foi longe a tranquilidade – no outro dia, recomendado, ele não comeu bananada, mas sofreu outro desmaio, agora assistido pelo Chico que logo recomendou: “O Flávio precisa ser removido logo para Belo Horizonte”. “Como, com tanta água caindo do céu, escorrendo pelos grotões da serra e brotando da terra?” – perguntei. Chico não quis saber de conversa – “Tem que tirar logo”. Preparei o caminhão, o trator e umas juntas de bois. Fiz meia carga, no caminhão, para dar peso a modo enfrentar os bancos de areia, e determinei: “amanhã cedo a gente sai”. Assim foi: com muitos meninos e alguns homens, todos debaixo da lona, deixamos o Núcleo. Os seis quilômetros da escola até à beira do rio Conceição, na Boa Vista, local de passagem, foram vencidos em doze horas. Chegamos à casa de Chiquinho Cearense – ela fora levantada num alto, de onde se via passar, ao fundo, o ribeirão da Conceição. O sol se despedia; ali acampamos, isto é, nos aboletamos debaixo da lona, na carroçaria, à espera de novo dia. Foi uma noite terrível, mesmo com a molecagem dos meninos que levaram o famoso “peido alemão” que de tempo em tempo, aberto, obrigava a todo mundo pular da carroçaria. Descobrir o autor foi tarefa difícil, mas ele foi vencido. Na manhã seguinte, a desagradável surpresa: o ribeirão estava muito acima do vau que se media verificando o nível nas pedras mais salientes – todas estavam encobertas: foi mais um dia e uma noite à beira do barranco, comendo arroz com carne picada e farinha. No terceiro dia, a maior das pedras mostrou o pico e isto nos animou muito – está melhorando. Mais a preocupação era grande, pois a montante, pesadas nuvens se formavam, ameaçando mais pancadas de chuvas. Até ao meio dia ficamos com um olho na pedra e outro no céu – o nível das águas baixava, embora fosse brava a correnteza. Zé Branco, atirado e impaciente, como sempre era, resolveu conferir: tirou as botinas e a roupa e entrou no ribeirão. A água chegava-lhe ao peito nos lugares mais fundos. Percorreu toda a passagem e voltou animado: “Dá pra passá”. Para um peão, carreiro ou vaqueiro, ele estava indo longe demais e sua coragem não era compatível com a minha. Nisso vi o Flávio num canto, convalescente e pouco animado. Senti que era preciso vencer aquela barreira de água. “E se a correnteza arrastasse o caminhão?”, perguntei. Zé Branco acudiu logo: “arrasta nada, sô! Eu sou mais leve e ela num mi arrastô”. Pela altura das águas lembrei-lhe que seria impossível atravessar com o motor funcionado, pois elas, por certo, cobririam o distribuidor e a bobina. “Pois intão passa arrastado”, sentenciou Zé Branco que, de imediato, pulou de novo no rio sumindo na outra margem. Tempo depois voltou com doze bois carreiros das fazendas de Geraldo e de Tarcísio Palma, parentes de sua mulher, dona Lilica. “Vamo s'imbora”, gritou ele. Deslizei o caminhão rumo ao rio. Na cabina, comigo, o Flávio e uma velha muito doente, sem forças nas pernas para caminhar. Na entrada do rio, na lama acumulada pela enchente, o primeiro susto: o caminhão atolou com gosto. Com muito trabalho, meninos empurrando, homens arrastando o barro e os bois puxando, ele ganhou o leito de pedras e foi sendo levado, facilmente, fazendo a curva do vau, a jusante. Em pouco tempo a água subiu pelo motor e ganhou a cabina, molhando nossos pés - borbulhava com gosto, lembrando a inundação de uma embarcação a pique. Zé Branco na frente chamava os bois, vencendo a correnteza; dos lados homens, com varas de ferrão, os atiçavam para manter o ritmo da puxada. Tudo ia bem, até que senti que o caminhão saía do vau, arrastado mais para baixo. Gritei Zé Branco, mas foi tarde, ganhando as pedras de lado, que marcavam a passagem, ele estancou. Zé Branco, com seu jeito especial de dominar os bois, tentou que tentou, até que se via canzil arrancados dos pescoços dos bois, subindo ao céu como foguete e o caminhão preso. Nisso ele mergulhou, sumiu nas águas barrentas. Tomando fôlego, ao emergir, deu o péssimo resultado: “Vai sair não, a roda tá presa numa pedra que num dá pra tirá de mão, tá fincada”. Correu-me um frio pelo corpo: “E agora? E se estiver chovendo na cabeceira e chegar uma cabeça d´água, daquelas tão comuns no ribeirão? Vai levar o caminhão rio abaixo”. Aí pensei em tudo que podia acontecer, com um monte de diretores querendo minha pele. “Tá perdido? Vamos completar”. Falei para o Zé Branco ajeitar os bois pois iria dar umas beliscadas no arranque para tentar vencer a pedra, com a ajuda dos bois podia dar certo. Apertei o botão e para minha surpresa o motor pegou e antes que ele apagasse, pisei fundo. Foi ligeiro, pois ao avançar, com toda força, o caminhão espantou os bois que se esticaram nos cambões e saímos como uma lancha, quase por cima do ribeirão. Mais do que sorte foi a providência que sempre tomávamos em nossas viagens pelo sertão, onde muitos cursos d´água tinham que ser vencidos: o distribuidor e a bobina eram sempre cobertos com plástico e lambuzados de graxa e, em cursos mais fundo, desligada a correia da hélice do radiador.


CAMINHONEIRO IV

Vencida a travessia perigosa do ribeirão da Conceição, estando o caminhão funcionando perfeitamente, resolvi prosseguir na viagem, embora tombasse a noite, tendo o sol deixando o rastro rubro no barrado, por trás da serra da Boa Vista. O Ford funcionava bem e isto me animou. A estrada guardava os sinais da chuva, com muito barro, o que dificultou a travessia de uma pequena grota, onde corria um filete de água que os locais denominavam de Santo Antônio – era do urucuiano o costume dar nome de santo a tudo que o cercava. Assim, quando chegamos à fazenda Boa Vista já fazia noite. Próximo à casa do Zé da Palma, a estrada era cortada por um rego com dois pranchões estendidos de barranco a barranco para passagem dos veículos. Tinha um inconveniente: a travessia era de viés e inclinada, obrigando uma manobra difícil na estrada estreita. Pior foi naquela noite, pois a estrada estava como um quiabo. A dianteira passou bem, mas, ao serem tracionadas, as rodas traseiras deslizaram e dançaram de um lado para o outro e, sem ter como parar o veículo, o jeito era tentar a travessia, mas não deu - de um lado as rodas não alcançaram os pranchões e caíram no vazio. O caminhão ficou preso. Sem perda de tempo fomos ao trabalho porque não podíamos ficar ali, quase na frente da casa de Zé da Palma, àquela época desafeto da Escola, num estado de beligerância grave. Zé Branco logo providenciou nossos apetrechos de desatolar caminhão: uma forquilha, um varejão com 3 metros de comprimento e outro, mais fino, com 2 metros que usávamos aplicando o princípio da alavanca de Archimedes. Infelizmente não funcionou, pois a forquilha tinha que ficar próxima da roda, servindo de apoio para a alavanca ( varejão), o que era impossível em vista do buraco profundo do rego. O jeito era apelar para o chicão, levantando a carroçaria e calçando as rodas. Numa primeira tentativa, com as rodas sobre paus, ao ser acionado o arranque do motor um clarão se espalhou debaixo do caminhão. Foi o relâmpago, imaginou-se, a princípio, o que nos confundiu, pois do outro lado do rio já eram muitos os riscos no céu, acompanhados do redobrar dos trovões. A impressão não durou muito, pois o arranque não atendia mais ao comando e a corrente elétrica não dava sinal. No escuro, já noite adentro, não tinha então como tirar o caminhão e o jeito foi se arranjar num canto de carroçaria, debaixo da lona, onde outras pessoas já se encontravam arranchadas – no Núcleo, todas as vezes que se anunciava uma viagem, não faltavam passageiros, muitos em busca de médicos em Pirapora, o que não existia, nem por notícia no Urucuia. Pela manhã, valendo-se mais uma vez dos bois de Geraldo e de Tarcísio Palma, conseguimos tirar o caminhão do rego e eles ainda foram de muita valia, até vencer a íngreme serra da Boa Vista, toda molhada de chuva, coberta de tauá escorregadio como sabão. Prosseguindo a viagem levando o Flávio para Pirapora, resolvi tomar a estrada pelo Porto das Abóboras, no rio Paracatu, pelo Capão Redondo, mais apropriada em tempo de chuva. Depois de vencer a serra da Boa Vista ganhamos a estrada dos gerais, macia por causa do leito de areia branca. Na cabina iam comigo o Flávio e a velha doente que não podia andar e que não suportava sequer que se tocasse em seu corpo tanta era a dor que padecia. A viagem corria tranqüila até que senti um cheiro de queimado invadindo a cabina – motorista deve ter aguçado todos os sentidos, não basta assentar-se frente de um volante e tocar o carro, é preciso cuidar que tudo esteja funcionando perfeitamente. Aí têm importância especial os sentidos da visão, da audição, do tato e do olfato, desprezando o do paladar que só se fazia presente quando se engolia goles de gasolina, ao sugá-la, em mangueira, dos tambores para reabastecer o caminhão. Em seu lugar, no entanto, às vezes, vinha o sexto sentido, que aflorava num ímpeto, em situações incomuns, exigindo-se a superação do ser humano além das forças naturais. O cheiro de queimado, pressentido antes da fumaça, deixou-me com os sentidos aguçados. Feita uma observação superficial, nada detectei, segui. Poucos quilômetros mais adiante surgiu a fumaça - rolos negros inundando a cabina, precedendo pontas de labaredas bem ao lado do banco do motorista. Num átimo tentei parar o caminhão. Os freios, ainda molhados não obedeceram de imediato. Gritei pela janela: “Zé Branco, tá pegando fogo no caminhão, segura aí que vou parar no mato”. Feito isto joguei a carroçaria na lateral, onde subia montes de areia misturada a pequenos arbustos, até deter o caminhão. Antes de ele parar já tinha muita gente no chão e deles vieram dois, os filhos da velha que a apanharam de chofre, na cabina. Desta vez ela nem sequer gemeu, quando foi atirada na areia. De minha parte, afastei o banco e tentei levantar a chapa de ferro que cobria a bateria, atrás do banco. Foi uma imprudência respondida com um violento choque e a queimadura na ponta dos dedos – a chapa estava com elevado grau de calor. Com um facão arranquei a tampa e vi a origem do fogo: os cabos da bateria, recobertos de borracha, passavam por um orifício na lataria, levando eletricidade para o arranque, a bobina e faróis. No orifício da passagem, de tanto retorcer a cabina, vencendo os buracos, a borracha foi, com o tempo, sendo removida até que despontassem os fios dobrados que com a fricção na lataria provocaram fagulhas incendiando a borracha. Nada grave, pois. Facilmente o fogo foi contido com mãozadas de areia. O difícil foi esperar os passageiros e Zé Branco refazerem a carga do caminhão que, naquelas alturas, já estava, em boa parte no chão. Consertar o cabo foi possível porque entre os passageiros um havia que tinha um rolo de esparadrapo todo ele consumido para recobrir o cabo no ponto de fricção. Um passageiro que certamente já viajara ou morara por outras bandas, vendo o nosso Ford, de cara chata como uma Mercedes saruana, deu sua sensata opinião: “inda bem que o caminhão é a diesel. Se fosse a gasolina tinha explodido”. Não falei nada para não assustá-lo e aos passageiros que ficaram aliviados com aquela explicação singela. Seguimos a viagem e, felizmente, o Flávio foi entregue salvo e bem, em Pirapora, de onde seguiu para Belo Horizonte.


CAMINHONEIRO V

Numa certa manhã, quando me preparava para sair para o trabalho no campo, fui chamado pelo Audálio: “Tem uma viagem urgente para Pirapora, prepare o caminhão”. O urgente, no Urucuia não tinha a mesma precisão dos lugares onde a vida corria apressada, daí, acredito, foi pensando nisso que ele emendou, reforçando: “É para sair hoje mesmo, agora”. Aquilo contrariava nossos planos de viagem, que eram de sempre sair de madrugada para dar tempo de chegar a Pirapora, quando possível, à noite do mesmo dia – isto deixando o caminhão na Boa Vista, num dia antes, para evitar problemas na travessia do ribeirão da Conceição. Quis argumentar, mas não teve jeito. Ao meio dia, com o caminhão carregado de toras de cedro e pau d´arco, e sacos de feijão, preparamos a arrancada, quando chegaram, o que era comum, os passageiros: duas famílias – maridos, mulheres e filhos. Na cabina, eu Zé Branco, Zé Lopes – pedreiro e sanfoneiro da Escola, um moreno alto, espalhafatoso, de risada estridente e gestos largos – e uma senhora que se alojou num banquinho de madeira que ficava atrás da cadeira do motorista, porque adoentada. Zé Lopes foi chamado como reforço de ajudante porque aquela circunstância exigia e as viagens estavam ficando mais difíceis, com o caminhão mostrando sinais de mau funcionamento. À meia noite chegamos ao Porto dos Cavalos. Era noite escura, sem lua, um breu terrível. O Ford tinha apenas um olho e freios só à custa de muitas pedaladas. Depois de buzinar muito e de muitos gritos, surgiu, na escuridão, o velho Honório empunhando uma lanterninha acanhada e esbravejando como era seu costume: “qui é qui tá quereno esse minino do guverno chegano aqui nessa hora?”. Contei-lhe uma história e disse-lhe que o Audálio tinha pedido para ele cooperar. Relutante ele deu a ordem de embarque, o que era feito com muitos cuidados. Explico: o batelão era ancorado com a lateral encostada no barranco, numa distância de mais ou menos dois a três metros, que era coberta por dois pranchões, a conta das rodas. Essa operação, durante o dia era difícil; à noite era um risco maior, pois dificultava a orientação do guia. O batelão era estreito, para caminhões, principalmente o Ford, de cara chata, com as rodas dianteiras à altura do banco do motorista, sobrando uma ponta da cabina para frente. Assim, no batelão, ele ficava com as rodas traseiras numa extremidade, com parte da carroçaria de fora e, na frente, as rodas dianteiras também quase no final do batelão com parte da cabina avançada, sobre o rio. Como sempre o Ford estava sem freio. Era preciso descer engrenado em marcha forte, pedalando os freios e ainda contar com a perícia dos ajudantes com os calços de madeira, assim que ele corria pelo batelão, para segurá-lo no ponto certo, caso contrário iria direto para as águas. Feito o embarque, sem maiores problemas, chamei Zé Lopes para ele reabastecer o caminhão, aproveitando o tempo da travessia. Fui encontrá-lo dormindo na carroçaria, do outro lado, onde normalmente era colocado o tambor para que ficasse sobre tanque do caminhão. Esperto ele deu um pulo no batelão e saiu para a frente em passos firmes para pegar a mangueira que ficava na cabina, no lado oposto de onde ele se encontrava. Acredito que imaginara estar em terra firme, pois com passos resolutos se encaminhou para frente do caminhão a fim de contorná-lo e ganhar a porta do outro lado. Foi e foi firme até que desapareceu, como por encanto, na escuridão. Só ouvimos o barulho nas águas do rio: tibum! Foi um corre-corre danado; gritos e mais gritos. Aí valeu a lanterninha do velho Honório que localizou Zé Lopes debatendo n´água sem entender o que estava acontecendo. Só dava para ver seus olhos esbugalhados, enquanto dava braçadas desordenadas para não se afundar. Ligeiro, jogaram-lhe uma corda, que ele agarrou com sofreguidão e foi puxado para cima do batelão. De pé ele parecia um frango molhado, escorrendo água da roupa e com as botinas encharcadas. A cara assustada e tremendo o corpo todo, mais de medo do que de frio. Passado o susto, escancararam-se risadas de gozo pela cena tão incomum. Colocamos Zé Lopes, enrolado em um cobertor, assentado no motor do caminhão, dentro da cabina, onde o calor era acolhedor. Eu e Zé Branco cuidamos de reabastecer o caminhão. Seguimos a viagem. Saindo do Porto dos Cavalos ganhava-se, pouco depois, a estrada que vinha de Brasilândia – essa era muito boa, mantida sempre conservada pelo Governo Federal que tinha, ali, um projeto de assentamento agrícola. Mais à frente existia uma descida enorme, de quilômetros, era suave e sem curvas. Zé Branco recostado no banco cochilava; Zé Lopes ainda enrolado no cobertor aproveitava do calor do motor e, atrás do banco do motorista a mulher que até então vinha falando sobre a religião – numa de suas idas a Pirapora se convertera ao protestantismo. Falara muito da Igreja Católica, criticando os santos e Nossa Senhora, o que refutávamos com veemência. Naquela hora da noite todos estavam quietos, só se ouvia o ronco do motor do Ford que deslizava suavemente pela estrada. Suave demais, pois até eu peguei no sono, embora de olhos abertos. Quase no final da descida, chegando ao córrego Santo Antônio, fora aberto um buraco para instalar um mata-burro e, de lado, uma porteira. O buraco estava ali, boca aberta, sem a grade a cobri-lo. Percebi o perigo a coisa de menos de 20 metros. A velocidade do caminhão era alta, muito alta para a situação. Desesperado, fui ao freio que, como sempre não respondeu. Deu tempo de reduzir a marcha para uma terceira e desviar o caminhão para a cancela que foi para os ares. Daí o caminhão ganhou o barranco, cujo choque evitei com um golpe de direção leve, mas o suficiente para ele se inclinar a ponto de quase se tombar de vez. Percebendo o perigo e salvo pelo sexto sentido, mantive o volante firme, retornando-o, de leve, sem golpe brusco, à direção contrária. Inclinado ele se arrastou por uns metros até que as rodas ganhassem o chão, mas nisso já fora da estrada, avançando por uma valeta de drenagem, correndo como trem de ferro no trilho. Foi o tempo que tive para voltar à segunda marcha e dominá-lo de vez, parando-o a cerca de uns duzentos metros abaixo da cancela. Com os choques e inclinação do caminhão, foram tantas as sacudidelas que nada ficou no lugar. Zé Lopes, por várias vezes era atirada do motor para cima do volante ou para cima do Zé Branco que pulava no banco como cabrito e, atrás do banco do motorista, a crente chamava por Nossa Senhora e todos os santos milagreiros. Do alto da cabina, num compartimento que ficava acima do pára-brisa, o que se encontrava fora atirado pelos ares: carabina, facão, chaves e tantas outras miudezas. Nada ficou no lugar. Da carroçaria ecoavam gritos terríveis, de medo, de dor e espanto, dentro da noite fechada. Parado o caminhão, não ousei descer para ver o que tinha acontecido, missão passada ao Zé Branco. Zé Lopes, encarapitado, ainda no motor, se desdobrava em risadas. Achei ruim com ele, aquele despropósito de risos num momento tão grave, ao que respondeu: “toma, maludo, quando eu caí no rio ocê mangô de eu; agora tá pagano”. Minutos depois Zé Branco voltou dizendo “foi uma bagaceira da peste, mas num morreu ninguém”. Fiquei tranqüilo e pedi para que ele cuidasse do estrago, enquanto descansei a cabeça no volante, enrolada numa toalha, pegando no sono. A manhã chegava, fresca, com o mato molhado de orvalho, quando fui acordado pelo Zé Branco. “Tá pronto. Vai vê o qui aconteceu”. Inacreditável, só pode ter sido a imensa bondade de Deus, protegendo aquela humilde gente que vinha deitada debaixo da lona, na carroçaria ou ouvindo os gritos de socorro da crente reconvertida. No barranco, na saída da cancela que ali restava aos pedaços, um imenso buraco e na estrada, em diagonal, um risco no chão feito pelo pára-choque do caminhão que ainda estava cheio de barro, na ponta; a carroçaria se abrira numa parte, mas nada caíra, pois a madeira estava bem travada. Voou pelos ares apenas os utensílios dos passageiros – panelas, mamadeiras, latas e copos. Alguns feridos, levemente, com cortes nas canelas e galos na cabeça. Nada grave, por milagre. Fui ao córrego Santo Antônio e mergulhei por várias vezes, a cara na água gelada. Seguimos viagem, meio a interminável gozação do Zé Lopes que não sossegava e, depois, perturbado pelos gritos dos passageiros, todas as vezes que nos víamos forçados a embalar o caminhão ao passar num atoleiro. Felizmente, por volta do meio dia chegamos à Pirapora.


OCASO DO FORD

O Ford francês do Núcleo mostrava sinais de fim de vida, depois de quase três anos de forçado trabalho, só no Urucuia, sem nenhuma manutenção mecânica. Normalmente um caminhão tem condições de uso por tempo muito superior. Não no Urucuia, aonde as estradas não iam além de trilhas, atravessando cursos d´água, atoleiros formidáveis e intermináveis bancos de areia que exigiam marcha forte, reduzida e a aceleração totalmente aberta – os bancos mais pesados e longos exigiam uma estratégia para ultrapassá-los: programar a viagem para neles chegar sempre de madrugada, no muito ao nascer do sol, quando a areia estava acamada e úmida - aí, no limite máximo permitido pelo trecho, embalava-se o caminhão o quanto possível e, à entrada da areia, numa seqüência rápida, jogava-se as marchas: terceira reduzida, a segunda e logo a seguir a primeira, sem permitir a queda de rotação e o giro das rodas. Engatada a primeira, em poucos metros, o caminhão começava a tremer todo, sacudindo-se como um burro bravo, deixando, no rastro, a areia cavada em pequenas ondas. Gemendo ele ganhava poucos metros até se estancar de vez. Se forçado mais um pouco – o que era uma temeridade – ouvia-se um zunido no ar, como silvo de uma bala perdida: lá se fora um prisioneiro – parafuso grosso, de aço, que prendia a roda na ponta do eixo. Quando isto acontecia, a pressa levava a um dia de atraso. Era preciso sacar o pedaço de prisioneiro, serviço que era feito com paciência, usando-se uma pua manual. Aos poucos, como um dentista, brocava o parafuso pelo miolo até conseguir desprender a fina casca enroscada que não podia ser removida pela broca para não danificar a rosca fêmea. Reposto o parafuso vinha a segunda e penosa operação: raspar a areia com enxada, pá e mão, para, depois, forrar a trilha com ramos e pedaços de pau. Ao fim de cada operação, era possível andar uns três metros, no máximo, com todos empurrando – ajudantes e passageiros. Quando o caminhão ganhava força e conseguia sair do banco, era motivo de festa e muita gritaria. O banco mais famoso e difícil de ser transposto era o do Terceiro Trecho, próximo a Pirapora. A denominação de “trecho” se dava por causa da ferrovia que estava sendo construída, ligando Pirapora ao planalto, Goiás – nos trechos eram instalados os acampamentos dos trabalhadores da ferrovia. E tinha mais: algumas serras e topes. Deixando o Núcleo até na saída da fazenda Boa Vista os topes eram muito íngremes o que requeria adjutórios de bois e tratores para vencê-los e, quando não se contava com eles, o exercício era penoso e muito perigoso. Na estrada estreita, entre os barrancos, de cada lado das rodas, corriam os ajudantes carregando tocos de madeira. Embalava-se o caminhão e, em poucos metros ele já não tinha forças para superar a rampa, então os ajudantes colocavam os calços, arriscando a própria vida, pois, raro não era o caminhão transpor os calços. Acontecia, então, de se ouvir um barulho formidável, pois, engrenado – ninguém era louco para retirar a marcha – ele voltava com o motor girando ao contrário, em violenta descompressão, até parar. Desnecessários eram os freios de pé e de mão – mesmo porque, também, eles nunca foram lá alguma coisa, viviam com defeitos insanáveis. Colocar o caminhão novamente em funcionamento levava horas, pois tinha que ser na manivela – a bateria não suportava o esforço. Manivela dando coices, mãos com calos sangrando, suor respingando o chão e muita paciência. Quando o motor funcionava vinha outra parte arriscada: com muita gente empurrando, os ajudantes com os tocos encostados na roda, dava-se a arrancada que não ia além de poucos centímetros e, assim, repetindo e repetindo a operação, depois de horas, ganhava-se o topo, onde uma parada era obrigatória para esfriar o motor que, fervendo, jogava água quente para todos os lados. Outro detalhe: era preciso um lastro médio na carroçaria - vazio era impossível vencer o tope, pois as rodas, sem aderência, deslizavam como se girassem em chão ensaboado. O tope mais famoso e difícil se localizava nas fraldas da Serra da Conceição, onde ela se debruçava sobre o ribeirão da Conceição, nas terras da Escola. Antes dele uma grota, no final de uma descida muito forte que obrigava descer com o caminhão engrenado. Na saída da grota, iniciando a subida do tope, uma curva de 90º, com velhas aroeiras fincadas no limite do barranco, como balizas e proteção para evitar que alguém, num descuido ao volante, se projetasse barranco abaixo até ao ribeirão. Não era possível, então, imprimir velocidade para entrar no tope. No máximo que se permitia era o embalo da segunda marcha. Fora essas viagens, o pobre caminhão, nos serviços do Núcleo, enfrentava trechos impróprios até para carro de boi. Curioso: a Escola tinha um trator de esteira, mas este sempre estava longe, abrindo as estradas vicinais, para terceiros, as primeiras estradas daquele sertão esquecido pelos governantes. Para levar material às obras, principalmente ao canal que se abria, cortando veias na serra da Conceição, o Ford era levado serpenteando tocos, contorcendo-se entre aroeiras e rasgando capim alto. No ribeirão da Conceição ele ia buscar areia para as construções e, lá, quase sempre, passava um dia atolado na areia fina, por mais que fosse calçado – um descuido, uma roda escapulida, pronto, estava preso. Para sair gemia, suava, retorcia, gastando-se anos de vida em poucos dias. O Ford mostrava-se como um combatente ferido, pedindo a reforma, o descanso e uma medalha. Estava perto de ser encostado, o que se deu depois de seu espetacular mergulho no rio Paracatu. As dificuldades e a pressa no Núcleo eram tantas que o valente Ford foi encostado sem honras, sem festas, como as que, muitos anos depois, deram ao trator de esteiras Nordest, aquele que abrira as estradas vicinais no Urucuia que virou museu em Esmeraldas – por que não no Urucuia?


DADO COMO MORTO

O dia dava sinais de seu despertar, quando, no barranco do rio Paracatu, no porto das Abóboras, rumo a Pirapora eu admirava, assustado, a enrascada em que me encontrava. Acabara de fazer a travessia do rio com o velho Ford, mas na saída do batelão aconteceu um acidente curioso e complicado. O sistema de embarque e desembarque era idêntico ao do Porto dos Cavalos, isto é, o caminhão ficava atravessado no batelão, com parte da cabina e carroçaria no ar. Com o batelão preso por cordas em mourões fincados no barranco, levei o caminhão para as duas pranchas de desembarque. Não rodou quase nada, quando ouvi um baque, sentindo, ao mesmo tempo, que o caminhão estava penso para um lado. Estranho, o motor continuava funcionando e a marcha engatada. Nisso fui alertado aos gritos para desligar o motor. Assim o fiz e com cuidado deixei a cabina para ver o que estava acontecendo: ao serem tracionadas as rodas traseiras forçaram o batelão para trás. A corda que segurava uma das extremidades do batelão ao mourão fincado no barranco não resistira o empuxo, partindo-se. Com isso o batelão afastou-se alguns centímetros, desalinhando as pranchas o suficiente para que as rodas traseiras, de um lado, se desviassem, caindo no vazio. Não foi pior porque o eixo traseiro caiu apoiado no pranchão, ficando as rodas, de um lado, sobre uma prancha e as outras no ar, a uma altura de quase dois metros da lâmina d´água. Uma situação inusitada. Não havia como levantar o caminhão e colocá-lo de volta na prancha, sem um ponto de apoio. Buscar recursos era praticamente impossível, pois sequer fazíamos idéia de que tipo de instrumento ou máquina poderia ser usado para erguer o caminhão, naquela situação. Uma decisão foi tomada como única alternativa, considerando o imediato: jogar o caminhão n'água. Seria uma operação complicada e que exigiria muito cuidado para não complicar mais ainda a situação. Velhos cabos de aço foram juntados e com eles o caminhão foi amarrado fortemente do pára-choque e eixo dianteiro aos mourões no barranco. Feito isto, soltou-se a outra corda e com a ajuda de muita gente, o batelão foi empurrado para trás: o cuidado tinha de ser no sentido de evitar que a carroçaria caísse sobre o batelão. Deu certo, o caminhão caiu de vez no rio, levantando um vagalhão de água. Dele só uma parte da cabina e um pedaço da carroçaria, perto do gigante, ficaram fora d´água. A primeira operação foi tirar um pouco da carga da carroçaria para tornar o caminhão mais leve. A segunda foi a mais complicada: levantar e calçar as rodas presas no fundo do rio. Revezamos na operação: eu, Zé Branco e Tarcísio, um jovem cearense que recentemente se instalara no Núcleo. Era um garoto astucioso, lépido e muito disposto. Um mergulho para ajustar o “chicão” numa parte qualquer do caminhão e, depois, de mergulho em mergulho, ele foi sendo rodado. Ninguém acreditava naquela operação, nem eu mesmo, mas era o que podíamos fazer. Encurtando: conseguimos levantar as rodas o suficiente para colocar sob elas os pranchões, apoiados em montes de lajes. A traseira ficou, assim no mesmo nível da dianteira, mas tudo coberto pelas águas, seria uma temeridade arriscar a arrancada só com a força do caminhão, era preciso um adjutório. Zé Branco foi cuidar disso. Sossegamos um pouco e, com a saída dele, foi que sentimos a fraqueza do corpo, enrijecido pelo tempo demorado dentro d´água. Titiritávamos de frio e, na barriga, um buraco imenso. Providencialmente fomos socorridos com o alívio para o frio: uma boa garrafa de pinga trazida por uma alma generosa moradora nas barrancas do rio. Para comer tínhamos, nos guardados, farinha e rapadura. Energias renovadas. Por volta das dezoito horas, já se anunciando o lusco-fusco, Zé Branco chegou com uma boiada conseguida na fazenda de Valu Mendonça, um homem muito rico que começou a vida fazendo travessia de abóboras em canoa, naquele local – daí o nome de Porto das Abóboras. Os bois, quando chegaram na rampa empacaram espantados com visão do caminhão, só com a cara fora do rio e o grande número de pessoas naquele palco. Nada os fazia descer, nem o terrível ferrão. Zé Branco astuciou uma alternativa: desceu por outro local e chegou na rampa pelos lados. Amarrou uma grossa corda no caminhão e a outra ponta no cambão preso na canga da junta de coice. Não precisou tanger os bois, bastou o ronco do motor e o candeeiro sair da frente. Numa arrancada, o caminhão pulou quase chegando à beira do rio. Na frente, o que se via eram canzis partidos. A saída só não se deu de todo porque acabou a prancha e o caminhão atolou. Com paciência repetimos a operação, nessas alturas mais fácil, pois o caminhão estava num lugar bem mais raso. Lá pelas vinte horas o caminhão já estava no alto do barranco, escorrendo água do diferencial, da lataria e carroçaria. Diante daquele quadro o Valu Mendonça sugeriu que fizéssemos um pouso na sua casa, pois o caminhão não poderia seguir viagem soltando água daquele jeito, principalmente do diferencial. Não dava, era preciso chegar logo a Pirapora e voltar no rastro, pois o Núcleo estava sem mantimento. Agradecemos e tocamos viagem. Chegamos a Pirapora no outro dia, para o almoço, porque dormimos à entrada do terceiro trecho, com receio de ficarmos presos na areia e termos que remover o caminhão no escuro. Foram dois dias de viagem. Quando chegamos à escola de Pirapora, por volta das onze horas, o Capitão João Almeida, diretor, nos recebeu com espanto e preocupação: “Onde estavam vocês? O Manoel (Cel. Almeida) já mandou o Capitão Pedrinho sobrevoar a estrada a procura de vocês que estão sem dar notícias há dois dias e ele não viu nada do alto” (sobrevoou feito com o avião Piper, o Anjo Verde da Caio Martins). Pior. As notícias geralmente correm truncadas. Teve gente que tentou atravessar no porto das Abóboras naquele dia, tendo regressado do Capão Redondo (hoje Santa Fé de Minas) para São Romão diante da notícia do acidente que, aí foi truncado: “O caminhão da Caio Martins caiu no rio e o motorista tá morto, num acharam o corpo dele”. Pela a radiofonia a notícia, truncada, chegou ao Núcleo e a Pirapora, razão do Capitão imaginar estar diante de um fantasma. Tudo esclarecido ele correu ao rádio e deu a boa notícia para o pessoal da Conceição. Graças a Deus eu estava vivo. Mais interessante ainda é que sequer tive tempo para comemorar a minha ressurreição e dar uma esticadinha a Pirapora para tomar minha cerveja geladinha no Bar Tudo Azul onde passaria um colírio nos olhos vendo as lindas morenas locais - na garagem já estava carregado um Chevrolet 51, prontinho para o regresso. O Capitão anunciou: “Mandaram esse caminhão de Belo Horizonte para ficar no lugar do Ford e pediram para você voltar hoje mesmo porque na Conceição não tem mais nem arroz”. Descansamos até a hora da janta; por volta das vinte horas já estávamos, de novo, na estrada – eu, meus ajudantes Zé Branco, Tarcísio e passageiros – incrível, como eles ficavam sabendo das viagens de Urucuia para Pirapora e as de volta. E mais: uns garotos, vindo de Belo Horizonte para serem internados no Núcleo – todos aboletados na carroçaria, debaixo da lona, seguros para não caírem durante o sono. Foi a viagem derradeira do Ford. Foi descansar, merecidamente descansar.


CHEVROLET

A sensação de dirigir um Chevrolet 51, depois de uma temporada ao volante de um Ford francês, é a mesma de estar dirigindo um automóvel hidramático: macio, gostoso, suave, mas sem nenhuma emoção. O Ford era pesado, grande, cara chata (pouco comum naquela época), motor zoando dentro da cabina, volante reforçado e a caixa de marcha seca; tinha a redução e freios mistos – elétrico e óleo. O Chevrolet, diante do Ford, parecia um carrinho, todo esnobado: o volante era fininho, delicado, a marcha passava-se como manteiga, sem precisar usar embreagem e seu motor não cantava alto, sussurrava como uma brisa. Não se mostrava coisa própria para a dureza do sertão. Era o caminhão que me esperava em Pirapora, quando o Ford foi recolhido. Pegamos a estrada noite adentro. Num trecho de areia, mais suave que o terceiro trecho, sem poder deter o caminhão, fui de encontro de um pau estendido no leito – coisa comum, pois os caminhoneiros estavam sempre forrando a areia com paus e ramos para vencer o banco. Não havia como desviar e seria uma imprudência parar, o que significaria ficar preso na areia. De repente uma pancada - uma roda pegou a ponta do pau que foi direto no fundo do caminhão. Nada de anormal, aquilo era comum e a viagem prosseguiu. Nisso o Tarcísio me chamou a atenção: “oiá aí a embreagem, tá no chão”. De fato, estava, mas não era relevante, enquanto o caminhão estivesse andando, pois as marchas eram passadas no tempo. Se no Ford com sua caixa seca era comum, imagina só naquela manteiga. Ao chegarmos em um trecho acidentado e cheio de buracos, prudente foi consertar a embreagem – o pau danificara um tirante que amarramos com arame, sem risco, pois pouca era a sua valia, no comum. Ao acionar o motor para prosseguir a viagem, quem disse que o arranque funcionou. Pior veio depois: ao testar a bateria, ela não tinha carga, o que impedia até mesmo o motor ser acionado no tranco. Quando se está no sertão, onde não se vê uma viva alma, não se perde muito tempo em imaginar o que fazer. Recomendei ao Tarcísio para cuidar do caminhão e dos meninos e me pus na estrada, acompanhado por um dos passageiros, um senhor que se dizia consertador de máquina de costuras, e que ia para o Urucuia em busca de serviço. Nosso destino era o acampamento da ferrovia mais próximo – o Sexto Trecho. O dia raiava mansamente. Caminhamos pela rodovia uns doze quilômetros e depois, na estrada para o acampamento mais quatro até chegarmos ao acampamento. Lá chegando, não me animou o que vi - parecia uma praça abandonada com umas carcaças de trator se enferrujando no tempo e nenhum movimento. Não vi nenhum veículo. Aquilo me deu uma sensação ruim e não estava enganado, pois ao chegar ao barracão do administrador, ele constrangido me informou que o único carro em funcionamento estava em Pirapora há dois dias e que ele só estaria de volta dias mais tarde. A única bateria estava nele. Agradecimentos feitos, retornamos à estrada, ali nada podia ser feito e nem o administrador tinha como nos levar de volta. De volta à rodovia senti um cansaço incrível. Minhas pernas estavam dormentes e não resistiam mais a caminhada. Chamei o seu Zé, era o nome do companheiro: “Vamos descansar um pouco naquela sobra ali” - apontei para um enorme pequizeiro de sombra frondosa, o que era muito agradável no calor abrasador do sol a pino. Seu Zé me alertou: “vai sê pió. Se o sinhô pará vai doê mais e depois o sinhô num guenta andá”. O conselho passou longe. Arriei o corpo na relva e cochilei. Despertou-me um bom tempo depois, o ronco de um caminhão que vinha cortando o cerrado em nossa direção a caminho de Pirapora. Alegrei-me por inteiro, mais ainda quando me pus de pé, ao sentir cãibras nas duas pernas. Como o seu Zé disse: se fosse para retomar a caminhada eu não iria a lugar algum. Chegou o caminhão, um possante International. Na estrada, naquele tempo, todos eram solidários. O motorista, um rapaz meu conhecido de outros encontros, cujo nome perdeu-se nas brumas do tempo, de pronto abriu a porta da cabina para nos socorrer. Andamos pouco quando divisei o Chevrolet, bem longe do lugar onde havia deixado. Levei um susto danado. Ao chegar mais próximo deparei-me com o Tarcísio debaixo da carroçaria, com o motor de arranque desmontado, lixando as escovas. “Que isso, Tarcizinho? Como esse caminhão veio parar aqui sem bateria e quem o trouxe?” De cabeça baixa, sem se desviar do motor de arranque ele deu a explicação: “Cês demoraram muito e intão resolvi mexê. A cuma o arranque num tava rodano, tirei ele e fiz uma boa limpeza nele e, adispois de montá ele funcionô e pra num perdê tempo eu truxe o caminhão. Chegano aqui, no passá um buraco deixê ele morrê e aí num pegô mais. Tô limpano de novo”. "E a bateria que estava descarregada, o que é que você arrumou?"- dei de saber. Dando de ombros ele mandou-me de volta: "só sei que funcionô. Pode sê que a gente num olhô direito". Não vi os meninos por perto. “Cadê os meninos, Tarcizinho?”. Sem demonstrar preocupação ele respondeu: “Tão no mundo procurano água. Empanturraram de farinha e rapadura e acabaro com a água toda”. Verifiquei os odres (sacos de couro onde era carregada a água) - não havia uma gota. De um barranco divisei a meninada ao longe, num fundo de uma grota. Aos gritos os trouxe de volta. Montado o arranque, ele não funcionou. O colega então encostou o canto da carroçaria do seu caminhão na do Chevrolet e empurrou o suficiente para funcionar o motor e lá fomos, sertão adentro. À tardinha ainda estávamos no Escuro – uma belíssima fazenda plantada nas margens do córrego do mesmo nome. A sede era pouco mais de um rancho, porém situada numa bela praça coberta de pequizeiros, sucupira preta e outras essências ricas do cerrado. A gente dali era muito hospitaleira e amiga - onde surgiu outro problema, ao passar numa ponte estreita: a frente do caminhão entrou alinhada, mas a traseira batia no guarda-mão. O parafuso de centro de um dos jogos de molas partira e, com isso, e o caminhão estava descentrado. Foram horas no conserto e, com isso, a meninada se espalhou outra vez, dessa vez com melhor sorte, com a descoberta de uns pés de manga numa propriedade próxima – foi o almoço e a janta da turminha. Chegamos ao Núcleo de madrugada, com a comida, um ressuscitado e, ainda, com uma leva de novos alunos – terrivelmente endiabrados.


CHEVROLET E FORD

O Chevrolet suportava, estourando, cinco mil quilos. Era ele, então, o único meio de transporte do Núcleo com a aposentadoria do Ford. Em Pirapora um farto estoque de alimentação e outras mercadorias aguardam oportunidade de serem transportados, o que precisava de certa urgência dada as proximidades da estação chuvosa. Seriam necessárias muitas viagens para dar conta do transporte. Assim, foi colocado à disposição do Núcleo o Ford francês de Pirapora que ficou por conta do Zé Maria. A primeira viagem que fizemos foi memorável, - a primeira com dois caminhões, ao mesmo tempo, cortando o sertão urucuiano - para aquela época era um comboio. Tudo correu às mil maravilhas. A segunda foi diferente: carregados pegamos a estrada numa viagem muito normal até que o Chebinha resolvesse criar problemas. Sem dar avisos, ele começou a tossir e tossir até engasgar de vez, deixando de funcionar . O problema foi logo descoberto: era na injetora de gasolina, um diafragma de couro correndo dentro de um cilindro, preso na cabeça de um êmbolo que servia para injetar gasolina na câmara do carburador. O diafragma era de couro e, com o uso prolongado, suas abas perderam a consistência dobrando-se, e, com isso, dando passagem a uma quantidade de gasolina maior do que a necessária, além da capacidade do carburador para pulverizá-la. Afogado ele não funcionava. Minava gasolina para todo lado. O trabalho era tirar o carburador (pé-de-ferro) e colocar o diafragma na posição certa. Não era difícil, mas ficou cansativo, porque o caminhão andava poucos quilômetros e começava a engasgar novamente. Não tinha outra solução, senão uma peça nova, o que seria impossível naquele fim de mundo; também não era possível improvisar, pois a peça era muito delicada e não era disponível o couro igual ou parecido. A viagem se arrastou, o que irritava Zé Maria no seu Ford fogoso. Ele se via obrigado a esperar o Chebinha, pois era nele que ia o combustível e, à falta de outro tambor, não dava para dividi-la para que ele seguisse em paz. Assim fomos arrastando pela estrada afora. Dava até para ele assar carne enquanto me aguardava, em algum ponto, para reabastecer, onde o encontrava, muito nervoso, xingando sem parar, jogando toda a culpa do mundo no pobre Chebinha e de sobra em mim, como se eu fosse culpado pelas dobras renitentes de uma peça de couro. Numa das paradas, já próximo da Boa Vista, passado o bonito córrego dos Caldeirões, Zé Maria xingou mais do que podia e achando que sua gasolina era o suficiente para chegar à Boa Vista, deixou-nos para trás. Devagar, como uma tartaruga, fomos arrastando no mesmo caminho até que, bem na frente, numa longa subida, lá estava parado o Ford com o Zé Maria rodeando-o, dando os sinais de sua impaciência: acabara a gasolina. Fui brincar com a situação. Para quê! O cara virou uma fera, esbravejou, completamente transtornado. Se no Urucuia tivesse mulheres eu diria que era caso de paixão e que ele precisava, com urgência, encontrar alguém. Pois bem, colocada a gasolina, veio o castigo, o Ford não pegou. Bate e bate no arranque, nada, até a bateria se esgotar. Só restava ir para o tranco e isto de ré, descida abaixo (azar dele que não tinha, no caminhão a salvadora manivela). Pior ainda: o caminhão não funcionou no tranco, na primeira vez e, com isso, adeus freios que só atuavam bem com o motor funcionando e, da mesma forma soltou-se a redução – o que às vezes ocorria, quando desligado o motor -, caindo o caminhão na banguela. O perigo era enorme e o jeito foi jogá-lo para dentro do cerrado e lá foi Zé Maria quebrando cagaiteras e pau torto até achar um tronco mais firme que segurou o caminhão, deixando como saldo, um canto da carroçaria quebrada e uns arranhões na lataria. Nada grave. Zé Maria, lívido, saindo do sufoco, foi logo gritando: “Tudo culpa desse cheba f.d.p..." É, mais afinal de contas, para ele sair do mato, teve que ser puxado pelo Chebinha, engasgando e tossindo, mas valentemente capaz da missão. A briga foi com o Cheba, mas sei lá por qual motivo, Zé Maria ficou de cara torcida um tempão comigo. Ainda bem que na viagem seguinte ele foi sozinho e o Cheba para o estaleiro, à espera de um diafragma novo. Essa foi a minha última viagem como caminhoneiro, pois uma grande missão me aguardava.


VIAGENS DE JIPE

Estradas de areia cortavam o cerrado, serpenteando os lugares mais acessíveis, o que demonstrava terem sido abertas com os pneus dos carros, pois ali jamais passara um trator. Era comum, em certos pontos, diante dos enormes bancos de areia, a existência de vários ramais, como veias serpenteando o capinzal - com o tempo um deles se transformava na estrada principal ou a real, como diziam na região. Os córregos, quase todos, eram ultrapassados no vau, existindo poucas pontes – as existentes eram precárias, velhas, caindo aos pedaços -, e alguns mata-burros que, na verdade eram passadores: dois pranchões de cada lado, no caminho das rodas. Atravessar as pontes era uma temeridade, o que se evitava dando uma volta de léguas até à cabeceira do riacho que ela cobria, abrindo caminho no meio do cerrado, derrubando pequenos paus com o pára-choque do carro. A viagem de jipe, embora fosse um veículo mais ágil, não tinha tanta presteza, pois era impossível desenvolver velocidade na estrada de areia com enormes facões (montes de areia, como cocurutos, no meio da estrada, provocados pelos pneus dos caminhões de bitola mais larga). Com o jipe era preciso colocar as rodas de um lado sobre o facão e as outras, do outro lado, no leito da estrada; qualquer descuido, saindo a roda que corria pela linha do facão, o diferencial atolava na areia e, aí, o carro balançava como uma canoa em vagalhões, tornando-se difícil segurá-lo e, comumente, ele saía do leito, avançando cerrado adentro ou então, por si, dava um cavalo-de-pau, levantando areia e voltando a frente para o sentido contrário da ida. Outras vezes, saindo do cerrado, nas proximidades dos capões ou de um córrego maior, entrava-se em verdadeiras crateras de difícil ultrapassagem – o pequeno veículo se contorcia todo, ameaçando tombar-se a qualquer momento. Era preciso jeito e cuidado para não ficar retido num buraco enorme. Era muito sofrimento, preciso muito arrojo, mas havia a compensação da natureza – embora inóspita, muito bonita, com a sucessão de veredas, campinas a perder de vista, muito encontro com bandos de emas, seriemas e veados, que, à chegada do jipe saíam espavoridos pelo cerrado adentro. Quantas vezes era deixado o jipe, ainda rolando na areia, para correr atrás de filhotes de emas que, por esperteza demais, desapareciam nas moitas de capim como por encanto, não deixando nem sinal. Com as mães é que não ficavam, pois a certa distância elas rondavam ameaçadoramente, emitindo profundos gemidos, reclamando os filhotes. Fiz dezenas de viagens a Pirapora e São Romão, resolvendo problemas de última hora. O jipe era uma espécie de ambulância do Núcleo, só viajava em casos de emergência. Das tantas viagens lembro da que mais me afetou emocionalmente. A Escola vinha de um período de beligerância com os Palmas, vencidas as eleições de 1958 - como já foi dito noutras passagens. Num certo dia, por volta das oito horas, apareceu no Núcleo o filho do prefeito, Fernando Palma. A sua chegada chamou a atenção de todos, deixando-nos de sobreaviso, dado a antipatia reinante entre os Palmas, do ramo do prefeito, e os moradores da Conceição. Chegou e foi direto conversar com Audálio, diretor da Escola. Demoraram na conversa. Ao fim de algum tempo recebi um chamado do diretor e lá fui, ressabiado, saber do que se tratava. Ele foi direto, na frente do Fernando: “João, apronta o jipe para fazer uma viagem a Pirapora, agora”. Assim que ele percebeu que eu iria perguntar de que se tratava atalhou com precisão. “Vai e volta aqui depois”. Saí da sala, mas não fui cuidar do jipe, queria antes saber do que se tratava. Assim que o Fernando deixou o escritório voltei à procura do Audálio, que me contou a história: Fernando precisava estar em Pirapora no outro dia, sem falta, assunto da mais alta importância e muito sério para ele e coisas mais. “Se é para ele então que se dane. Eu não vô”. Audálio, no seu jeito peculiar e bom psicólogo que era, tratou de remendar a situação, mexendo naquilo que mais prezávamos: o amor à Escola. Explicou que era aquela uma oportunidade de acabar com as desavenças, pois os Palmas vieram estender as mãos, com uma condição especial – estavam dependendo da Escola. Uma oportunidade dessa não poderia ser perdida, ainda mais pelo que representávamos na região, elementos que chegaram para modificar o meio e filosofias mais. Convenceu-me. Às doze horas deixei o Núcleo rumo à Boa Vista. Lá peguei o Fernando e três moças que estudavam em Esmeraldas (Curso Normal), filhas de Geraldo e de Tarcísio Palma, irmãos de Zé da Palma – nem é preciso dizer o quanto estava cheio o pequeno jipe, com lotação completa e ainda a bagagem de estudantes que, quando voltavam para a escola, levam sempre o “mantimento” – doce, queijo, requeijão, farofa e muito biscoito. Pior de tudo é que chovia, obrigando-nos a descer a proteção de plástico das janelas. No percurso, nenhuma palavra trocada. Fernando ressabiado e eu ressentido, só as meninas tinham direito a tagarelar e rir por qualquer coisa. Ao nos aproximarmos do Porto dos Cavalos, no rio Paracatu, uma zoada muito forte chamou-nos a atenção despertando-me a curiosidade para saber de que se tratava – tempo não levou para descobrir: era o grito do rio numa enchente fora de proporções, deixando as barrancas para lamber os ranchos e carregar árvores inteiras, carcaças de vacas e pequenos animais: um espetáculo maravilhoso, mas amedrontador. Uma indisfarçável alegria veio-me no sorriso: acabou aqui a viagem. “Não vou dar o braço a torcer de todo”, pensei. À chegada do barranco, antes de deter o carro, chegou Honório, o velho rabugento, mas muito bom, que tomava conta da travessia da lancha. Veio logo gritando: “Pode vortá, aqui num passa ninguém”. Longe de brigar como de outras vezes, senti prazer. Fernando desceu do jipe e puxou o velho de lado. Dava para perceber que a conversa era brava, pois Honório gesticulava muito, tirava o chapéu de couro da cabeça e batia com ele nas pernas. De longe permaneci na minha alegria: “Não vai dar”. De repente tudo serenou e lá vêm os dois abraçados. Senti um mau sinal naquela paz, pareciam dois carneiros cansados das marradas que voltavam a pastar juntos. O danado do velho chegou à porta do jipe e falou com autoridade: “Ô minino (era como me tratava, por ser ainda de cara lisa, sem barba e bigode, nos meus vinte anos), assunta aqui. O rio tá cheio, mas num tá ofereceno pirigo não. De jeito dá pra vencê ele. Vamo encostá na prancha”. Quis argumentar, mas ele não deu tempo, gritando seus ajudantes: “encosta a lancha, home, puxa os pranchão!”. A entrada foi fácil, pois o barranco do lado em que nos encontrávamos era muito alto, a água não o atingia. O rio estava tão cheio que ao invés de embicar o veículo, descendo, para embarcar, naquele dia ele teve que subir para alcançar o batelão. Outro detalhe: o embarque não fora feito pela lateral da lancha como de costume - embarcar de comprido, como hoje se faz, em rampa de aço. Naquele dia, sem que eu atinasse, na hora, o embarque foi de comprido. A lancha foi deixando a margem vencendo uma correnteza muito forte, desvencilhando-se de paus e gado morto que desciam boiando. Levou bem mais tempo para chegar ao outro lado, onde o pior nos aguardava: não havia barranco para a atracação. Na outra margem a lancha foi empurrada no meio das árvores, bem por cima do porto de embarque e desembarque comum - tudo coberto pela cheia. A cerca de uns cinqüenta metros além de onde deveria ser atracada ela parou encalhada na lama, mas ainda faltava um bom pedaço de água para ser vencido até à terra firme. Antes de dar o último suspiro, capitulando-me à realidade de ter, de qualquer jeito, de levar o Fernando a Pirapora, tive mais um alento: “Não dá, para desembarcar, o jeito é voltar”. E foi o que fiz, descendo do jipe para falar com o velho Honório e, mais uma vez ele me surpreendeu pela agilidade das decisões acompanhadas de imediata ação. “Vamo lá moçada, desce lá, toma pé na água”. Um ajudante desceu. A água chegava-lhe ao peito. “Cruz-credo!”, gritei. Mais o velho já decidira, mais uma vez antes de mim. “Dá pra descê. Se atolá a gente arranca ele, o bicho é leve”. Falando isso já deu ordem para desembarcar as meninas que foram carregadas nos ombros dos auxiliares até chegar à ponta da estrada onde lambia o rio. De imediato mandou jogar os pranchões. Foi aí que entendi porque o jipe fora embarcado de comprido – era para a lancha ganhar a maior proximidade possível da terra. Astucioso o velho Honório. Quatro homens debaixo de um pranchão e quatro debaixo de outro, com água chegando ao peito. O velho, virando-se para mim gritou: “Vamo minino, qui qui ocê tá esperano? Num é home não?” Aí senti que não podia recuar, mesmo que não quisesse e porque não era minha obrigação nem dever jogar o jipe dentro do rio naquela situação de perigo. O que me importava o problema do Fernando que dias antes vivia às turras com o pessoal da Escola? Mas o danado do velho mexeu com os meus brios questionando se eu era ou não homem, na frente de tantos cabras caldeados no sertão e tendo ainda como testemunhas as “meninas de Esmeraldas” – o que não iriam dizer elas quando chegassem à Escola se eu recuasse? O que pensaria a minha menina Vilma? Só gritei: “Dá um tempo”. Levantei o capô do jipe, afrouxei a correia da hélice do radiador, cobri o distribuidor com plástico, untando-o com graxa e voltei ao volante. Assim que me assentei, num átimo, Fernando assentou-se ao lado. “O que você está fazendo aqui?”, perguntei seco. Ele, branco como uma vela, respondeu: “Vô com você. Se acontecer qualquer coisa de ruim quero tá junto”. Embora não precisasse, apreciei o gesto dele, seria mais um para rolar água abaixo se algo desse errado. “Segura aí então, lá vamos nós”. Toquei o jipe para cima dos pranchões erguidos nos ombros dos caboclos. Assim que as quatro rodas neles se apoiaram, fora da lancha, devagarinho eles foram arreando os pranchões até chegar ao nível da água, quando sem aviso, e pressentido a descida do jipe, eles soltaram, de uma vez, as peças que se afundaram incontinenti e, quase junto, o carro mergulhou n´água barrenta, precipitado como um peso solto do alto. O barulho do impacto foi como uma bomba, subindo água a quase cobrir a capota do jipe. Apertei o acelerador fundo, estando com o jipe tracionado nas quatro rodas e ligada a redução, o motor roncou debaixo da água que cobria o capô e invadia o interior do carro; foi questão de segundos: como um touro bravo ele saiu rasgando a parede de água barrenta, abrindo dois vagalhões dos lados. Os homens gritavam, jogavam o chapéu para cima e urravam; as meninas riam emocionadas, atrás das mãos que lhes escondiam os rostos. Saímos bem na ponta da estrada e lá, enquanto do jipe escorria água, eu era abraçado e cumprimentado com todo respeito. Era um cabra macho, sim senhor! Se me vissem, igualmente o Fernando, momentos antes da arrancada, julgariam que tocávamos uma bateria com os joelhos e que estávamos passando mal do estômago com tanta brancura estampada na cara. A aventura serviu para aliviar a tensão e ajudou no reatamento com os Palmas. De conversas, outra vez, o Fernando me contou como ajeitou o velho Honório: “Dei um boi para ele!”. Não fosse a paz restabelecida eu teria motivo para me sentir vingado, depois: no meu regresso ao Núcleo, dois dias após, fui avisado para tomar outra travessia, a das Abóboras, no Capão Redondo, pois a lancha do Porto dos Cavalos ao regressar da nossa travessia fora colhida por um tronco que deslizava submerso, partindo lhe a hélice, o que levou o velho Honório e rapazes rio abaixo a uma boa distância.


CARNAVAL DA SOLIDÃO

Chovia. O sertão parecia derreter. Sapos, caranguejos e cobras invadiam nosso rancho querendo o aconchego do quentinho. O campo de aviação, apesar do dreno, estava coberto por uma lâmina de água cristalina onde o quem-quem saltitava, e pousavam bandos de garças em busca das piabas. Era uma tristeza só. Os trabalhos foram interrompidos com tanta água. Tinha-se que ficar no rancho sem nada fazer. A noite era de uma melancolia profunda, daquelas de inundar a alma de amargura, só deixando espaço para as poucas lembranças que debatiam na ânsia de querer sair. Era fevereiro, somente eu e o Chico no rancho. Todos os bandeirantes estavam de férias e a maior parte dos meninos estava em casa de seus pais, na região. Pouca gente no Núcleo: Zé Branco - de pouca conversa - Vicente e Mariana - a nossa âncora -, Ângelo - um rapaz vindo não me lembro de onde, que trabalhava na olaria, naturalmente sem serviço naquela quadra. Peculiar no Ângelo, o que o tornava muito agradável, era a sua habilidade no cavaquinho e o fato de ser um exímio sambista. Tinha, também, o Venâncio com sua família – ele era o chefe-de-lar, na ocasião. Lá no alto, no pé da serra, Zezinho e sua família – só, mais ninguém. Nas noites, quando eu e o Chico nos recolhíamos ao nosso quarto, ao escurecer, começava uma jornada que parecia não ter fim – atravessá-las parecia uma empresa de querer vencer um oceano num barco sem velas. Pior de tudo é que de costume dormíamos muito tarde, sempre, os dois, com Audálio, à beira da fogueira, cantando e comendo úbere. Os dias e as noites, penosamente, escorriam sem a menor animação. Numa dessas noites, apagadas as lamparinas, baixada a solidão total, teimando para os olhos viajarem para dentro buscando sonhos bons, ouvimos bater na porta de nosso quarto – naquelas férias ocupamos um cômodo voltado para o largo do campo de aviação. Nada respondemos. Novamente o batido e ao tradicional “quem é?”, ouvimos como resposta: “É o Ângelo!”. O Chico quis saber o que queria ele. “Nada, só animá ocês um pouco”. Era estranho, considerando que deveria ser perto das dez horas. Ao abrir a porta, com a lamparina acesa, encontramos o Ângelo com um litro de pinga numa mão e o cavaquinho na outra – já estava alto. “Toma aqui um gole para esquentá”. Achei interessante a preocupação dele, embora tivesse bem tomado, mas não gostei muito da idéia, pois ele sabia que os bandeirantes não bebiam no Núcleo. Contudo, por brincadeira e por estar no fundo do poço, tomei o litro e enchi um copo de vidro com a branquinha. Virei-me para o Chico e o desafiei: “Vamos ver se você me acompanha”. Só para testá-lo, virei o copo de cachaça. O Chico nem esperou o bater dos dedos e a cuspidela. Fez o mesmo e me devolveu o copo acompanhado do seu repto: “Repete se você for homem”. Repeti e ele também repetiu. Bebi outra e ele outra e assim, num minuto, diante do olhar atônito do Ângelo, secamos o litro de pinga. Lembro-me que ele resmungou: “êi, peraí, e eu?” Ficou no que bebera antes. A brincadeira teve como resultado um fogo imediato, fogão bravo. Ficamos literalmente acesos. O cavaquinho gemeu e, no seu tom, cantamos vasto repertório carnavalesco e desembocamos nas famosas guarânias do Chico. No final já sem repertório, fomos para o terreiro, na chuva, gritando e dançando, como dois malucos: “Esmoeu, égua!”. Era o grito de guerra de Zé Lopes. O eco rebatia na serra e de lá o espírito do som respondia: éguaaaaaaaaaa! A animação despertou a pouca gente do Núcleo. O Venâncio chegou, mais tarde, com naco de carne assada e um litro de licor de pequi, a única bebida existente no Núcleo. Foi carne com licor de pequi. No outro dia, tendo a chuva dado uma trégua, cedo foram nos chamar para o trabalho. Acordar como? Precisou muita pancada na porta. De pé tentei tirar o Chico da cama, aos gritos: nada. Ao tentar sacudi-lo, vi que ele passara a noite com um bolo de carne que seu estômago rejeitara. Feder não precisava igual – bafo de pinga e carne azeda, rejeitada, credo! O dia foi um suplício, com a cabeça maior que o mundo, os olhos em fogo, a boca seca e, na garganta, o refugo de óleo de pequi que me acompanhou por semanas. Ainda hoje não suporto o maravilhoso pequi, o fruto sagrado do sertão. Toda “dismazia” tem seu preço, ensinam os urucuianos mais experientes.


PILÃO

Tum...tum...tum... tum... batidas ritmadas eram ouvidas de longe, nas primeiras horas do dia. Sabia-se: acabou o arroz beneficiado. Da tuia vinha o arroz em casca que era colocado em pequenas porções no velho pilão de pau preto e, dois garotos, um de cada lado, com as mãos de pilão de cabeça luzidia de tanto uso, descendo com força, estraçalhando a casca do cereal. Depois aquela poção era levada à peneira e soprada e soprada até que se desprendesse toda a casca, deixando os grãos cobertos de cutícula amarelada. Nas férias, com pouca gente no Núcleo, era comum que eu e o Chico tivéssemos uma passagem pela limpa do arroz. Depois de algumas horas no levanta e bate da mão de pilão as mãos se cobriam de calos de sangue e, assim, na hora do almoço, perdia-se até mesmo a vontade de comer arroz, lembrando do sacrifício enfrentado. Mesmo assim era uma dádiva, pois com o tempo chuvoso, ficando o Núcleo isolado, se faltava mantimento no almoxarifado, começava o drama para buscar as alternativas de alimentação do dia-a-dia. Arroz pilado, feijão e abóbora compunham o prato diário, melhorado, de quando em quando, com ovos – muito raros em certas épocas do ano – ou peixe se alguém conseguia fisgar algum nas águas barrentas, volumosas e impetuosas do ribeirão da Conceição. Sentia-se, então, saudade do macarrão, prato acompanhante dos bandeirantes anos a fio. O complemento tinha que ser rapadura com farinha. No tempo de muita chuva a rapadura perdia o sabor, não servia para ser roída preguiçosamente – umedecida, perdia as beiradas e fica toda mole, como uma posta de carne estragada, toda feia. Uma caça, de quando em quando apetecia bem, mas só por bondade de vizinhos, pois no Núcleo ninguém caçava. E toda manhã, de novo, o tum...tum.. tum... tum..., a cantiga castigada do pilão. Quando ele silenciava a tristeza subia de forma angustiante: acabou-se, também, o arroz. Comendo feijão com farinha e abóbora sentia-se saudades dos calos de sangue nas mãos.


O PERNETA

Guimarães Rosa, em1956, causara uma revolução na literatura pátria com o formidável romance Grande Sertão:Veredas, retratando o universo urucuiano. Infelizmente aquela grande obra não chegara aos nossos olhos de estudantes. Poderia ter sido recomendada até mesmo para análises e debates no período de estágio preparatório para a missão – janeiro a maio de1957. O quanto se aprenderia sobre o sertão..., mas também podia acontecer que alguém recuasse da empresa diante das histórias de Zé Bebelo e Ramirão; mas, por outro lado, poderia se enternecer com a história de Riobaldo e Diadorim, quem sabe a morena dos olhos verdes transvestida de jagunço. Se, por um acaso, antes um mergulho fosse dado nas páginas de o Grande Sertão:Veredas, poderíamos ter vivido com maior intensidade o Urucuia. O conhecimento que tínhamos, assim mesmo de ouvir contar, era o retratado por Afonso Arinos no livro Pelo Sertão – ele vivia sobre o painel do “Anjo Verde”, às mãos do Cel. Almeida que o tinha como bíblia do sertão. Na preparação da Bandeira, necessariamente, deveria ter sido incluída a literatura e mais aprofundamento da geografia da região, além das histórias das "veredas tropicais e morenas dos olhos verdes”. Chegamos ao Urucuia como colonizadores sem conhecer o meio, com costumes diferentes, conhecimentos alheios ao ambiente, como os missionários que além dos dogmas da fé impuseram sua cultura ao comportamento dos índios. Ninguém nos falou de Antônio Dó, famigerado jagunço do município vizinho, São Francisco; dos bandoleiros que infestavam a região, todos vestidos de pele de cordeiro. Romanticamente repetíamos as histórias da velha Joaquina, ambiciosa fazendeira que tinha sua sede onde plantamos o Núcleo. Mais tarde viríamos conhecer melhor sua história através da pena de Manoel Ambrósio no livro “A Ermida do Planalto”. Urucuia era sertão só de sertão; minguado de gente com terras vastas, sem dono. Gado se criava na solta, sem saber da soma das crias tidas nos campos abertos, cortados de veredas; lavouras de subsistência e nada mais do que a pobre esquecida gente sem saber do mundo, escondida em ranchos incrustados nas dobras de serras, beira-córregos e ribeirões, ou perdida nos gerais à beira das veredas em naquinhos de terra sem serventia de cultura, só para ter o “de seu”. Gente pacífica, parecia, mas que não dispensava a garrucha, a espingarda, o facão, a peixeira ou o punhal. Invariavelmente, todos andavam armados, até as crianças – era costume arraigado. Foi de nosso conhecimento que, precedendo nossa chegada, o Cel. Almeida teria determinado o desarmamento geral na região próxima da Conceição. Idealistas como éramos, o fato nada representou para nós que tínhamos todo o homem como o ser de bem. A realidade nos bateu, assustadoramente, algum tempo depois. Moradores da região começaram a procurar o Núcleo pedindo a presença da polícia. Informavam que um bando de jagunços comandados por um tal de “Perneta” estava assombrando a região, roubando gado, animais e maltratando gente inocente. “Cabras de sangue ruim”, diziam. Notícias vindas de longe não nos assustavam. A chuva se sabe chegando, quando o céu fica turvo e o vento abre caminho primeiro, soprando frio em cima da gente. Um dia foi o que aconteceu: o Perneta e seu bando já se arrastavam mais nas proximidades e, pela lógica de sua jornada de ataque, teria que passar pelo Núcleo. Aí deu para tirar o sono. De arma o Núcleo tinha apenas uma carabina “papo-amarelo” que só Zé Maria arriscava dar tiros. Audálio, sobressaltado, repetiu o SOS antes enviado, por muitas vezes e muito mais alarmado pela presença de tantas crianças no Núcleo. Em menos de uma semana recebemos um oficial da polícia militar à frente de alguns soldados – era a patrulha para prender o Perneta. O Núcleo forneceu a pousada, alimentação e a tropa de animais que eles usavam para as incursões de até uma semana, cada. Notícias eram dadas, só quando eles retornavam: foi um cerco ali, outro acolá e o Pernenta sempre sovertendo no sertão. Como capítulos de novelas (da Rádio Nacional), acompanhávamos ansiosos a perseguição. O vilão sempre escapando aos cercos. Ao cabo de algumas incursões o oficial deu por encerrada a sua missão. “Prendeu o Perneta, Capitão?”, quis saber Audálio. “Prender não prendi, mas acabei com o bando dele. Estão quase todos na cova rasa. O Perneta escapuliu liso, acredito que ele fugiu para Goiás”. Era o que dele dizia o sertanejo: “ele tinha parte com o demo, bala num entrava nele e ele survetia na sombra tale quale o coisa ruim sem deixá siná”. Depois disto nunca mais se falou no Perneta na região. Ficou só a fama de um homem perigoso, assassino cruel, mas que, intrigante, - como tantas histórias do sertão urucuiano – ninguém vira a sua cara. Sabia-se que era perneta pelo caminhar, quando descia num rancho para acabar com o povo – maquitolava esbravejando, ao tempo em que disparava a carabina primeiro, para depois saquear. Acredito que ele existiu, pelos entreveros com a policia, mas quase tudo que dele se falou foi fruto de muita fantasia, uma lenda criada. O sertanejo cria muito, valoriza o sobrenatural e se assusta com o mal que transforma em coisa desproporcional buscando guarida, nas benzeções e rezas, sentindo sua fraqueza. Mais tarde tomei conhecimento de versos contando a passagem da Coluna Prestes na região. É isso aí: o povo jamais a esqueceria, repetindo sempre com todo temor: “Quem diz que a Coluna invém, capano os home e as muié tomem?”


O REGO

Embora fosse cercado de água, o que carecíamos era exatamente dela, no rancho, demandando um sacrifício enorme prover a cozinha e os banheiros, o que exigia transportá-la, diariamente, em tambores, do Conceiçãozinho, a mais de quinhentos metros de distância, e, depois, encher a pequena caixa do improvisado banheiro. Com aquela situação precária, quase sempre, no fim do dia ou à noite, o mais comum era o banho direto no Conceiçãozinho. Por isso foi saudada com muita alegria a notícia da construção de um canal para puxar água de um ponto mais elevado do córrego Conceiçãozinho para o Núcleo. O que não sabíamos era a imensa dificuldade que teríamos pela frente. O córrego, caindo da serra, numa bela cachoeira – claro, do mesmo nome -, corria depois entre pedras e altos barrancos abaixo do nível do Núcleo – pela distância que passava do rancho não era viável puxar água através de bomba. A solução era mesmo o rego. A primeira providência, certamente, deveria ser determinar o ponto de onde seria captada a água. Nos cálculos do Dr. João Pitanguy foi exatamente no pé da cachoeira, o ponto mais alto do córrego, no vão que corria às margens do ribeirão da Conceição – o mais lógico, também, pois, do contrário o rego teria que correr pelo alto da serra, empresa impossível naquela época. Veio, depois, o trabalho para tirar o nível, com a picada avançando pelos meios da serra, deixando os grotões lá embaixo. Em certos pontos, ajudando Dr. João Pitanguy, eu imaginava que estávamos subindo a serra de tão alto que avançava a medição. Depois veio a escavação, trabalho que envolvia bandeirantes, alunos da escola e colonos, num sacrifício enorme, pelas condições do local: fazer um corte em terreno inclinado. Os que iam à frente, fazendo as primeiras escavações, não tinha como se firmar, tendo que, primeiro, abrir buracos para apoiarem os pés. Muitas grotas, compridas e profundas, eram saltadas, nos trechos mais estreitos; nelas, depois, estiravam toras lavradas de aroeira que serviriam de base para a alvenaria. Atrás das escavações vinham Zezinho Cearense e seus filhos pedreiros, contratados para a fazerem a obra. Paralelo ao rego, no pé da serra, trilhas foram abertas para dar passagem ao trator com carreta e ao caminhão, levando água, tijolos, areia e cimento para a construção. Da estrada até no alto, o material era levado nas costas, num trabalho árduo, arriscado e inclemente. Ao fim do dia, os ombros dos carregadores estavam esfolados, os braços rasgados pelos galhos de paus e os pés dilacerados nas pedras. A obra era tão penosa que, aos nossos olhos, parecia não andar. Avançava-se poucos metros por dia. O que a alimentava era muito mais do que a necessidade imediata de água: era a nossa determinação, a força do ideal, a crença inabalável que tínhamos em tudo que se colocava o nome de Caio Martins – seria a grande obra da Escola. Um dia a água escorreu pelo rego e serviu ao Núcleo, o que só vi anos depois, quando Conceição já era mais do que um pequeno Núcleo, transformado num aglomerado de muitas casas, com muitas famílias instaladas cumprindo-se o propósito básico da colonização. Hoje, passados tantos anos, lembrando com orgulho daquele trabalho heróico, fico a refletir como foi possível realizá-lo meio a tanta precariedade, apenas com as mãos e o coração. Um risco cortando o seio da serra, acompanhando suas curvas, transportando suas grotas, numa extensão de quatro mil metros (ou mais, não sei ao certo). O quanto custou de sacrifício, quanta dor nos ombros, nas mãos e nos pés, cada tijolo ali assentado? Hoje, tenho certeza, o Estado não poderia, jamais, ter sido omisso, deixando àqueles jovens e crianças uma empresa que seria de sua obrigação; deixando-os entregues à própria sorte, arriscando a própria vida. Aquela empresa poderia ser evitada, resolvendo-se o problema de forma mais racional, prática e econômica. O heroísmo daquelas crianças não chegou às páginas dos jornais, não bateu nos gabinetes do Governo e sequer saiu da solidão do Urucuia. Aos meninos do Urucuia, presto minha homenagem, do fundo do coração, porque sequer são lembrados por seu trabalho heróico de ter plantado a civilização no então abandonado sertão urucuiano, servindo a propósitos do Governo do Estado.


FUTEBOL

Na cabeceira do campo de aviação foi construído o campo de futebol do Núcleo. Ele ficava atravessado, com os gols localizados bem fora da pista, sem oferecer nenhum perigo ao pouso e decolagem das aeronaves. Ali, todas as tardes, aconteciam as renhidas peladas e, aos domingos, os jogos dos combinados: Flamengo x Combinado Fluminense e Vasco. O Flamengo, embora contasse com a moçada do curso de rádio não era páreo para o combinado que reunia a base do juvenil de Esmeraldas: Zé Maria, Raimundinho, Jonas, Pedrinho, Holmes e eu, contando ainda com Flávio e Chico – um ponta direita veloz que tinha apenas uma grande deficiência: enxergava pouco e, por isso, a bola tinha que lhe ser entregue quase nos pés para ele correr. Saldanha era a estrela do Flamengo – bom de bola, mas muito enrolado e individualista; não podia deixar que ele armasse sua canhota, pois seu chute era muito potente e seco. Não tinha time na região para incrementar o intercâmbio. Foi uma surpresa quando recebemos um convite de Fróis (Bonfinópolis, hoje) para um confronto amistoso. Creio que eles julgavam que nossa turma fosse perna-de-pau ou que fosse nosso futebol de meninada. Jogaram e tomaram um banho de bola. Foi gol a perder de vista. A revanche foi lá em Fróis. Na ida um acidente quase acabou com o passeio: um bezerro atravessou na estrada e Zé Maria, para se livrar dele, jogou o caminhão no mato, indo de encontro a uma árvore, restando algumas avarias e leves contusões em alguns atletas. Mais tarde isso daria problemas dos grossos com o Conselho Diretor da Escola que não aceitou a nossa excursão, mesmo que fosse para um intercâmbio esportivo e de aproximação das comunidades – tudo porque foi amassada a lataria do caminhão. Em Fróis fomos bem recebidos na pensão de dona Maria Palma. No outro dia o jogo. Depois do almoço uma coisa estranha aconteceu: vários dos companheiros queixavam-se de cólica estomacal. Vem o jogo. O time de Fróis bem armado e disposto a tudo. Mal a bola rola, Mário Torres, nosso lateral – um amigo de São Romão cujo pai, João Torres, tinha uma fazenda na região -, sentiu-se mal; logo depois foi Saldanha que deixou o campo correndo em busca de uma moita e, assim, sucessivamente, foram sucumbindo vários jogadores. Fróis marcou um gol, quando nossa defesa estava desguarnecida sem Saldanha e Mário Torres. Tentamos reagir, mas faltavam pernas e os jogadores se contorciam com dores de barriga. Tinha mais: a torcida era hostil, não davam sossego ao goleiro e aos beques dificultando-os até mesmo a bater o tiro de meta – sabidamente eles colocaram as mulheres para darem na gente com os cabos de sombrinha e, não satisfeitas, ainda atiravam pedras sobre nós. Foi um sufoco. Perdemos o jogo, mas não perdemos a classe. À noite nos confraternizamos com a comunidade froense, na casa de Vicente Campos – o líder da local - e nos bares. Tempos depois pedimos revanche. Melhor seria ter ficado quieto. Precavidos não almoçamos na pensão. Entramos em forma no campo. Apitava o jogo Lelis, um rapaz que prestava serviços no Núcleo. Num dos primeiros lances Raimundinho driblou a defesa adversária e fez um gol de estilo. Corremos para abraçá-lo, enquanto, às nossas costas formava-se um bolo. A torcida, comandada pelo farmacêutico do povoado, cercou o Lelis. O farmacêutico (o nome perdi com o tempo, mas sua figura é indelével, um sertanejo forte, magro, firme, rosto coberto com barba preta, um tipo que me fazia lembrar de Tenório Cavalcante) com um revólver em punho gritava babando: “num foi golo, foi ofiçaide”. Raimundinho conhecia bem o farmacêutico, pois namorava a filha dele e, assim, com jeito e promessas, o tirou do bolo, amansando-o para que não fizesse uma besteira, tão possesso se encontrava. Ele concordou em não atirar no Lelis, mas com uma condição: “num foi golo”. Concordamos e o Lelis, por sua vez se viu livre do apito. O nosso trabalho foi administrar o jogo evitando que eles fizessem um gol, deixando tudo no zero a zero. Foi um passeio, mas sem gols. Muitos anos mais tarde, numa festa em São Francisco, reencontrei-me com um, jogador do time de Frois. Ele era o dentista da Vila. Rindo ele lembrou daquele jogo, da dor de barriga de nossos craques e com satisfação contou: “eu fiz um purgativo e o Zezinho comprou a cozinheira para coloca-lo na comida. Foi tiro e queda: vocês jogaram, mas foi no mato”.


TEATRO NO SERTÃO

Na arte, no esporte e relações sociais, o nosso grupo era muito bom. Muitas habilidades foram somadas em anos de estudo e convivência em Esmeraldas – na escola-mãe – onde se desenvolvia uma intensa atividade nessas áreas. Cedo aprendemos a conviver com os fazendeiros da região, operando o que o Coronel Almeida denominou de “Síntese Social”. No esporte, permeávamos com desenvoltura no atletismo, realizando constantes festivais; no futebol era implacável nosso time, (os bandeirantes formavam a base do juvenil da escola) que enfrentava de igual para igual o amador – time dos funcionários e moradores da região; nas artes, fomos afiados no Coro Catulo da Paixão Cearense, com suas doces canções brasileiras e outras adaptadas em belíssimos arranjos feitos pela regente, nossa professora de música, dona Márcia, esposa do Cel. Almeida, juntos aos funcionários, homens e mulheres da região, e no orfeão da igreja, cantando até em latim; genuinamente nosso era o teatro, a Companhia Melo – dos dois Melos, eu e Raimundo. Ele era o inventivo, o arrojado e o diretor das peças; eu, o co-autor – com participação do Jonas – e sempre o ator principal, não só por ser o sócio, mas por ter tido iniciação no Instituto João Pinheiro e no Teatro São Vicente, no bairro Calafate, Belo Horizonte; Jonas e Saldanha atuavam, também, com mais constância, como atores. Encenamos peças memoráveis em Esmeraldas arrebatando o público. A mais emocionante foi a “Vida, Paixão e Morte de Jesus”. Eu fiz o papel de Jesus. Na terceira apresentação, diante do enorme sucesso da peça, resolvemos encenar o terceiro ato - a morte de Jesus -, antes evitado pela complicação de ter que carregar e erguer a cruz num pequeno e improvisado palco. Fomos adiante. Tudo corria bem até que fui colocado na cruz, amarrado de modo a não dar a ver ao público; dos lados os dois ladrões – Carlinhos de Dona Targina era o bom ladrão e o Raimundo o mau. Abriram-se as cortinas, emoção e lágrimas. Nossa Senhora (Maria Coeli, filha do Coronel) e Madalena (Marisa, nossa colega de curso) choravam copiosamente. Nisto a cruz balançou. Estalidos suaves e depois fortes, a cruz pendeu para frente. Fiquei desesperado, pois não havia como me desprender e certamente esborracharia a cara no palco. Esborracharia mesmo, pois a cruz que fizemos era tão pesada que ao transportá-la, açoitado pelos soldados, mal conseguia erguê-la, tinha que ser, literalmente ajudado por dois “soldados”. Aquela trave faria bolacha do meu rosto. Nisto, num salto fantástico e providencial, o sargento Barroso, esposo da nossa tão querida mãe-diretora Dona Maria Célia – deixou sua cadeira na primeira fila e, bem a tempo amparou a cruz quando ela já despencava. Em pé, balançando, ficaram as cruzes dos ladrões. Raimundinho, diante do drama e preocupado com as meninas-atrizes, lá do alto, gritava “Dá licença, gente, dá licença que vou cair”. Ele também foi socorrido. Duas outras peças famosas foram o Diamantão e o Êxodo Rural. O Êxodo Rural era uma peça bem elaborada que contou com a sensibilidade de dona Maria Célia na revisão do texto ou reescrevendo-o. Contava a história de uma família que deixou o campo para ir para a cidade, tentada pelo demônio. Fazia sucesso. A outra, que era apresentada de improviso, contava a história de um garimpo e a ambição dos homens, com direito a índios e muitos tiros. Uma trama muito divertida encenada com o maior realismo possível naquela época e naquele fim de mundo. Foi o Diamantão o nosso carro-chefe no Urucuia: era armado um palco na carroçaria do caminhão e de lá, depois de muitas músicas em duplas e trios, fechava-se o programa com a peça. Sucesso absoluto. De uma feita, para fazer agrado, levamos a peça ao Brejo Verde, lá estava um dos atores, o Saldanha. A apresentação foi na sala de aula improvisada da fazenda, muito apertada de modo que os espectadores ficavam bem próximos dos atores. No final da peça um garimpeiro ambicioso assassina o amigo, dando-lhe dois tiros de garrucha, para ficar sozinho com o diamantão, mas pouco aproveita da pedra que brilha diante de seus olhos, o fruto de sua ambição – os tiros despertam a atenção de índios que rondavam por perto que dominaram o acampamento e ali exterminaram com a ponta de suas lanças o ambicioso garimpeiro. Até chegar a esse ponto os espectadores se divertiam muito com a história, mas diante dos tiros e das lançadas, muitos deles saíram correndo da sala, tudo em razão dos truques, bem arranjados. A garrucha, naturalmente era municiada com balas carregadas com pólvora seca; o garimpeiro que seria atingido, trazia uma bola de borracha, feita de balão, cheia de anilina, no canto da boca. O tiro era dado no momento em que ele se encontrava próximo da coxia de onde o contra-regra munido com uma seringa, também com anilina vermelha, injetava o seu conteúdo no peito do atirado que punha a mão no ferimento e recebia outra dose de anilina e aí, virando-se para o público, estrebuchando, mostrava as mãos e o peito manchados de sangue, ao tempo em que mordia a bolha que trazia escondida na boca, deixando sair de seus cantos, o líquido vermelho. Ninguém diria que não era tiro mesmo. Nisso chegavam os índios vibrando seus tacapes e gritando furiosamente. Depois de uma luta renhida, com muitos sopapos e quedas, um índio tombava o garimpeiro no chão, vinha outro e enfiava-lhe a lança entre o braço e o corpo do lado oposto à platéia. O garimpeiro prendia a lança e tentava se levantar, escorrendo sangue pelo ferimento e pela boca. Morte macabra. Nesse ponto fechava-se a cortina, diante do espanto e alarma geral que tomava conta da platéia. Ao ser reaberto o pano para a apresentação dos atores a sala estava vazia, todos os espectadores tinham ido embora de carreira. No outro dia, pela manhã, quando os garimpeiros apareceram no terreiro causaram o maior espanto. Os caboclos que por lá se encontravam, encarapitados nas cercas de varão, escondiam o rosto. A custa um desceu e chegou perto de Raimundo (o garimpeiro ambicioso), pondo-lhe a mão no peito seguindo-se a pergunta que o intrigava desde a noite passada: “Mais ocê num morreu?”.


RECITAL NO CAPÃO REDONDO

O caminhão lotado de bandeirantes, alunos e funcionários, cada qual na sua especialidade, deixou Conceição numa manhã de dia bonito. Vencida a travessia do Conceição, sempre complicada, e a serra da Boa Vista, ele ganhou o caminho branco dos gerais rumo ao Capão Redondo. Seria a primeira viagem de integração sócio-cultural na região. Até hoje não sei porque a escolhida foi a então Vila de Capão Redondo e não São Romão ou Bonfinópolis. Vencidos os riachos do Mato, Caldeirões e Escuro, chegamos, já quase à tarde em Capão Redondo (hoje Santa Fé de Minas), na bacia do rio Paracatu. Feitas as apresentações com o chefe local, Dr. Miro Leite, fomos montar o acampamento à beira do plácido córrego Santa Cruz para aproveitar a sua areia branca como colchão. A noite foi de festa. De cima da carroçaria do caminhão, nosso “palco iluminado”, mostramos toda nossa arte – trios cantando Prece ao Vento, Índia, Saudades do Paraguay e outras bonitas peças; Chico entoando suas bonitas guarânias; a sanfona de Zé Lopes abrindo o fole em animados forrós; coral e poesias, e até apresentações individuais. Foi uma alegria para os moradores da Vila, então um pequeno aglomerado de casas próximas ao casarão de Dr. Miro Leite e de uma escolinha. Tinha festa no lugar, lembro-me: depois de encerrada a nossa função, passamos por uns pagodes animados e por botecos, tomando vermute - havia uma recomendação do Audálio, para mim, Chico e Raimundo: "não exagerem, pelo amor de Deus". É que ele sabia da nossa fama em São Romão. Tomamos o suficiente para ir direto para o acampamento, um tanto anestesiados, pensando no embate com as muriçocas durante a noite. Foi a salvação. No meio do caminho veio uma notícia: “Tem ali uma dona fazendo caridade”. Aquilo era mais, muito mais do que se podia esperar depois de meses em jejum, aquela moçada toda cheia de viço. O serviço era no escuro, num campo de futebol. Vai um, outro, mais outro, uma fila interminável. Eu e Raimundo mal segurando nas pernas sentamos na relva para esperar os companheiros de acampamento. Levou tempo de sumir, pois a fila ainda persistia. Alguns voltaram sem falar nada só dando conta que estavam em dia e, assim pegamos o caminho do acampamento. Dormimos com as muriçocas da 130 beira do riacho. De manhã, no desmontar o palco para o regresso, passou de um lado, de onde nos encontrávamos, um caminhãozinho apinhado de gente. Na carroçaria, uma mulher assanhada, acenando e gritando em nossa direção. De mais medonha não seria possível: desprovida dos dentes da frente, cabelo que nem uma vassoura e o corpo lembrando colchão amarrado... uma bruxa, feia e suja. Ela insistia e acenava e, quando o caminhãozinho chegou mais perto, divisando melhor a turma gritou: “Os minino gostaro donte de noite?”. Muitos vomitaram na hora. Eu e Raimundo fomos salvos pelo vermute. À boca pequena comentava-se que teria sido a primeira noite de um dos companheiros... que noite credo!


CONSTRUÇÕES

O tempo não foi perdido no Urucuia. O rancho não podia ser moradia por muito tempo – seria de pouco exemplo os professores morando debaixo de palhas se a proposta era modificar o meio. Daí, o que primeiro se fez foi derrubar as palhas do rancho, substituindo-as por tijolos e telhas e sua aparência ficou bem melhor, e maior ainda o conforto que nos proporcionou. Quase ao mesmo tempo, iniciamos a construção da casa que deveria ser o escritório e farmácia e, ao lado, a casa dos bandeirantes. Bem na frente, iam sendo abertas as cavas da base do primeiro lar para os meninos. Mãos à obra: empunhando machados deitamos os enormes barús que cobriam a área escolhida, abrindo espaço para as chibancas e enxadões rasgarem as cavas, removendo, num tauá duro como pedra, as enormes raízes, remanescentes das árvores derrubadas. Na olaria, Geraldo Chorró e os meninos fabricavam, sem descanso, tijolos e telhas francesas. Do Carinhanha chegou um famoso pedreiro, Ananias, um ernambucano que era uma fera na colher – carecia de dois ajudantes para municiá-lo de massa, pois ao fim do dia mais de dois mil tijolos estavam assentados. As paredes subiam como que por um encanto. Muito branco, quase sardento, com sua enorme cabeça chata, encimada por um chapéu de palha amassado; tinha, constantemente, um reforçado cigarro de palha no canto da boca – acredito que cada um dos seus cigarros consumia uma boa tora de fumo. O que ele mais gostava era de trabalhar, por isso os pobres serventes andavam arriados. Em pouco tempo a casa dos Bandeirantes estava pronta, assim como o escritório. Foi uma grande alegria – se mostrava, então que o Núcleo tinha as melhores casa da região. De fato, a casa dos Bandeirantes era uma construção sólida, bem feita, muito espaçosa, com vários quartos, sala de visita, jantar, cozinha, banheiros internos, toda cimentada e com um bonito alpendre virado para o nascente, ou seja, a baixada do rio Conceição. De Bandeirantes, no entanto, ficou só o nome, pois espontaneamente decidimos que os alunos da escola deveriam ali ser abrigados preferencialmente, enquanto não era concluído o primeiro lar para recebê-los. Alguns companheiros foram com os alunos para a nova casa; eu e o Chico, por gosto, ficamos no velho rancho – melhorado - dos nossos amores. Pouco tempo depois eu fui transferido para São Francisco e não cheguei ver concluído o primeiro lar, mas nele deixei lembranças do meu trabalho abrindo cavas. A casa dos Bandeirantes, ainda hoje, é das mais importantes construções da Conceição, cercada de dezenas de casas e lares, servindo, como residência do diretor do Núcleo. Não foi de propósito, mas deferência, que deixei por fim outra importante construção que erguemos neste tempo: a primeira igreja para abrigar a imagem da nossa protetora, Nossa Senhora da Conceição, que empreendera, ao nosso lado, a primeira viagem e encimara o altar da primeira missa num bosque de aroeiras. Uma capela modesta, mas muito bonita e com vistosa torre que deu trabalho para ser construída. Ali por perto, presumia-se pelos achados que, muitos anos antes, existira a capela da fazenda da legendária Joaquina, certamente, também de Nossa Senhora da Conceição. Os sinais de Joaquina sempre brotavam da terra na área demarcada para serem levantadas as primeiras construções do Núcleo: toras enormes de esteios de aroeira, carcomidas pela terra, mas com muito cerne ainda. Onde se ergueu a casa-rancho de Zezinho Cearense, no pé da serra, foram encontrados objetos diversos, inclusive patacão, o que levava ser cuidadoso o trabalho de abrir qualquer buraco: a esperança de encontrar um pote cheio de ouro. Ela, Joaquina, não era muito rica, como dizia a história? E antigamente não era costume enterrar os tesouros? Tesouro mesmo foram as sólidas construções erguidas que marcam uma nova época naquele sertão e deram uma roupagem nova e garbosa ao Núcleo.


RAIMUNDO SANTOS

O Núcleo do Carinhanha, fundado em 1953, enviara uma equipe de jovens para ajudar na implantação do Núcleo do Urucuia. Entre eles um se destacou: Raimundo Santos - um menino dócil, compenetrado, estudioso e muito trabalhador, que se destacou na fabricação de telhas e de tijolos, como um verdadeiro artista. Todos tinham um carinho muito especial por aquele menino, moreno, de olhar triste de saudade não explicada. Cumpridor de suas obrigações – no trabalho e no estudo, nunca se ouviu, dele, qualquer reclamação. Num certo dia, de um mês quente, como era de costume, os meninos – principalmente os escoteiros -, foram para as praias brancas do Conceição, em companhia do chefe Jonas. Vezes outras ia quase todo o pessoal do Núcleo, pois era agradável refrescar-se nas águas do Conceição e se divertir em suas areias brancas e macias. Naquele dia foram apenas os escoteiros. Por volta das duas horas nos encontrávamos no refeitório do rancho, repassando as histórias da semana, o que nos dava muito prazer, relembrando casos e mais casos. Nisso chega um garoto, esbaforido, quase sem fôlego. Com custo, os olhos esbugalhados e marejados, ele espremendo conseguiu balbuciar: “Raimundo Santos morreu”. Foi um espanto, colocando-se todos de pé em sobressalto. O menino acalmou-se e contou o caso. Raimundo fora vítima de uma brincadeira macabra, da fatalidade e incrível, conhecendo-o, da imprudência. Os meninos gostavam de abrir buracos na areia fria do ribeirão, uma espécie de túnel, onde depois entravam, deixando a areia cair sobre o corpo, refrescando-o. Assim faziam e depois corriam para a água para tirar a areia do corpo. Assim fizeram e, depois, todos foram para água e lá brincavam até que sentiram a falta do Raimundo. Olharam para a praia e não o viram. Um dos escoteiros foi até onde ele cavava um túnel e não o viu também, mas resolveu examinar de perto. Num simples passar de mão pelo leito de areia deparou com as pontas de seus cabelos. Correram todos e adoidadamente arrancaram-lhe o corpo do buraco; sua boca estava cheia de areia e ele não mais respirava. Morrera asfixiado. O Raimundo abrira um túnel mais profundo que o seu corpo e adentrara nele com as mãos para baixo, com os braços presos ao corpo. Veio a fatalidade e imprevisto: o frágil túnel desmoronou, e o seu corpo e cabeça foram cobertos pela areia. A poucos centímetros acima do seu nariz corria ar, e ele não teve como tirar a areia que cobria a sua cabeça, pois ficara com as mãos presas mais abaixo. Foi uma morte terrível. Quando chegamos à praia, o corpo dele já estava estendido na areia, no outro lado do rio. Jogamos travessia e com poucas braçadas alcançamos a praia. Deparamos com uma cena profundamente triste: um escoteiro com a cabeça do Raimundo no colo, a alisava como se tentasse trazê-lo à vida e, à sua volta, os colegas, chorando impotentes diante da fatalidade. Atravessar o corpo inerte do escoteiro no rio, romper pelas trilhas no meio da mata, até chegar ao rancho, foi um cortejo demorado, pungente. Na mata só se ouvia o estalar dos passos nas folhas secas e o choro dos meninos. A dor comprimia o peito, dilacerava as entranhas e retinha um grito que queria explodir, inconformado – por que o Raimundo? Ao chegarmos ao rancho com o corpo do querido menino foi o encontro da dor – daqueles que sabiam de toda a extensão do sofrimento com a daqueles que ainda esperavam que tudo não passasse de um engano. Imediatamente um dos bandeirantes, acredito ter sido o Pedrinho, foi para o rádio, onde, desesperadamente, procurou fazer contato com o mundo fora do Urucuia, o que era difícil por ser domingo. Ficou horas a fio enviando mensagens ao ar sem ter a mínima idéia de que fora ouvido. Passamos a noite mais dolorosa, triste e comprida da história do Núcleo. O enterro foi marcado para a tarde de segunda-feira, pois ainda restava a esperança de comunicar-se com o Conselho Diretor, o que se procurou fazer pela manhã, sem sucesso. Por volta das dez horas ouviu-se o ronco de um avião que logo se anunciou no céu azul do Urucuia: era o “Anjo Verde”, o Piper pilotado pelo Capitão Pedrinho. Ele parou quase à porta do rancho e, aberta a porta, desceu o Cel. Almeida com a face molhada de lágrimas e, com a voz embargada a perguntar se era verdade a notícia que recebera: um rádio amador havia captado a mensagem enviada e feito contato com ele. Raimundo fora a nossa primeira perda e isto nos machucou muito, pois foi levada a mais doce das criaturas que tínhamos em nosso meio. Desígnios do Senhor. Hoje, Raimundo Santos é reverenciado como nome de grêmios estudantis e de tropas de escoteiros, como o Caio Martins que ele tão bem seguia os passos na conduta honrada, no comportamento exemplar, no companheirismo, respeito aos amigos e na doçura de ser.


RAIMUNDINHO

Meu companheiro desde os tempos do Instituto João Pinheiro, em Belo Horizonte, Raimundinho merece mais do que um capítulo em minhas lembranças urucuianas, porque ele, realmente, era especial, com seu gênio inventivo, inteligência fulgurante e desligamento total – era um sonhador, o Melo Maluco, antecipando, em muitos anos Raul Seixas. Vou rememorar algumas de suas passagens urucuianas porque diferentes de tudo, tão de acordo com seu jeito de ser, ou seja, imprevisível. Nos tempos primeiros, quando o Chico ainda não se firmara como “doutor”, Raimundinho se aventurava em atender consultas de pessoas doentes que chegavam ao Núcleo, principalmente quando o Chico estava fora. A sua fé inabalável era num antibiótico do laboratório La Petit e, com ele conseguiu tratar de um urucuiano que mal falava de tanta inflamação na garganta. Ele receitava o remédio para tudo e, quando acertava – acredito mais que pela fé do paciente – seu nome subia. De uma feita foi procurado por um homem trespassado de dor de dente. Não era caso para o La Petit. Astuciosamente ele deu ao homem alguns comprimidos de cibalena (o santo remédio da época) para tomar de hora em hora, mas ao administrar-lhe a primeira dose, deu antes uma banda de comprimido de quinina (amaríssimo) para que ele o mastigasse. O pobre coitado mascou e mascou a banda de comprimido fazendo tanta careta que só não foi coberta de riso pelos presentes pela dó que ele inspirava. Minutos depois tomou a cibalena e, com os olhos arregalados e a face ainda contraída, virou para o Raimundinho gritando feliz: “a dor passou! A dor passou!”, e lá foi todo feliz para casa. Raimundo era um gentleman, não gostava de desagradar a ninguém. No convívio com as pessoas mostrava-se de uma finura até imprópria para o meio, talvez produto de suas aspirações – sempre quis ser diretor de cinema e casar-se com fina dama da sociedade, loura de preferência para contrabalançar sua morenice – dizia. Daí ele vivia deslocado do meio, no mundo das nuvens. Ele não gostava de arroz-doce e fazia questão de dizer sempre da sua antipatia pelo prato. Na nossa viagem à Vereda do Chico Velho, quando nos encostamos à casa do seu Cesário, nosso guia, fomos convidados para um lanche que sua mulher, dona Alzira, nos preparara. Sentamos em volta de uma tosca mesa de buriti e dona Alzira nos serviu deliciosas porções de arroz-doce em pires lotados. Raimundinho chegou a se retorcer no banco, mas, educadamente comeu o que lhe fora servido e, ao final, gentil como era, agradeceu à dona Alzira com um soberbo elogio enaltecendo o delicioso sabor da iguaria. Foi o suficiente para ela renovar o pires com porção maior ainda, o que ele engoliu relutando, mas sem falar nada. À saída, assim que dobramos na curva da estrada, ele jogou tudo fora. Raimundo era passível de variadas crises, seu pensamento, suas idéias, seus projetos, mudavam de rumo como o vento, daí dava gosto vê-lo sonhar. Numa quadra ele apareceu como um agnóstico cheio de argumentos: não acreditava mais em Deus e em nada. Impossível foi convencê-lo daquela doidura. Ele podia ter seus devaneios, mas renegar Deus era coisa muito séria, mas ele permanecia irredutível. Não levou tempo e ele foi acometido de uma forte febre, não diagnosticada. Não havia remédio que a fazia ceder. Buscaram-no no Cabo Verde, onde estava. Na sua chegada, todo enrolado de cobertores, tremendo como se tivesse com sezão – o que parecia não ser porque o quinino não dera volta na febre – ele só balbucia umas poucas palavras: “Ui, ui ui, meu Deus! Eu acredito, eu acredito no Senhor! Não me deixe morrer agora!”. Voltou, depois de curado, a falar em Deus, então com mais ardor e até exagero como lhe era peculiar, quando se apaixonava por alguma coisa. No período em que ficou administrando a unidade de Cabo Verde, onde foi criada uma escola para atender meninos da região, criar gado, cultivar milho e arroz, ele assombrou a todos com seus arrojos: construiu uma capela que, em 1959, igualou ao futurismo de Niemeyer, em Brasília. A entrada era de um lado do frontispício, mas não havia porta, apenas o vão vedado por uma parede que partia de uma quina e, descrevendo uma parábola, alcançava o meio da frente da igreja, encimada por uma cruz. Era fantástica a capela. Só não entendeu aquela maravilha arquitetônica, levantada nos fundões do Urucuia, onde muita gente nem sabia o que era uma igreja, o gado que era pastoreado no largo onde ela fora erguida. Um boi ou uma vaca, não se sabe ao certo, sabendo apenas que foi gado vacum, pelos vestígios de pêlos deixados nos tijolos, resolveu se coçar na parede fina que descrevia a parábola, encimada pela cruz e que vedava o vão da entrada da capela. Ela muito alta, solta, sem ser travada com armação de ferro e cimento, sustentada apenas pelo próprio equilíbrio, foi ao chão. Assim ficou registrada a primeira obra inacabada do Urucuia, pois depois do fato, magoado, Raimundo desprezou o projeto. Pela vida afora tive muitas notícias do Melo Maluco que me remeteram ao seu tempo de garoto, em Esmeraldas, para onde fomos juntos. Ele se revelara um artífice dos versos – tanto para compor como para declamar. Compondo ele ganhou um concurso de poesia; declamando ele exagerava: não ficava como a maioria dos colegas nos poemas leves, líricos ou românticos. Gostava era de Vozes da África, O Navio Negreiro, Juca Pirama e por aí afora. Com os pincéis reproduzia as famosas igrejas de Ouro Preto, onde esteve com uma turma da escola, em excursão; depois pintava, com muita arte, os cenários das nossas peças teatrais. Homem feito continuou criando e inventando: fez vários filmes e, num deles, lançou o ator Jackson Antunes – os recebi, Raimundo, Jackson e uma atriz, em minha casa, em Esmeraldas, quando lá foram rodar umas cenas de um de seus filmes; depois soube dele na Bahia, montando um imenso barco, projetado para mais de 90 metros de comprimento... Continuou o mesmo de sempre, inquieto e sonhador... um artista.


CHICO

Raimundinho foi meu amigo desde os tempos de Belo Horizonte. Em Esmeraldas sempre estávamos juntos, compondo um grupo nas atividades artísticas e esportivas com o Jonas e o Saldanha. No Urucuia Raimundo foi para o Cabo Verde, Saldanha para o Brejo Verde e o Jonas, com a renovação do rancho, foi para o quarto de Pedro e Flávio e, depois, para a Casa dos Bandeirantes, acrescentando-se o Zé Maria. A viagem à vereda do Chico Velho aproximou-me do Chico e, depois, creio, aumentou a nossa afinidade em decorrência do nosso gosto pela música, de passar parte da noite à beira da fogueira proseando e cantando com Audálio, comendo úbere de vaca. E mais: nas primeiras férias, depois da instalação do Núcleo, ficamos os dois de plantão durante quase três meses, enfrentando a solidão. Mais tarde, na primeira viagem a São Romão acabamos companheiros inseparáveis pelas estripulias aprontadas – eu era seu conselheiro, embora mais novo fosse, pois o danado tinha pouco juízo, quando via um rabo de saia. Juntos, à beira da fogueira, dentro da noite comprida, com o céu pingado de estrelas, de repente, perseguíamos acordes no violão, brotando canções do fundo da alma. Uma de nossas músicas ficou: Sublime Amor, inspirada nas aprontações dele com as namoradas. Eu não concordava com a leviandade dele pulando de galho em galho, sabendo que uma das meninas tinha verdadeira adoração por ele, indo inclusive ao Núcleo visitá-lo. Ele gostava do bolero, cantava-o com alegria, com sua voz doce e afinada, mas não passava disso, só disso. Atormentavam o Chico uma deficiência visual e distúrbio auditivo, coisas sem maiores complicações. Contudo, no caso da visão era mais complicado, quando ia jogar bola – o ponta direita veloz. Muitas vezes ele perdia a carreira da bola, correndo antes ou depois e se o chamassem de “ceguinho”, virava uma arara – daí tratá-lo como “Chico Arara”, ao que ele retrucava chamando-me de “Coalhada”. Quanto à surdez, para atentá-lo, era comum falar bem baixinho com ele, ou mesmo só simular uma conversa. Ele, muitas vezes, respondia. Ao perceber que era gozação xingava tudo que tinha direito. O nosso quarto era uma festa: rodadas de violão e cavaquinho até altas horas da noite, o que atraia, de quando em quando, os vizinhos de quarto: Pedro, Jonas e Flávio. De uma feita apareceu uma moça no Núcleo. Não chegava a ser do tipo de chamar atenção, mas era uma moça e para o Chico estava ótimo. Logo ele se engraçou com ela e o namoro foi armado. Costume tínhamos, para saborear gostosos biscoitos e nacos de requeijão, marcar serenatas nos ranchos vizinhos nos fim de semana. Com a garota na praça, o Chico dispensou os avisos e não quis saber de biscoitos, forçou-nos a uma seresta extra no rancho do Cesário, onde ela estava hospedada. No entusiasmo, o Chico quase pôs tudo a perder ao tirar a primeira música “Risque”. Consertamos o despropósito, depressa, obrigando-o cantar a mais bela balada do seu repertório: Inamorata. Cheia de mimos a moça, no outro dia agradeceu a serenata. Por sua bondade, espírito caridoso e disposição em atender os aflitos, a qualquer hora da noite e a qualquer distância, com sua arte curativa, ele constantemente recebia agrados: bezerros, leitões, galinhas, ovos, requeijões, rapaduras e biscoitos. Como seu companheiro eu passava muito bem com as guloseimas que ele irmamente repartia. Chico um dia foi amarrado, eu já não morava no Urucuia e a eleita foi uma jovem recatada, um pequeno tesouro que vivia escondido na fazenda Corrente, mais precisamente na casa de seu pai, meu companheiro de jornadas, Antônio Torres, onde a conheci ainda menininha – Socorro. Como me encheu de alegria aquele casamento. Chico teve com ela, filhos e filhas. A uma delas ele deu o nome de Shirley. Incomum, é claro, por isso fico a pensar: seria de propósito? Afinal, foi dele o ombro amigo em que chorei uma grande paixão por alguém que tinha o mesmo nome, porém mulher. O Urucuia deve muito aos bandeirantes e a muita gente, mas a ninguém deve tanto quanto ao Chico que ali pôs a sua vida desde o distante 8 de junho de 1957. Foi o único a ali permanecer, socorrendo vidas, com o “doutor” e, como professor, abrindo caminhos para muitas crianças. Aposentou-se como diretor da escola estadual que se instalou no Núcleo, mas foi pouco. Recompensa, reconhecimento e justiça, chegar-lhe-iam se lhe fosse dando a direção do Núcleo o que, estranhamente foi, por algumas vezes, entregue a pessoas estranhas ao meio, sem condições para o mister, sem amor àquele povo e terra. Chico é hoje, não o bandeirante remanescente, mas o espírito da bandeira tremulando no Urucuia, é a parte do ideal que ficou, mostrando que não foi um sonho a nossa missão, o arrojo de Manuel Almeida. Ele, Chico, é a síntese da Bandeira do Urucuia, o último dos bandeirantes. Minhas homenagens, meu irmão Chico. Quando você cantar no Urucuia, cante, também, por mim, como se estivéssemos à beira da fogueira com o velho amigo Audálio que, do céu, estará batendo palmas para você, repetindo:“são poucas, mas são sinceras. Dizem que no Riacho do Mato tem mais...” Pode ter certeza, dos gerais, dos vãos, dos boqueirões, das cachoeiras, das palmas dos buritis, do céu límpido, de toda parte, sempre lhes chegarão muitas e muitas palmas, amigão.


CURSO DE RÁDIO

O idealista é insondável no seu pensamento e muitas vezes incompreendido em suas idéias – caso do Cel. Almeida, um homem que vivia adiantado no tempo. O terrível era que sua inteligência borbulhava incessantemente. Não dormia no hoje. O problema é que ele criava muito e contava com poucos operários na messe, mas, mesmo assim, queria realizados seus projetos, ontem, não se importando como. Muitos foram instrumentos de sua inteligência fulgurante e do seu convencimento que penetravam na alma das pessoas através de uma dialética que não dava lugar à discussão. Assim é que o Núcleo, ainda de fraldas, com instalações precárias, recebeu um grupo de rapazes do Carinhanha, Unaí, São Francisco, Pirapora, Carinhanha e Belo Horizonte para instalar um curso de radiotelegrafia. Aconteceu e pronto: lá estavam, zoando, nas até então silenciosas noites urucuianas, muitas cigarrinhas com seus intermináveis e intermitentes bips. Os alunos dividiam seu tempo com o trabalho em vários setores do Núcleo, aulas de português, matemática e geografia, ministradas por Jonas e Pedro e de morse – teoria e prática -, pelo professor Natércio, cedido pelo Governo do Estado. Os rapazes contribuíram muito para melhorar a nossa vida, principalmente no esporte, possibilitando a formação de dois times de futebol, animando os domingos. As reuniões do grêmio também ficaram mais proveitosas com a participação deles. O professor Natércio tinha uma qualidade a mais: era um excelente cantor, o que animava muito nossas reuniões. Como o Chico, ele só cantava em castelhano: Maria Alaô, Perfidia e outros sucessos da época. Temístocles, os irmãos Raimundo Pinto e Lacy, Jair, João Reis, são os nomes que guardo na memória. Os três primeiros porque participavam do futebol – Lacy era um craque; João Reis porque era um encrenqueiro que dava um imenso trabalho; Temistócles porque era de São Francisco, aonde viria conhecer, mais tarde, sua família. Hoje não sei dizer se eles chegaram a exercer a profissão de radiotelegrafista, com exceção do Temístocles que fiquei sabendo ter conseguido trabalho numa empresa, chegando a administrador de uma fazenda de Mendes Júnior na região. Uma coisa é certa, aqueles rapazes, no tempo que passaram no Urucuia viveram uma experiência completamente diferente da que conheciam e, ali, por ser certo, moldaram seu espírito para a vida, o que de fato se deu, pois ficamos sabendo deles muito bem realizados, mais tarde. O curso não foi muito longe. Logo o Natércio sentiu a solidão do Urucuia, deixando o cargo de instrutor na responsabilidade do Pedrinho que também fora aluno e, como sempre dedicado, nele tendo se destacado. Ficou a lembrança das cigarrinhas zoando dentro da noite e a passagem alegre de um grupo de rapazes pelo vasto Urucuia. Como é interessante variada e surpreendente a vida no Núcleo do Urucuia, da velha Joaquina aos Bandeirantes, quantas coisas aconteciam. Mundo, vasto mundo.


DESBANDEIRAMENTO

Numa certa tarde, de um mês e ano perdidos em minha memória, a Bandeira do Urucuia começou a desfragmentar-se. Tempos antes nos deixara o Lourinho, com sua esposa Teresinha e o filho Gilson. Éramos, então, onze bandeirantes que, à frente do Rancho, encostados na cerca do curral, ouvíamos uma preleção do Cel. Almeida. No final ele falou o que todos ansiosamente esperavam: o pagamento depois de muitos meses de trabalho chegara. Na nossa ida para o Urucuia fora acertado o ordenado equivalente a dois salários de professor – era um pequeno estímulo material para aquela missão de tamanha envergadura. O tesoureiro da Escola entregou um envelope fechado a cada bandeirante com bonitas notas, o que não se via ali de tempos. Conferindo-os, naturalmente, para saber da fortuna que se despeja no Núcleo, naquele dia, veio o espanto: na soma dos meses vencidos fora decotado o equivalente a 50% do valor que cabia a cada um receber. Indagado se não havia engano ou se estavam sendo pagos apenas alguns meses, o tesoureiro afirmou que estava ali o pagamento de todos os meses atrasados. “Mas falta a metade”, argüiu o Holmes, o caçula do grupo. Nisso interveio o Cel. Almeida justificando: “O ordenado está correto, pois vocês têm alojamento e comida por conta da Escola. Aquele valor anunciado era simbólico”. Aquilo soou como uma bofetada – não um soco que dói, mas aquele que atinge a dignidade. Holmes gritou alto: “Não senhor, não teve essa conversa não e no mais o que a gente come aqui não vale o dinheiro descontado, e no mais a gente mora em rancho de palha no meio de cobras e caranguejos. E tem mais, nós trabalhamos mais de doze horas por dia”. O Cel. Almeida não se irritou e tentou ponderar sobre a importância da missão aos olhos do mundo, da honra de ser bandeirante e foi por aí afora até lembrar mais um fato: que o grupo, quando foi para o Urucuia recebera roupas da Escola e que elas precisavam ser descontadas. Aí o barulho foi geral. Ninguém concordou, pois as roupas foram adquiridas na loja de um funcionário da Escola, naqueles bazares de turco da rua Caetés, em Belo Horizonte (o nome dele soava como a Dabés), sem nenhuma opção de escolha: calças e camisas de brim (ruim). A impressão que se tinha, vestidas as roupas, é que os bandeirantes estavam uniformizados. O Cel. não se rendeu e voltou a enfatizar o ordenado simbólico e a alimentação fornecida. O Holmes de garnisé se avolumou como um gigante e estrilou com todas as forças, ameaçando deixar o Núcleo. Aquela reação fora demais. O Cel. não suportou a altivez do garoto, e de dedo em riste gritou para ele: “Sua alma sua palma!”. Holmes não respondeu, afastou-se do grupo em direção do rancho, no que foi acompanhado pelo Ivo - este, de comum, era de pouca conversa, muito introvertido, tanto é que na despedida da Bandeira, em Esmeraldas, quando todos choravam copiosamente, ele ficava apenas com os olhos esbugalhados, perdidos no infinito, o que levou o Saldanha, sempre galhofeiro, a dizer que “ele chorava para dentro”. Momentos depois, os dois saíram do rancho com as malas nas mãos. Nem uma palavra, nem um aceno. Acreditávamos que até chegarem à Boa Vista, com a cabeça fria, eles voltariam atrás. Nunca mais pisaram no Urucuia e, em pouco tempo, ali chegaram notícias que eles estavam bem realizados na vida. Os demais engoliram as explicações do Cel - uns porque amavam muito o seu trabalho e, em especial, o Urucuia e o companheirismo, a gente boa, a beleza do sertão, tudo os prendia ali; outros porque já tinham alguns planos em mente. O certo é que ficaram. Ficaram, mas, alguns tomaram decisões: foram se alimentar na casa de Zezinho Cearense, o construtor do rego – Jonas, Pedro, José Maria, Flávio. Geraldo e Saldanha, estavam no Brejo Verde; Raimundinho Cabo Verde. Eu e Chico ficamos no rancho, com os meninos. Não foi questão de submissão e nem por querer ser melhor que os outros, pelo contrário, ficaríamos na pior, comendo muito mal, enquanto eles se fartavam da boa comida de dona Semente. Eu gostava muito dos meninos e não queria deixá-los naquele momento. No mais eu tinha muita cisma com os cearenses, que gozavam de muito privilégio em relação aos Bandeirantes. Outros motivos existiam que prefiro deixar no olvido para não criar embaraços. O certo é que nos dividimos. O tempo passou e quando veio outro pagamento, acumulado, a história se repetiu e de maneira pior, pois ainda continuavam sendo descontado os 50% de alimentação e moradia, mesmo para aqueles que tomavam refeição com Zezinho Cearense. Questionado a respeito, o Cel. respondeu: “não comeram porque não quiseram, a comida estava lá”. Foi um golpe duro para ser absorvido. Depois de Holmes e Ivo, mais tarde foi o Geraldo Moreira. Em 1960, no mês de março foi a minha vez, transferido para a escola de São Francisco. Depois Raimundinho, transferido para dirigir o Núcleo do Carinhanha. Por fim saíram José Maria, Flávio, Pedro e Jonas, ficando no Urucuia apenas Chico e Saldanha que casaram com moças da região. O Chico permanece, até hoje, na Conceição, aposentado como diretor da escola estadual e o Saldanha na região chegando a se aventurar na política, como vereador.


SÃO ROMÃO

O redobre de um trovão tem a magia de me transportar a São Romão, evocando saudades guardadas. Trovão e São Romão se associaram em meu espírito, na ansiedade que carregava na alma esperando uma oportunidade para pousar na centenária cidade, depois de longos meses de isolamento no Urucuia. Através de sutil artimanha que não sei a quem atribuir, foi conseguida a nossa primeira viagem à sonhada cidade, tendo como motivo transportar uma máquina de beneficiamento de arroz, para ali enviada, pelo rio São Francisco, contrariando o procedimento trivial que seria deixá-la em Pirapora. A notícia foi dada com tempo de agendar a viagem para coincidir com o período do Carnaval. Começamos a viver a hora da partida com intensa ansiedade. Chovia muito e, a cada trovão, a sensação sentida era de que São Romão ficava mais longe ainda, pois os ribombos rasgando o céu anunciavam mais chuva, o que significava um ribeirão cheio e estradas intransponíveis. Feriadão do carnaval. Numa manhã de chuva fina lá fomos nós: Doda ao volante do Ford e muita gente na carroçaria, um dia antes da partida, para levar o caminhão até à fazenda Boa Vista, onde embarcaríamos no dia seguinte, livrando-se, assim, de imprevistos, como as cheias repentinas do Conceição. No outro dia, de madrugada, lá fomos - eu, Raimundo, Chico, Saldanha e Zé Maria, dos bandeirantes, e outros passageiros que não me lembro o nome. Levou tempo, um dia de viagem, enfrentando atoleiros na quase intransponível campina, depois do Escuro, mas chegamos pela vez primeira a São Romão. Ficamos no hotel São Geraldo, de Eustáquio Martins, o homem de voz mansa, muito tratável, com um ar doce de paizão. Sem a menor delonga avançamos na cidade - era preciso ganhar tempo. A primeira parada foi em um bar na praça principal: era uma praça enorme, incomum, portentosa e muito bonita – na verdade, vim saber depois, ela é tida como avenida. Que avenida! Do alto descortinava-se o rio São Francisco em todo seu esplendor, pois a praça nascia nas suas barrancas e cortava todo o corpo da cidade, como se fosse a sua cintura. Era enorme, creio que com mais de 500 metros de comprimento. A brisa fresca soprada das águas do rio corria solta pela praça, sacudindo os leques das palmeiras imperiais, beijando a população que preguiçosamente ali se regalava nos fins de tarde, esponjada em banquinhos de cimento. Saindo dela pequenas ruelas, ladeadas de casario antigo, quase todas descrevendo suaves curvas como se acompanhassem o trajeto do rio São Francisco. De um lado ia-se até à Igreja Nossa Senhora do Rosário, muita antiga e bonita, passando pelo Grupo Escolar Afonso Arinos e Cadeia Pública - um sobradão soturno, na forma de um quadrado, erguido numa pequena e esconsa praça. No sentido contrário, acompanhando o rumo do rio a montante, ia-se para o hotel e uma área onde foram erguidas casas mais modernas. O bar que estreamos era da família Agapito que tinha um casarão na praça, onde moravam, também Pedro Palma, parte da família Bispo, da família Caetano e alguém muito especial para mim. Tomamos muita cerveja Portuguesa misturada com algemado Brasília – eu, Raimundo e Chico. Antes do cair da tarde o Doda arrumara uma amiga, Penha, e, com ela, um meio de nos colocar no conhecimento das sanromanenses: inventaram um grito de carnaval que, na verdade era um baile em casa de família. Na primeira noite fizemos muitos amigos e causamos uma boa impressão aos mais velhos que logo nos trataram como “meninos do Coronel” ou “rapazes da Caio Martins”. Havia respeito e admiração e isso nos deixou muito a vontade para estar em cada casa, como convidados, para um cafezinho e uns instantes de prosa. Na primeira noite o Chico se engraçou por graciosa moça local; o Raimundo por uma Caetano, o Saldanha por uma linda garota, Doda por Penha e eu sem predileções, pescando, pescando numa teimosia romântica de encontrar alguém que me balançasse o coração esquivando da mera aventura. Não encontrei ninguém para levar em casa na primeira noite. No outro dia, andando por São Romão, meus olhos bateram numa garota que não estivera no baile: morena, de corpo esguio, cabelos curtos e anelados e de olhar distante. Foi como um furacão a devassar-me as entranhas, rebatendo no coração. As pernas tremeram e fiquei lívido. Não me lembro como, mas em pouco já conversava com ela, dizendo coisas de mim - quem eu era, o que fazia, o que pretendia e tantas coisas mais. Ela, generosa, candidamente me ouvia, deixando-me extasiado. Ao fim de tão longa apresentação, me deu o seu nome. Era filha de um abastado comerciante, estudava fora e estava de férias em sua terra, ficando com a avó, na praça principal – aquela que beijava o rio levando seu cheiro para o cerrado. Não sei mais o que conversamos, mas fiquei à porta de sua casa até às 21 horas, quando a luz deu o primeiro sinal para apagar. Ela ora balançava, ora enrolava um tercinho branco entre os dedos, num gesto gracioso que me enternecia. A parte final de nossa conversa era para seduzi-la a me acompanhar ao baile, ao que sempre recusava dizendo que sua vó não permitia – eram muito religiosos e recatados e nós, moços desconhecidos, ainda. Com um aperto de mão terno e suave nos despedíamos e, fagueiro, eu segui pela praça sorvendo suavemente o seu perfume deixado em minhas mãos. Não havia felicidade maior. A tentação, no entanto, chegava logo e, sem perceber, já me via no bar do Agapito, de onde, pouco depois saía inflamado e inconseqüente. Bandeava, instintivamente, para a casa onde se realizava mais um baile e lá, sem as peias da razão, dançava com as lindas meninas que enlaçava pela cintura rodando como se estivesse no ar. Assim seguia até o fim do baile. No outro dia, buscava encontrar a minha linda menina e ela, como por encanto, me esperava. Mal começava a conversa, quando lhe declarava meu infinito amor, ela me relatava, com detalhes, o acontecido na noite anterior, depois de nossa despedida. Eu ficava sem entender, pois não era conhecido na cidade e ninguém sabia das minhas atenções. Com o tempo e a vivência compreendi: as pessoas do interior sabem muito mais do que imaginamos, às vezes até advinham pensamentos. Ela me perdoava e voltava a ser gentil, encantadora e meiga. Horas eram passadas sem que percebêssemos. Infelizmente, a cada noite repetia-se a mesma história. Na última noite, terça-feira, em nossa despedida, ela me segredou que o nosso namoro seria possível, mas que ela não arriscaria, pois eu não levava as coisas a sério e que deveríamos ficar como estava. Partiu-me o coração. Não, estraçalhou. Perdi o brilho, a alegria, o entusiasmo e quis sumir no ar dissolvido em partículas. Acabara de pulverizar um sonho. Naquela noite não fui ao baile. Afundei-me, no bar do Agapito num pileque homérico. Foi grande mesmo a paixão, pois no outro dia, cedinho, quando embarcamos no caminhão, ainda tonto, levava dois litros de Martini que consumi, com a ajuda do Chico, até à fazenda Riacho do Mato, onde pernoitamos, porque o Doda esquecera, tão entusiasmado que estava com a Penha, de colocar gasolina no caminhão. Passei a noite dormente sem ver, sem pensar, sem sentir nada, apenas um imenso vazio dentro de mim. Chegando em Boa Vista, deixamos o caminhão e seguimos a pé - eu levando um litro de pinga que, com a ajuda do Chico, foi virado até chegarmos à divisa das terras da Escola. Chegamos à noite e eu fui direto para cama, no ranchão. No outro dia o Jonas, que não fora a São Romão (estava em Belo Horizonte), quis saber o que tinha acontecido comigo. “O quê?”, perguntei-lhe. “Você chegou trombando nas camas e cantando Ouça sem parar...” Era o samba-canção de Maísa, sucesso da época que Gilson Torres, um dos amigos que fizemos naquela viagem, cantava apaixonadamente em todos nossos encontros. A chuva, o trovão e “Ouça” me atormentaram por muitos anos como resultado de uma imensa paixão, de um amor mal resolvido, mas que me deu a primeira grande alegria em São Romão. Mas o meu destino já estava traçado ou trançado numa franja...


SÃO ROMÃO II

Muitos fatos pitorescos aconteceram em nossa primeira viagem a São Romão, envolvendo Raimundinho e Chico, que no gozo da alforria, foram fundo naquelas dias de intensa regalia. Raimudinho não muito afeito à bebida abusou demais num dia em que havíamos marcado um passeio com as moças que queriam nos mostrar um dos atrativos da cidade: o Riacho, atração dos piquiniques de São Romão. Ele foi encontrado totalmente trolado no bar do Agapito e para recuperá-lo a tempo o levamos para o hotel deixando-o estendido numa cama, enquanto eram feitos os preparativos do passeio. Voltando para buscá-lo ainda o encontramos virtualmente dopado, com uma poça de vômito ao pé da cama, onde boiava seu pente “Flamengo” – do que não separava de jeito nenhum para estar sempre ajeitando o enorme topete imitando Elvis. Foi o suficiente para o Saldanha, o gaiato do Saldanha, fazer o maior escarcéu do mundo. A única solução encontrada foi levá-lo ao chuveiro, arrastado. O primeiro banho foi com água fria: nada. Aí o Chico apelou, abriu a torneira de água quente, pelando. Raimundo acordou, num salto com o choque, reclamando que estava pegando fogo. Meio grogue foi levado para o caminhão, ajeitado no banquinho atrás do assento do motorista, ali estaria firme. O que ninguém contava é que, sem de nada saber, ao entrar na cabina, a Penha fosse colocar a bandeja de copos de vidro no colo dele. Só perceberam o erro quando, ao arrancar o caminhão, ouviram o tilintar de vidro no assoalho da cabina – os copos viraram cacos. No riacho a dança acontecia num rancho de palha, ao som da sanfona, pois lá ainda não chegara energia – até mesmo na cidade só havia luz elétrica nas primeiras horas da noite. Um fato chamava atenção no pequeno rancho: bem no meio da sala de dança havia levantado um cupim que ninguém se importara em desmanchar, sendo ele uma atração, servindo até mesmo de descanso, depois de muitas sacudidas. Cansados de dançar o grupo ia se resfriar nas águas límpidas e geladas do riacho. O Chico, que bebia como um gambá, achando que nunca mais teria cerveja pela frente, chegando ao hotel, sozinho, numa madrugada, de tão cambaleante se complicou ao tentar ultrapassar as portinholas que separavam a sala de recepção do refeitório – ao apoiar-se numa das portilholas, ela se abriu de vez para frente e ele se estatelou no chão, prosseguindo, rumo ao seu quarto, de gatinho. Assim se arrastava até esbarrar nas pernas do seu Estáquio que acordara com o barulho e se encontrava no meio do refeitório. Aí entrou Saldanha com sua galhofa diante do inusitado da cena dizendo que o Chico, sem saída, teria esbarrado nas pernas do seu Eustáquio e, olhando para cima, acabrunhado, teria dito: “Bênção, seu Eustáquio!”. Precisava mesmo de um pai. O Raimundo, noutra, durante um almoço, quis conferir um prato, exibindo-se. “Isso é abóbora ou mamão?” O seu Eustáquio, por perto, esclareceu, bonachão: “É mandioca mesmo, menino”. Raimundo e Chico, eram avançados, no namoro, para a época e, por isso, sempre estávamos por perto, vigiando. Eu não ia para o hotel sem recolher o Chico, só o encontrando nos escuros, em situações bizarras. De longe eu raspava a garganta e ele, voltando a palma da mão, sinalizava para que eu guardasse distância e esperasse. Eu não saía e insistia até ele entregar os pontos e me acompanhar, resmungando, enquanto enxugava o suor que lhe caía pelo rosto. Voltei, depois, muitas vezes a São Romão, quando, para variar, excursionava pelas fazendas próximas, apostando corrida de jipe com Orlando Corrêa, nas campinas que se estendiam entre a vereda do riacho e o cerrado. São Romão penetrava na alma da gente.


SÃO ROMÃO III

O ano não me lembro, mas sei que um dia fui informado que eu era candidato a vereador à Câmara Municipal de São Romão. É um fato tão obscuro em minha passagem pelo Urucuia, tão desinteressante, que dele recordo apenas como registro de como o bandeirante era manejado por interesses outros. Era para ser? Seria, pronto. Valeu pelo menos para que estivesse em São Romão no dia da votação e, assim, pudesse estar com meus amigos e namorar as meninas. Lembro só de duas coisas: uma que nem sequer votei em mim mesmo; preferi dar o meu voto a um amigo muito estimado, filho da terra – ele era trombonista da banda e, sempre que lá estávamos, ele ia animar nossos bailes. A sua maior vontade era ser vereador. Foi. Eu tive, surpreendentemente, tantos votos que me levaram à primeira suplência, do PSD, que era o partido dos mandachuvas, inclusive do Coronel - isto sem pedir um voto. A outra: que passei o dia 3 de outubro todinho namorando encostado num imenso umbuzeiro no pátio do Grupo Escolar Afonso Arinos onde fora instalada a seção em que eu estava inscrito. O resultado não teve a menor importância para mim, senão a eleição do meu amigo que realizou o seu sonho. Voltei a São Romão para votar, noutra feita, acredito ter sido em1960, quando já me encontrava em São Francisco. A viagem foi pelo rio São Francisco, de canoa. É claro que o interesse maior que me moveu naquela aventura não fora a eleição e sim a oportunidade de encontrar com a minha namorada, de então, de quem já estava quase noivo. Fui com Jorge, empregado de Guilherme Gosling, àquela época, dono de um frigorífico de peixes em São Francisco. Saímos às seis horas da manhã, apanhando o sol com as mãos, derramando-se em cores nas águas serenas do rio que deslizavam banhando praias brancas, sombreadas por matas fechadas: a passarada se agitando no céu ou fazendo algazarra na areia quente – os Quem-Quem valentemente protegendo seus ninhos. Passamos por um barqueiro solitário que remava e remava, com força, rio acima. Jorge, gentilmente, o cumprimentou e ofereceu trelar sua canoa ao nosso barco, ao que ele, temente da velocidade, agradeceu. Pouco acima, da boca do rio Urucuia um garrancho de pau levou a hélice do motor do nosso barco. Não havia reparo. O jeito foi remar, remar e remar. O Jorge improvisou um varejão, cortado nas margens, e me instruiu como usá-lo, enquanto, na popa, ele remava e conduzia o barco. Naquela lida, vendo que o barco pouco avançava, eu já estava a ponto de pedir para que retornássemos, quando se alinhou ao nosso lado o canoeiro que ficara para trás. Ele devolveu a gentileza, oferecendo para amarrar sua canoa ao nosso barco, o que não dispensamos. Aí andamos mais rápido e, o que foi melhor, conseguimos alimento: rapadura com farinha, que ele, previdente, levava num bocapi. Aportamos em São Romão na boca da noite, o que me satisfez, pois foi possível encontrar a namorada. No outro dia, ao tentar sair da cama, percebi que não seria ninguém, doía-me o corpo todo; os braços não se erguiam e os ombros estavam inchados. Passei o dia no quarto colocando compressas de água quente com sal. Outras vezes, ainda morando no Urucuia, voltei a São Romão, com a turma, em ocasiões de festa – aliás, nós éramos a festa. Quando o caminhão parava na porta do hotel São Geraldo, as mães de São Romão, alarmadas se comunicavam: “Os meninos da Caio Martins chegaram!” E aí, começavam os “cuidos” e “sabões” prévios. Não fazíamos nada demais, mas nossa alegria, descontração e atração para as meninas eram fora do comum e dos costumes da cidade, ou seja, nossa presença era como uma revolução, explodindo a juventude da cidade, alterando a vida de todos. Mesmo assim éramos muito queridos. Só para lembrar: numa feita, eu e Chico nos encostamos no bar dos Caxito, num pequeno reservado, bem cedo. Vai uma Portuguesa, outra mais, na mistura com o algemado. Lá para tantas, já de tarde, chegou o Fernando Palma e, contando os cascos no chão e vendo o nosso estado etílico, apostou: “se beberem mais duas, no gargalho, pago a conta”. Vinte e três cervejas já tinham sido vencidas. Já chumbado perguntei ao Chico se ele topava e a resposta foi afirmativa. Viramos, cada um, uma garrafa. Ganhamos a aposta, mais não saímos do lugar. Quando acordei, já à noite, estava deitado na cama do seminarista Pedro filho da Dona Ascenção Caxito. Foi muita generosidade daquela simpática família e gentileza dos amigos, buscando, para mim, um agasalho confortável. O Chico fora carregado para o Hotel. Eu fiquei trancado sem poder sair. Aprontei um berreiro, lembrando que, naquela noite, o baile seria no hotel. Com custo me atenderam, mas não deixaram sair e eu reclamava a presença da namorada de então. Não teve jeito, a insistência foi tanta que ela teve que ser levada ao quarto para tentar me acalmar. Na outra ponta da cidade fiquei sabendo depois, o Chico saltara a janela do hotel e, trôpego fora atrás de sua namorada. Nesse dia não tomei conta dele. Creio que o meu comportamento naquela noite acabou por influir no juízo da então namorada que, meses depois, acabou com o namoro que prometia – ela precisava de um rapaz mais sério, pois já pensava em casamento.


CACHORRO DOIDO

Eu acabara de chegar de Pirapora, numa das minhas viagens de jipe. Sentado na cama de Pedrinho, no quarto da frente do rancho, com a porta aberta dando para a vastidão que ia do campo de aviação até às fraldas da serra da Conceição, contava novidades. Nisto, sem dar sinal, entrou um cachorro de porte médio, comum aos da região, avançando em minha direção – não vinha como quem queria agrado nem com intenções de atacar, com a cabeça baixa e o rabo entre as pernas. À sua aproximação levantei os pés para dar-lhe passagem, mas pareceu-me ter ele entendido meu gesto como sinal de agressão, pois veio diretamente a um dos meus pés, cravando-lhe as presas, sojigando-o com firmeza, ao tempo que o balançava de um lado para o outro raivosamente, até que com uma pancada com o outro pé me vi livre dele que, esbaforido saiu de carreira, sempre com o rabo entre as pernas, rumo à parte alta do Núcleo. Alarma! "Esse cachorro tá doido", gritou alguém. Foi o suficiente para Zé Maria tomar ligeiro a "papo-amarelo" e, da porta do rancho, desferir-lhe um balaço. Ouviu-se um ganido, mas o cão continuou na carreira. Zé Maria e alguns bandeirantes foram atrás. Eu, sentindo um ardor no pé, tirei a inseparável bota gaúcha para conferir: havia um rasgo do lado do meu pé, de onde brotava muito sangue. O danado do cachorro cravara os dentes inferiores no solado da bota, deixando-o com riscos profundos e, com os dentes superiores rasgara o couro lateral indo atingir o meu pé. Lá no alto o cachorro aprontava: chegou ao lar, quando os meninos se aproximavam da mesa para o almoço. Foi uma gritaria só, e quase todos eles foram parar no meio dos pratos, em cima da mesa; outros correram para dentro dos quartos, fechando a porta. Dizem que Dona Maria, a cozinheira, que puxava de uma das pernas, conseguira fazer uma verdadeira estripulia, passando por um estreito de porta que normalmente não conseguiria. De lá o cachorro saiu correndo com os moradores do Núcleo. Muito lá na frente, numa tapera encravada à beira do Conceiçãozinho, que ele não ousara atravessar, o Zé Maria enfim o teve frente a frente estourando-lhe a cabeça com um tiro. Mais tarde vim saber: foi um erro o que fizera - teria que prender o cachorro para futuro exame. O Dr. Chico não tinha a menor dúvida: o cachorro estava doido e por isso eu precisava com urgência receber vacina contra hidrofobia, o que não tinha no Núcleo. Providência imediata ele tomou: fez assepsia do local do ferimento, cobriu-o com gases e aplicou-me uma dose de vacina antitetânica, deliberando: “tem que viajar para Pirapora, agora”. Assim foi feito, no ato. Como ainda não desfizera a mala, foi só retomar a viagem no jipe ainda quente. Chegando a Pirapora fui medicado sem nenhuma recomendação e, por isso, sem saber, na noite, acompanhei o tio Ortiga e família a um grito de Carnaval (famoso em Pirapora) no Clube Independente. Passei a noite tomando cerveja. Pela manhã fui acordado pelo Raimundo que viera de Belo Horizonte, trazendo vacinas para socorrer as pessoas da região próxima ao Núcleo, também ofendidas pelo mesmo cão. Despertou-me com a recomendação: "tem um avião te esperando no aeroporto. É para você seguir agora para Belo Horizonte porque seu caso é grave. O médico mandou falar para você não se agitar, não tomar bebida alcoólica e ficar em absoluto repouso". Eu fizera exatamente tudo ao contrário na noite anterior. Foi uma terrível viagem num bimotor para Belo Horizonte, enjoando e vomitando o tempo todo. Um mês passei em tratamento na Capital, como já disse, na casa do querido e inesquecível casal Audálio e Dona Iza. Ele forçara a ida do avião para me buscar em Pirapora. Era um grande amigo, de fato.


COOPERATIVA

Tenho às mãos um papel amarelecido – a crônica escrita por Florence Bernard na revista “O Cruzeiro” de 24.11.56, com o título: “OS DOZE BANDEIRANTES”. Nela, a cronista que nos visitou em Esmeraldas (mais tarde seria minha madrinha de formatura, substituindo, à última hora, a convidada professora Helena Antipoff, uma grande amiga e defensora de Caio Martins) faz uma descrição de cada bandeirante, falando das atividades que exerceriam no Urucuia. Quanto a mim disse ela: "João, o risonho, que irá chefiar as atividades agrícolas, responsabilizando-se pela cooperativa, pela tipografia e pela criação do teatro". Acertou nuns pontos – atividade agrícola e teatro. No discurso de formatura da nossa turma – fui o orador – entre lágrimas respondi presente ao chamado do Urucuia reafirmando que "em breve lá estarei cuidando da agricultura, dirigindo a cooperativa..." A cooperativa estava em nossos sonhos. Nas manhãs dos domingos, uns após outros, o Cel. Almeida nos falava do Urucuia e lá, na fazenda Rodeio, as imensas pradarias, as terras da nossa cooperativa. Eu ficava todo cheio, indicado o primeiro presidente. Tanto sonho! Tanto sonho! Um jovem imberbe, cru na vida, mal saindo de um curso normal sonhando ser presidente de uma cooperativa, o que só conhecia pela leitura dos livros escolares e vendo os letreiros das cooperativas leiteiras de Belo horizonte e Esmeraldas. Como era bom sonhar com os pastos verdes esbarrando nas margens do rio Urucuia, apinhados de novilhos gordos, saltitantes cavalos e lavouras imensas de arroz e milho prometendo dadivosos frutos. Chegamos ao Urucuia e nunca mais se falou em fazenda Rodeio ou em cooperativa. Por conta própria e sem nenhum conhecimento técnico, ainda arriscamos alguma coisa, o que ousamos chamar de cooperativa: comprar umas cabeças de gado em sociedade e olhar uma glebazinha numa bonita campina perto do Núcleo que acabou sendo denominada "Cooperativa". Uns participaram, outros não. Quando deixei o Urucuia, a minha cota foi passada para o grupo remanescente, pois nunca vi o resultado do empreendimento. Lembro-me que numa madrugada, muito escuro ainda, num arroubo de conquista e querendo marcar a presença da cooperativa, tomei o tratorzinho Ford, com o arado e me dirigi para a nossa gleba, a "Cooperativa" – pelo menos existiu um pedaço de terra, que no vasto Urucuia, tanto quanto ele, sem cercas, imaginariamente delimitamos como nossa propriedade, sem nunca dela apossearmos. Rasguei o chão na intenção de plantar arroz, mas a idéia ficou só no impulso, pois os companheiros não sentiram nenhuma atração para o plantio de roça e, na verdade não seria possível, pois dinheiro para enfrentar as despesas é o que não tínhamos, com o pagamento atrasado em um ano e, ainda assim, chegando pelas metades. A nossa cooperativa foi um sonho, um lindo sonho. Não foi de tudo ruim, pois nos motivou por muito tempo, nos fez sentir donos de lindas pradarias, senhores do verde e de águas urucuianas, jovens empreendedores...E sonhando ocupamos o Urucuia, do que não nos arrependemos – não pelo que nos fizeram, mas pelo que fizemos.


O ENTERRO

Eu já morava em São Francisco, quando fui informado da morte de Avelino Baiano. Foi um acontecimento triste marcado pelo sobrenatural, envolvendo o seu compadre e inseparável amigo, João Baiano. Foi a história que me contaram, garantindo toda veracidade do mundo. Confirmada a morte do Avelino, providenciou-se o enterro com o cortejo seguindo por uma trilha estreita a caminho do cemitério que os moradores do povoado construíram nas fraldas da Serra da Conceição. Por superstição ou exagero de acreditar no crescimento do povoado recém-criado, cuidaram de localizar o cemitério bem distante. Hirto e torto como um anzol, numa rede, era transportado o corpo de Avelino Baiano, um sertanejo curtido nos gerais e vãos do sertão urucuiano. Ele passara os últimos anos de sua vida ali, às margens do sinuoso ribeirão da Conceição. Homem acostumado à dura faina do eito do feijão, milho e arroz; que se dobrava, sem reclamar, nos roçados das mangas praguejadas de alagadiços e esperto no pêlo de burro bravo. Como cativo, boa parte de seu tempo, ele servia aos proprietários da fazenda onde, por último, assentara o seu ranchinho de palha como serrador de madeira. Isto ele fazia com seu inseparável companheiro, o João Baiano. Tempos atrás, ali mesmo, por aquela estrada, sempre eram vistos, os dois, cantarolando, conversando e tomando goles de pinga, enquanto desmanchavam toras de jatobá, pau d’arco, cedro, imburana e o que mais fosse preciso para dar vida ao novo povoado. Num descampado no meio das vaquetas debaixo de um frondoso pequizeiro, eles tinham armado o jirau. Encarapitado na tora, o Avelino mãos firmes no cabo do serrotão, seguia o risco por onde os dentes da lâmina iam devorando a madeira. Embaixo o João, puxando e empurrando o serrotão, recebendo na cara a serralha, cuidando para dar ritmo ao movimento a modo evitar que se embuchassem os dentes da lâmina. Das toras brutas, eles desdobravam pranchões, táboas e caibros com rara maestria. Trabalhador o Avelino era demais; amante da cachaça muito mais ainda. Aliás, os dois Baianos inseparáveis. Não tinha tarde de folga para a bebida – eles sempre apareciam com os olhos em brasa, contando suas vantagens, cantarolando e exalando álcool pelos poros. Os anos passaram e a vida no sertão que é dura, não prolonga muito, ainda mais quando tão molhada de cachaça.
Chegou, pois, o dia de Avelino Baiano. Nem tão velho era ele. Devia regular pouco mais de 40 anos. Morreu sem adoecer. Como era costume na região, os mortos sem posses eram conduzidos a ultima morada em redes de buriti. Um varejão de pau pereiro era trespassado nos punhos da rede com as sobras que descansavam nos ombros dos carregadores. Assim era levado o Avelino para o descanso eterno. Ironia: ele levou parte da vida serrando madeira para os outros e não tinha, na sua morte, sequer um caixãozinho de aparas de cedro. O enterro seguia arrastado. As rezadeiras desfiavam ladainhas – rezadas ou cantadas, num coro lúgubre que entristecia até os bichos. A estrada cortava um mato ralo, onde pés de pequi, tinguis, barú e pau d’óleo pontificavam meio à vaqueta. A poeira fina subia levantada pelo chap-chap das precatas de couro. O cortejo se arrastava. De repente os carregadores soltaram um gemido e se estancaram. O defunto pesou o dobro, até mais do dobro. Chamaram outros caboclos para um adjuntório. Nada. Nem um passo foi dado à frente. O peso do defunto redobrou. Arriaram a rede com o corpo do Avelino no leito de areia, todo séqüito espantado. Foi aí que perceberam: o cortejo estava debaixo do pequizeiro onde Avelino passou parte de sua vida serrando madeira. Sustou o espanto. No sertão não se surpreende com essas coisas. Não há mistério, são acontecências da vida (ou da morte?) e costumes vividos que são passados de pais para filhos. Ali tudo pode acontecer e é natural. Esperaram apenas, pois paciência é riqueza do sertanejo. Uma benzedeira, então, se destacou do grupo adentrando-se no mato. Pouco depois voltou de lá trazendo um molhe de Cipó-de-São-João. Trançou uma corda, aproximou do corpo de Avelino, benzeu-o com rezas ininteligíveis, fez sinais no ar e curvando sobre o defunto e, sem perder mais tempo, desferiu-lhe uma verdadeira tunda. Terminada a macabra sessão, cingiu a cintura dele com o que sobrou do cipó, a modo do cordão de São Francisco de Assis, e ordenou sem qualquer emoção: “Toca o enterro...” O corpo do Avelino ficou leve como uma pluma. João Baiano, esse tempo todo gemido de dor pela perda do amigo e encharcado de pinga, a tudo seguia de soslaio – nada falava, nada fazia. O cortejo chegou, enfim, ao cemitério. Eram poucas as sepulturas, de novo que era. A cova de Avelino estava aberta, com a bocarra esperando seu corpo hirto: sete palmos de fundura e, lá embaixo, uma gaveta cavada na própria terra, numa das laterais, bem rente à base. O corpo seria ali descansado e, depois, a gaveta seria fechada com achas de aroeira, bem emparelhadas e bem fincadas no chão. Era o costume da região para evitar que o tatu papa-defunto, encontrando a facilidade da terra revolvida, se fartasse das carnes mortas antes da mãe-terra. Os carregadores preparam para descer a rede com o corpo do Avelino encurvando dentro, quando se ouviu, pela primeira vez, a voz do João Baiano: - “Isbarra aí!”, ordenou, enquanto se encaminhava para perto do corpo inerte do companheiro. Tomou-lhe a cabeça com a mão esquerda, forçando-a para cima. Meteu a outra mão no embornal de couro de veado, retirando dele um litro de pinga. Desarrolhou-o e meteu o gargalho garganta abaixo do amigo defunto, a quem, com os olhos banhados de lágrimas, recitava as últimas palavras: “Cumpade, promessa é promessa. Nóis combinô qui de nóis o que ficasse vivo tinha de dá litro da branquinha pro que morresse premero, na hora de dá ele pra terra cumê. Bebe cumpade, bebe, é da mió. Adispois vem dá meu litro tomém. Entonces, adeus cumpade Avelino! Inté breve!”. O corpo do Avelino Baiano foi descansar na gaveta, molhado pelas lágrimas do amigo João Baiano.


OS BICHOS

A fauna urucuiana cavou poços de emoções em minha vida numa fase em que a solidão andava a cavalo comigo, trotando no vento - tudo que me cercava tinha o condão de remexer lembranças, despertar fantasias e de suscitar sonhos não realizados, em especial o amor que acalentava sem poder cantar de coração. As araras vermelhas, azuis e amarelas, pintando o céu nas manhãs frescas e nas tardes cálidas, gritando estridente à sua passagem, num balé gracioso; papagaios, periquitos e jandaias, em bandos enormes revoando e pousando em nossos milharais; bandos de Quem-Quem fazendo algazarra no alagado que se formava no campo de aviação, caminhando em passadas largas, com a cabeça erguida; as garças formosas, plácidas, de pescoço esticado, em busca de peixe nas lagoas que ao se juntarem pareciam uma roça de algodão de cachos abertos; ariris e jaburus, nos seus vôos em cerração, indiferentes aos caminhantes e longe de tiros de cartucheiras, enquanto ruflando asas no azul de liberdade só; as majestosas emas e magricelas seriemas, cantadeiras cheias de paixão; os urutaus cantando a noite com profunda nostalgia, cavando saudades no peito da gente; os cervos delicados e ariscos; as guaribas e seus barbados, roncando na mata, sempre de passagem. Só não guardo lembranças das cobras e eram tantas: cascavéis a granel na lavoura, dormindo enroladas nas touceiras de arroz – enormes, grossas, com os chocalhos cheios de anéis; jaracuçu papo-amarelo de dois metros, ligeiro e, ouriçado, esgueirando pelo mato na ponta do rabo; a terrível jararaca, pequena, dissimulada – tinha preferência de aquecer dentro de nossas botas; a terrível quatro-presas, valente, que atacava sem sinal; as jibóias dormideiras e as papa-pinto, companheiras do rancho, em busca de ratos, arrastando-se, com seus dois metros de comprimento, entre os caibros. Dos sustos que por causa delas sofri, ainda hoje sou acometido de arrepios. Dos alados que cortavam o céu azul, respingado de nuvens brancas, vinha-me o desejo: estar em suas asas para ver o Urucuia lá de cima e roubar uma para levar-me, em suas asas aonde meu pensamento ia todos os dias: à minha doce amada que não sabia do meu amor. A urutau, gemendo triste na noite escura à chegada da lua – “urutau-ta-tau”, suave como uma flauta grave – para uns, motivo de agouro, para mim razão de mexer com a saudade.
Provocava uma imensa saudade, sem saber defini-la, pois o sentimento não era do que tinha vivido, mas do que queria ter vivido. Os bandos de barbados roncando, dentro da noite, passando de galho em galho na mata que cobria as margens do ribeirão da Conceição, levavam um pedaço de mim. Era um ronco triste, tonitruante, que ganhava amplitude no silêncio da noite; mais triste ficava quando vinha acompanhado de um trovão. Quando eles passavam na serra, o urucuiano ficava alegre: “guariba na serra, chuva na terra”. Eu viajava no ronco dos barbados. Acontecia, de tempos em tempos, de um bando deles ficar nas cercanias do Núcleo, especialmente no capão dos angicos, onde, bem do alto, botavam olho em nossa roça de milho. Muitas vezes montei espreita para vigiar suas intenções. Alguns ficavam no alto das árvores, outros desciam até ao milharal, arrancavam espigas e voltavam para os angicos e assim iam se alternando até que se fartassem. De uma feita, eu e o Raimundinho, astutamente, chegamos bem próximos deles, com todo cuidado para não afugentá-los, evitando o barulho e a dar-lhe a vantagem do vento. Perto dava para ver sua aparência: enormes macacos pretos, circunspetos, graves, peludos, alguns com barba cobrindo o queixo – daí o nome ganhado na região de “barbados” – a fêmea, sem barba, a guariba. O maior deles parecia comandar o grupo, pois era o que mais aparecia, gesticulava e vinha à frente; as fêmeas traziam os filhotes pendurados nas costas ou às vezes, conforme seu movimento nos galhos, abraçados ao peito. Bem perto, nos mostramos. Foi o suficiente para que eles reagissem atirando-nos pedaços de paus. Raimundinho apontou-lhes então a espingarda que trazia. O perigo foi pressentido, muitos fugiram espavoridos. Uma fêmea fez o contrário: pegou o filhote com as mãos e o ergueu em nossa direção, apertando-o contra o seu peito. Raimundinho não ia atirar, não era esse nosso costume, o que a macaca não sabia. Bem observando, muito aprendemos com os bichos.


OS CUPINS

O sertão, por certo, é muito de bonito, de agradar os olhos e a alma. É de muita paz e de beleza para todos os lados; para cima e no chão. Há uma combinação de agrados nas presenças da natureza – foi o que por anos eu vi e senti, guardando nas lembranças: o chão era de tapete verde nas águas, deixando espaço só para as trilhas cavaleiras e caminho de gado em busca de abrigo – risquinhos tortuosos que explicam o caminhar de quem os desenhou através dos anos, procurando rumo sem definição-definitiva. Na seca era acinzentado ou amarelado, conforme os trechos, mas bonito por ser diferente, escondendo as promessas do verde: as matas de misturas tantas, deitadas sobre os rios e riachos ou nas chegadas das serras, enfiando raízes pelos boqueirões acima, dançando as copas das aroeiras com as das perobas, enfeitadas pelos ipês de amarelo-amarelo, de vez outra despontava o roxo, também de grande beleza, embora de pouco agrado por lembrar a morte no coração do urucuiano supersticioso, tudo quando mais triste fica o sertão. Eram tão altas as matas que o caminho ao cortar um riacho desaparecia na escuridão, mesmo se dia fosse; à noite era breu só, nada se via a um palmo na frente do nariz. Por isso carecia fazer montaria de burro se a jornada saísse do dia. Os riachos eram filetes de água cristalina, saindo do pé da serra querendo o rio, mas levando notícias todas das plantas sobradas: riachos e rios, tais como cobras se contorcendo na descida dos gerais, sem pressa de chegada. Uns forrados de pedras, lajes estendidas de grandes, incrustados de seixos coloridos, outros de barro branco, todo lambido de gado carente de sal, exigindo cuidado no passar para não atolar o animal – tinha aparência de brejo. Os rios eram formosos, correndo longe do barranco, adornados por areia branca, como algodão, muito fina e macia, com moitas de alagadiço, de feiura, mas que davam sombra – repouso agradável para o corpo. Aqui e acolá, os esconsos de água quieta guardando mistérios do rio ou descansar de enormes pintados; noutros trechos, corredeiras lavando cascalho. Assombrando tudo, dia e noite, o céu profundo. No correr do dia o caminho de nuvens-carneirinhas ou enormes colchões; noutras elas tinham o feitio de chumbo, prontas para desabar em águas pingadas. Nas noites o encanto de paz e recolhimento no fundo da alma – cintilantes estrelas, tantas, mais que pintas de cocá que são impossíveis de contar; de uma banda, levantando do fundo do capão dos angicos que bebem no ribeirão da Conceição, subia a lua, descomunal, quando cheia, prateando todo o sertão. E soprava aquela brisa suave com o cheiro das coisas boas por onde passou, lambendo flores do mato. A noite era boa de se gostar ficando à beira da fogueira cantando modas e conversando a vida. Viajar, não; melhor com a luz do dia. Nem sempre acontece do prazer da fogueira ou da quietude do rancho, quando faz noite. Foi o que se deu comigo e o Holmes, quando, de uma feita, deixamos o Cabo Verde, já quase na boca da noite, por mais que precisão. Passar pelos gerais era factível de se perder, pois amplo como o céu era ele a se misturar e tão cheio de trilhas feitas pelos animais. Beirando a serra era mais certeiro, seguindo a única estrada, bem batida. Dois bons burros nos traziam até que a noite nos cobriu. Desceu o escuro, sem sinal de lua, só as estrelas, luzeiros tão distantes parecendo cabecinha de fósforos apagando. E fomos assim, cavalgando com nossos pensamentos, quando afundamos num trecho de mata, próximo do Riacho Doce. Breu total. Trocávamos de palavras para espantar os maus pensamentos. Os burros agitavam as orelhas, o que se sabia pelo ruído do abanar. De repente, como combinados, eles se estancaram de vez. Nenhum passo, nem por força de espora. De pelejar sem valia, estancamos no esforço. Cessada a luta com eles, mergulhados no silêncio, percebemos o motivo: vinha de um dos lados da estrada, bem à nossa frente, um chiado. Holmes, apressado, alertou: “É chocalho de cascavel”. Parecia ou foi o medo que fez parecer. Era igualzinho e dava para imaginar uma bruta delas, na beira da moita de chocalho para cima agitando-agitando, só à espera do burro chegar mais perto para jogar o bote. Voltar não fazia o nosso gosto, era impossível, pois para traz deixamos uma situação bem mais drástica do que aquela, um caso sério de morte na fazenda Cabo Verde. Ir à frente como se os burros que enxergam na escuridão não saíam do lugar? O jeito foi apear. Fizemos uma tocha de papel, o que nos permitiu tomar um pedaço de pau como defesa a qualquer perigo de ataque da peçonhenta e, com toda coragem, tomamos a direção do barulho, pisando sem fazer ruído, um pé na frente tenso, pronto para pular para trás. A mata caiu, novamente, no silêncio sepulcral. Voltamos ao lombo dos burros, a cascavel tomara rumo. Mas para onde? Naquilo, volta o barulho. Mais cismejo. “Ela voltou” – sussurrou Holmes – “dizem que cascavel sempre volta ao mesmo lugar onde começou um serviço para completá-lo”. É o que diziam no sertão. Outra vez apeamos e o jeito foi ir mais adiante, com todo cuidado. Por sorte encontramos uns papéis de anotação dentro da capoteira, com o que fizemos outras tochas, bem maiores - um com o fogo e outro com um pedaço de pau, andando lado a lado, fomos, passo-a-passo, rumo ao barulho que era intenso, parecia uma orquestra dentro do silêncio da noite e do nosso medo, só competindo com o batido acelerado de nossos corações. Perto, bem mais perto, o barulho se intensificou. Não dava para ser cascavel, pois era um som que saía de comprido, ou melhor, ia beirando a estrada por um bom trecho. Mais determinados fomos além, o suficiente para presenciar uma corredeira de cupins, mudando de morada. O sertão é bonito e de muita paz, mas tem vez que faz medo na gente, mais ainda quando “essa gente”, ainda tem cheiro de cidade e está mal acostumada com seus mistérios.


CACHOEIRAS

Das belezas raras do Urucuia, as dezenas de cachoeiras causavam grande admiração. Umas portentosas, de muita água e grande altura; outras de fios d´água brincando entre pedras, cavando-lhes buracos para cair nas lajes estendidas em planos baixos. Umas próximas do Núcleo, outras na redondeza e outras nos caminhos de nossas viagens. Mais acessíveis e que mais aproveitávamos eram duas quase emparelhadas, em V, despencando dos gerais, pela serra da Conceição, para ganhar o vão do ribeirão da Conceição: cachoeiras do Conceiçãozinho e do Imbé. A do Conceiçãozinho, embora de poucas farturas de água, era um milagre, uma dádiva da natureza. Um córrego do jeito de prata que, depois de lambiscar raízes de buritis nas altas veredas, corria por valas incrustadas de pedras e cascalhos, formando rebojos ao avançar sobre touceiras de capim de raiz sedento de frescuras, até chegar a um imenso lajedo, no precipitar da serra: lugar bom de se refrescar, com corpo largado nas lajes lisas, com a água beliscando o corpo. Depois, a primeira e mais alta das quedas – vinte metros de vôo livre da cabeça d´água que explodia num fundo poço cavado na rocha de pancadas mil; dos lados os barrancos de pedras superpostas com manchas de barro onde se prendiam gigantescos imbés e moitas de samambaias, respingados por gotículas espirradas da queda d´água; espraiava-se, dali, descendo escadinhas de pedras, curtinhas, por uns três metros, até ganhar leito maior, todo de pedra, nem uma mancha de barro – corria por ali bom trecho, quase plano, de mais de cinqüenta metros, onde da arquitetura da natureza formara uma rua, pela qual deslizava suavemente a água rasa e uma perfeita calçada, dos lados; de repente, se afunilava, espremendo-se num canalete de oitenta centímetros de largura com a fundura de mais de dois metros pelas medidas que fazíamos com varas; pedra bruta, lisinha, como polida com esmero fosse, brilhando como esteira no reflexo dos raios de sol que logravam furar as folhagens de altaneiras aroeiras; tomado de muita força, ficava valente o córrego rumando para a queda final, deixando definitivamente os gerais; lá no fim do canalete, a garganta da cachoeira era bloqueada por uma enorme pedra redonda – nunca entendemos como ela adquirira aquele formato –, sobrando apenas uma fenda na rocha, por baixo, por onde explodia um jato cristalino de água, voando pelos ares por uns quinze metros ou mais, caindo num portentoso poço verde incrustado nas pedras – era o fecho magistral de uma viagem dos gerais para os vãos de água pura das altas veredas, tudo agradando e agraciando nossos olhos. Ali repetíamos os domingos em agradáveis passeios, tocando violão e comendo farofa de galinha, comprazendo-nos com belo e impregnados pelos eflúvios da exuberante natureza. Do lado, às vezes, era feito um mimo à cachoeira do Imbé - bonita, mas sem os detalhes da Conceiçãozinho, por ser precipitada e querer cair de vez dos gerais para o vão, deslizando num trecho muito longo pelas lajes, como se escorregasse num tobogã. Era bonita por ser diferente e toda cercada – isto tinha demais da conta – de moitas e mais moitas de imbé, abraçadas de samambaias e de avencas – a descida de línguas de pratas, em leito aveludado, dádiva dos gerais para as várzeas. Outras cachoeiras? A da Extrema, no caminho de Pirapora, medida pelo padre Guerino Lasafá, de São Romão, em suas desobrigas, com uma corda – cento e dez metros de vôo. Era majestosa, mas me enchia de pavor, pela altura - eu só olhava as profundidades com os pés amarrados no tronco de uma árvore. A do Brejo Verde, na queda dos gerais para ganhar os vãos do Riacho Morto era outro espetáculo. Sua atração particular, além da imensa altura, era o fato de correr, depois, num vale muito profundo, um corte separando as serras do Tatu e do Constantino – paredões enormes e, lá embaixo, um risquinho de água, de tão longe era de se ver. O Brejo Verde seguia para cumprir sua sina, unindo-se, mais abaixo, com o córrego Mundo Novo, dando vida ao Riacho Morto – o nome vinha do fato de que assim que ganhava o vão, na planície, não dava para perceber se ele corria ou se estava parado, morto, de águas turvas por causa dos altos barrancos que, solapados caiam em seu leito - que seria deles o mensageiro das lembranças das serranias para o grande rio Urucuia que cortava a vasta planície nascida nas bordas do planalto rumo a Goiás até ao grande São Francisco.


CERRADO

Os modos de gostar do cerrado são de querer diferente de quem o vê e nos conforme das quadras, mas nas eras todas do ano ele tem seus atrativos, pois veja: muitas plantas têm floração e frutificação no período seco, quando todo o mato fica marrom, o capim esturricado, a areia branca mais mostrada e as águas poucas – é tempo, para uns, de fazer dó, mas, para outros, muito bom, para recolher raízes e folhas para preparar as infusões. E, depois das chuvas, a correr dias, é dado de se ver as beiradas das estradas floridas pelas amarelinhas. No rigor da seca é tal igualmente dado de se ver enfeitando as estradas, a mimosa ciganinha em forma de novelo, com seu vermelho delicado contrastando com a tristeza do cinzento do sertão. Aquela secura tem ainda um efeito especial: faz mais forte o aguardo dos sinais da primavera. Impressionante – com chuva ou não, basta a mudança no ar, as frescuras que vêm do alto e que sobem da terra, mudando o tempo, para se ver as diferenças chegadas, o cerrado trocando de roupa. Primeiro a dar sinal, agosto ou setembro, é a sucupira, vestindo-se de roxo a cobrir toda a copa; depois, sem mais delongas, chegam as caraíbas – parentes do ipê- e o próprio ipê – amarelo ou roxo; a mimosa piúna, com florada miúda, branquinha como cristalizada refletindo o brilho saltitante dos raios do sol; o pequi; o pau-santo com suas flores brancas a imitar a boa-noite; a pimenta- de-macaco com os desejados frutinhos para os passarinhos; mais rasteiras, formando jardins, cobrindo, devagarinho, o manto seco: papaconha, para-tudo, poaia-de-lã, poainha - de delicadas flores -, raiz-de-perdiz, figueira e os canteiros imensos de quaresmeira anunciado as cabeceiras de veredas. É preciso guardar: todas essas plantinhas são do mais alto valor como remédio e o sertanejo sabe disso como doutor. Vindo as chuvas o cerrado fica encorpado, toma roupa de verde exuberante, luxuriante pode-se dizer. Vira festa com a chegada das frutas que servem aos pássaros, aos animais e aos homens. O pequi, fruto sagrado do sertão; cabeça-de-nego, cagaita, mangaba, murici, coquinho, caju-do-cerrado e mais tantas. De outubro a março ninguém passa fome no sertão, que de fruta muita ele se farta, de mais importância o pequi, a carne do pobre. Tem caso de gente que sai de casa levando uma panela e sal para se embrenhar no cerrado onde fica por semana se fartando da carne amarela. É crença no sertão: ano de muito pequi é ano de pouca chuva. E se explica: a natureza compensa, antecipadamente, com seus frutos o que o sertanejo não iria tirar da terra, na lavoura, pela falta de chuva. É sabedoria, não duvide. E têm bichos, são muitos. Uns são alimentos, outros remédios ou alegria. De aves o céu é festa todos os dias, com muitas araras, papagaios, jandaias e periquitos, ganhando os buritizais em busca do fruto vermelho ou de topo de palmeiras para ajeitar seus ninhos; nas campinas as seriemas gritadeiras ou ouriçadas emas de corrida engraçada; nuvens de pássaros-pretos, gaviões e corujas. Os olhos são agraciados com beleza ainda singela de um campo de relva, rente ao chão, que vai esbarrar em buritis. Um pé, outro, outro mais, uma fila e, depois ajuntados, balançam ao vento tantos e tantos, descendo por um vão, onde em moitas de capim, escondidas entre emaranhado de raízes e samambaias, cantando suavemente, brotam olhos d´água – um espelho de prata banhado por uma nesga de raio de sol que vasa a cortina de folhagem que protege da loca. Encantadoras veredas. A vida é transformada: o ar é mais fresco, ouve-se uma música constante, vinda dos flabelos dos buritis, roçando nas copas das pindaíbas; o chuá manso das águas que vão escorrendo e crescendo, crescendo, a vida chegando e saindo para saciar-se na frescura cristalina. Foi o cerrado que conheci e viajei por quanto tempo. Gostava muito dele, mas por apreciar sua beleza e por me ser comum naquele tempo. Devia gostar muito mais para melhor dele ter aproveitado, pois hoje ele está ficando na saudade. Hoje, o seu encanto é passado: tinha muitas flores, tinha muitos frutos, tinha muitos bichos e muita água. Não tinha e nunca teve eucalipto e a moto-serra, e o carvão era desconhecido, senão no fogão de barro ou ferro de passar roupa. Indo para São Francisco, deixando o sertão, tive a alegria de conhecer o grande folclorista Saul Martins. Dele tomei gosto pelos escritos das coisas do povo e me aprofundei nas pesquisas do folclore. Sou grato. Com ele, também, mais guardei o sertão em mim, quando me ofereceu um livro maravilhoso – CANÇÃO DA TERRA; nele um gracioso soneto que ganhou declamação obrigatória em reuniões do nosso grêmio e apresentações sociais: "Flores do Campo". É o retrato do meu sertão. Espero o mês de agosto e, passado ele, vou ao campo, em setembro, para matar as minhas saudades, repetindo Saul Martins: "Quando, em setembro, chega a Primavera, / Aparecem nos campos, nas queimadas/, Ou mesmo nos barrancos das estradas,/ Até na palha seca da tapera,/ Belas flores de pétalas bordadas,/ De raro olor e de aparência austera,/ Lindo jardim que a natureza gera/ Para alegrar a vida nas chapadas./ Debalde cultivá-las no canteiro!/ Só podemos vê-las soberanas,/ No seu meio, no peito de um vaqueiro,/ Nos tapumes de humílimas cabanas,/ Depois da chuva, à tona de um ribeiro, / Ou nas tranças de frívolas ciganas."


PÁGINA DE UM CADERNO

Dos velhos guardados, velhos mesmos, e que ainda me sobraram, encontrei um caderninho amarelo, soltando os cantos. Nele, os contornos de algumas anotações, poesias e rascunhos de cartas do meu tempo de Urucuia – o bolero que escrevi em parceria com o Chico: Sublime Amor; tópicos para um livro (já tinha essa pretensão, meu Deus?: "Homem das Choupanas”, em que mostrava minha indignação em vista do estado de miséria e abandono em que vivia o rurícola - era a nossa palavra chave, àquela época – vivíamos e respirávamos pensando no rurícola, no "soerguimento do homem do campo") e, curioso, fazia uma análise das queimadas, questões de higiene, sistema de vida, crendices, as festas, a música, a educação e coisas mais que, ainda hoje, ou mais precisamente hoje, precisam ganhar corpo por encerrar tanta beleza e preocupação social. Olhei com carinho aquelas letras tortas, as idéias fartas e às vezes ambíguas, os tropeços ortográficos ao mesmo tempo em que via a vontade de escrever difícil. Uma coisa senti, com toda certeza: eu tinha uma grande paixão pelo Urucuia e por aquilo que fazia. Daí ter tantas saudades daquele sertão sem fronteiras. Presto uma homenagem ao meu caderno para que não reste inútil ter sido guardado por tantos anos, trazendo sonhos de quarenta anos passados. É quase um despropósito e sem valia, eu sei, mas tem muito amor guardado: "Uma página a um paraíso: Na terra existem, ainda, recantos que podemos chamar de paraíso; onde o sol nasce dourado atrás das matas e jorra seus primeiros raios num ribeirão de águas cristalinas, tão mansas que parecem um espelho. Há cantos de aves, murmúrios dos ventos que roçam as folhas ásperas da sambaíba ou as folhinhas verdes do pau d´óleo que escondem frutinhas vermelhas. Há tudo de belo na natureza, mas o que faz daquele recanto um paraíso, é a sua gente bondosa, alegre, que no sorriso traduz a maravilha de viver; aquela gente irmã, compreensiva, que ama a Deus; que tem um coração em parcelas gêmeas. Aquela gente faz da Conceição um paraíso que jamais olvidarei". Confirmou-se: o que guardei do Urucuia ainda tenho como um paraíso – sua gente e o universo que, depois, viria cantar em prosa imortal o mago Guimarães Rosa em o Grande Sertão:Veredas. É o que ele escreveu, ou melhor, transpôs com emoção para o livro, o extenso Urucuia. Não me emocionam as palavras do caderninho no seu valor de escrita, mas no que encerram, no profundo que entalado quer gritar e dizer alguma coisa, sentindo-se impotente, mas guardando um sentimento bom: o do amor e da saudade imorredoura – Urucuia!


CORONEL FULGÊNCIO, 45

Onde o homem tem seu tesouro, ali tem o seu coração – é um ensinamento bíblico. De maneira muito especial isso aconteceu com os Bandeirantes: todos tinham um profundo afeto e amor por Dona Maria Célia Santos, nossa Diretora na Escola Normal. Ela era nosso tesouro, por isso, parte do nosso coração estava nela e como ela sabia aninhá-lo. Assim que fomos para o Urucuia em nossa memorável missão, ela deixou a Escola e foi para sua casa em Belo Horizonte, rua Cel. Fulgêncio, 45, bairro Santa Efigênia – tinha a rua o nome do pai de dona Maria, militar condecorado por feitos heróicos na Revolução de 30. Como minha família morava no Triângulo Mineiro, sempre que ia a Belo Horizonte era acolhido com todo carinho por dona Maria (o que acontecia com outros Bandeirantes, também) e ali, nos idos de 1958 a 1960 vivi uma fase muito interessante de minha vida, ao lado de Nivaldo e Zezé filhos de Dona Maria e sargento Barroso que ainda tinham Isabel, Maria Helena, Roberto e Elcinho. A professora Vanda, do primeiro casamento de dona Maria e Mãe Biela (mãe de dona Maria) também eram moradores da bela casa que tinha o alpendre voltado para o centro de Belo Horizonte. Naquela época, como eram poucas e baixas as casas na região, era possível ver o “belo horizonte” e, assim, os poucos arranha-céus da cidade. Os dias que passava em Belo Horizonte – raros – aproveitava para ir ao cinema – cine Alvorada, na praça do BG – e, às vezes no centro: Acaiaca, Arte, Brasil e Metrópole. Num caderninho anotava o nome dos filmes, diretores e atores para, depois, mostrar no Urucuia, com o complemento de revistas especializadas - Filmelândia e outras-, o que alimentava nossos sonhos por tempos e tempos. Com Nivaldo falava de aviões – ele adorava aviação e era capaz de distinguir (e desenhar) um grande número de aparelhos pelo nome, utilidade e capacidade (os de passageiros – Constelletion, Convair, Douglas DC-7, os mais belos e imponentes colocavam-se em vôos pelo éter). Era agradável a sua companhia, pois ele puxou a mansidão, compreensão e modo atencioso da mãe. Com Zezé eu aproveitava o outro lado: o da diversão mais aberta, o encontro com as meninas do bairro. Não era como hoje, mas não deixava de ser divertida a sessão de flertes, as brincadeiras alegres e os raros saraus para ouvir a música que eclodia nas vozes de Elvis Presley, Billy Halley, Litle Richard: eu vi e senti o rock nascer. Não conseguia levar a nova moda para o Urucuia porque, primeiro, não tinha discos e toca-discos (na verdade só existia no Urucuia o rádio a pilha do Buchene); segundo: a turma curtia mais o bolero, fox e as guarânias do Chico. O Rock, àquele tempo, era quase uma agressão. Por influência do Zezé que tinha todos os discos e sabia cantar todos os rocks de Elvis e outros, fui tomado pelo novo ritmo e, ainda hoje, curto aquela fase tão alegre e feliz da minha vida. Outra lembrança da 45: a Mãe Biela, sexagenária, cabecinha branca, uma doce criatura no trato. À entrada da casa, logo depois do portão de ferro, num canteiro encostado no muro, subia um arbusto que, em certa época do ano se cobria de flores rochas, perfumadas, docemente perfumadas: o manacá de Mãe Biela. Todas as vezes que ia a Belo Horizonte eu namorava aquele manacá e comentava o fato com ela. Um dia fui surpreendido com o presente de uma muda que ela mesma plantou para mim. Por tempos tive meu pé de manacá, deixado para trás por forças das mudanças, mas o tenho na memória e nos meus escritos, como tem Mãe Biela nas minhas orações. Dona Maria, Mãe Biela, sargento Barroso e filhos, tão amigos – como irmãos – todos foram tão importantes na vida dos Bandeirantes. Por isso, posso dizer, com toda certeza que, por simbiose, por sentimento, sendo parte da gente, eles foram, também parte da história do Urucuia. Assim, neste modesto relato eles não poderiam ser omitidos. Uma página no nosso vasto Urucuia se abre para guardá-los carinhosamente. Assim há de ser.


FECHANDO O CICLO

No início de 1960 fui surpreendido por um comunicado do Audálio: “você foi transferido para São Francisco. O Coronel mandou uma determinação para você se apresentar lá. Sabe, você vai ser o diretor daquela Escola”. Recebi a notícia como tivesse tomado um tiro no coração. “São Francisco? Não vou, não, Audálio”. Ele enfático repetiu: “É ordem do Conselho, aqui está o rádio”, mostrou-me cópia do comunicado. Não falei nada e voltei ao meu trabalho. Naquele dia fiquei pensando em São Francisco, cidade que conheci de passagem, quando acompanhei o Capitão Pedrinho, no Piper, na viagem em que ele foi buscar o Pe. Pedro Maurer para celebrar a Missa de Nossa Senhora da Conceição, nossa padroeira, em 59. A minha ida a São Francisco me parece hoje ter sido arranjada pelo Coronel, que sempre esteve a ajudar tecer nossos destinos. Ele me queria em São Francisco, onde já se desenhava a saída do Cel. Oscar Caetano Gomes, o então diretor da Escola, que buscava um merecido descanso depois de longos anos de trabalho, desde a fundação daquela unidade das Caio Martins. Creio mais: ele sabia da minha queda por Vilma, colega de escola em Esmeraldas e filha de São Francisco. Sabia tanto que, meses antes, de viagem para São Francisco, ele passou pelo Núcleo... Qual não foi minha grande surpresa, naquela feita, quando vi descendo do "Anjo Verde", Vilma, com quem, à distância, eu mantinha um namoro tumultuado por miríades de intrigas de suas colegas, muitas de São Romão. Ela não respondia as minhas cartas que, com o tempo, foram rareando e, por isso mesmo, desesperançado, eu ia me desbandeirando por outros rumos, chegando, enfim, a um namoro firme e a quase ficar noivo, em São Romão. Vendo Vilma, ali no Núcleo, meu coração veio à boca, sacudiu a paixão recolhida. Eu estava agachado, plantando grama na frente do rancho. Quis levantar, mas faltaram as pernas e, assim, a comitiva, com o Coronel à frente, chegou até onde eu estava. Sem jeito, com as mãos sujas de barro, creio que amarelo e tremendo, olhei-a nos olhos e consegui um leve sorriso que não dizia nada. Ela era a mesma que trazia nas minhas doces lembranças: um corpo leve, quase menina, a tez morena, cabelos negros, longos, com uma franja cobrindo parte da testa. Fiquei aturdido com aquele encontro formal, frio, como se não nos conhecêssemos, mas, ainda assim, consegui puxá-la para um canto, onde descarreguei toda a minha mágoa em razão do seu comportamento. Ela a tudo ouvia e depois retrucou com firmeza, dizendo que sabia das minhas traquinagens em São Romão, dos namoros e coisas mais, e que eu não gostava dela coisa nenhuma. Eu rebati dizendo o mesmo dela, ao que ela tudo negou. Deu para perceber, então, que fôramos vítimas de uma teia de intrigas. Ficamos com a situação no ar, no volta e não volta, sem definir. Então, na minha arranjada ida a São Francisco busquei encontrá-la. Dona Alice Mendonça, esposa do Cel. Oscar, para cuja casa fomos levados para aguardar o padre me indicou onde eu poderia encontrá-la. Foi o meu primeiro passeio pela rua Direita, até ao seu final, numa casa de esquina, onde morava o pai dela. Não estava, tinha saído. Indicaram-me a casa do avô dela, seu Amorim. Também lá não estava e o tempo corria, já estava na hora do regresso. Voltei triste à casa de dona Alice com quem deixei um recado, pedindo para dizer à Vilma que a procurara. Voltei mais triste e desiludido ainda para o Urucuia. Daí faltava-me motivação para deixar o Urucuia em troca de São Francisco, mesmo sendo ela uma linda cidade. Correram os dias e eu quieto sem tomar nenhuma iniciativa de viagem. Numa bela manhã pousou no Núcleo o Anjo Verde e, dele desceu o Cel. Almeida que ao me ver foi logo esbravejando: “O quê você ainda está fazendo aqui que não se apresentou em São Francisco?”. Quis argumentar, dizendo que não tinha a mínima vontade de deixar o Urucuia. Estava sendo sincero, meu coração estava preso ali, não queria se desgarrar. De volta ele sentenciou: “Você tem 30 dias para se apresentar no novo posto”. Falara o militar. Acostumados e condicionados a servir à Escola a quem devotávamos o maior amor, cedi. Nos trinta dias providenciei a venda da lavoura de arroz, milho e feijão que tocava com os amigos Chico e Vicente na confluência do córrego Conceiçãozinho com o ribeirão Conceição. Era uma fatia de terra de primeira, exuberante – o limo do Nilo, a gente repetia sempre - lugar alto, sem risco de enchente, por isso os “mantimentos”, estavam uma beleza só. Vendi o Tarzan e o Sputinik. Da minha parte na cooperativa, algumas cabeças de gado, que não apurei nada. Contudo, com o dinheiro da roça e dos dois cavalos, pude ir a Bonfinópolis onde comprei dois cortes de linho – um caqui e outro azul claro. Na minha vida, até então, eu só vestira um terno, na minha formatura; minhas roupas eram surradas calças e camisas de brim; calçado, uma bota gaúcha. Não precisava de mala para levar minhas poucas coisas, mesmo assim joguei o pouco de minha posse numa velha mala de fibra, toda enrugada e corroída. Esperei até o 30º dia, quando, literalmente, fui enxotado pelo Audálio. Chegando a Pirapora deparei com uma greve dos navegantes e dei graças a Deus: “quem sabe que com o tempo esquecem de mim e posso voltar para o Urucuia?” - sonhei. Os dias escorriam. Consolo encontrava nos amigos Dr. João Pitanguy e dona Iolanda que me receberam em sua casa. Ali, todas as noites muito conversávamos e ele foi me ensinando coisas e pintando como era São Francisco e sua gente. Passados uns dias o tio Ortiga – então diretor do Núcleo de Buritizeiro - me chamou à Escola querendo saber o que estava acontecendo comigo. Fiz de desentendido, buscando a razão daquela preocupação, ao que ele respondeu: “O Manoel está bravo com você, sem saber onde anda, dizendo que você já devia estar em São Francisco há muito tempo”. Argumentei que não viajara por causa da greve dos navegantes, ao que ele, de pronto deu a solução: “Tá aqui a passagem de jardineira para Montes Claros. Lá você pega outra para São Francisco”. Esvaíram-se todos os meus argumentos e esperanças. No outro dia embarquei para Várzea da Palma onde tomei outra jardineira para Montes Claros e, de lá para São Francisco, no outro dia. Nos primeiros dias em São Francisco, todas as tardes, ia para a beira do rio, e de lá, assentado num batente abaixo do cata-vento passava horas a fio, até ser expulso pelas muriçocas, olhando o horizonte, no rumo do Urucuia – direção certa que aprendi na viagem feita de avião com o Capitão Pedrinho. A angústia tomava conta de mim; a saudade me corroia por dentro levando-me a um penoso recolhimento, tão profundo que me fazia sair dali, pousando nos gerais urucuianos, percorrendo suas veredas, os vãos, os riachos, as areias brancas do Conceição, assentando-me no velho rancho e no meio dos meus companheiros de ideal. Voltar à realidade era sempre amargo. O tempo passou e a escola de São Francisco tomou conta do meu coração quase por inteiro, não o assumindo de todo porque num cantinho, inarredável, preso como se fosse parte dele, estava o Urucuia, e está.


SUMÁRIO

Uma História
Prefácio
Paraíso Encantado
Estágios
A Instalação
A Realidade
A Vida do Núcleo
O Rancho
Audálio Lisboa
Pitanguy
Zé Branco
Vicente e Mariana
Bezerra
Zé da Palma
Agenora e Maria José
Manoelzinho e Outros
As Viagens
Poleiro de Pato
Travessia do Conceição
Capão da Cinza
Boca da Vereda do Chico Velho
Cinco Léguas de Vereda
Solidão
Filhos para a Guerra
Outras Viagens
Pousada no Corrente
Santa Cruz
A Defunta
Eleitor no Toco
Aniversário
A Rede
A Onça
Olhos Verdes
Menino Prodígio
Escoteiro e sem Chapéu
Fim das Viagens
Evasão dos Motoristas
Caminhoneiro
Caminhoneiro II
Caminhoneiro III
Caminhoneiro IV
Caminhoneiro V
Ocaso do Ford
Dado como Morto
Chevrolet
Chevrolet e Ford
Viagens de Jipe
Carnaval da Solidão
Pilão
O Perneta
O Rego
Futebol
Teatro no Sertão
Recital em Capão Redondo
Construções
Raimundo Santos
Raimundinho
Chico
Curso de Rádio
Desbandeiramento
São Romão
São Romão II
São Romão III
Cachorro Doido
Cooperativa
O Enterro
Os Bichos
Os Cupins
Cachoeiras
Cerrado
Páginas de um Caderno
Coronel Fulgêncio, 45
Fechando o Ciclo


COMENTÁRIOS POSTERIORES À PUBLICAÇÃO:

OSCAR CAETANO GOMES JÚNIOR, advogado, São Francisco:

“Naves,

Não quero usar o lugar comum de que li “A Saga de um Urucuiano” de um só fôlego, mesmo porque esta seria apenas uma figuração, por impossível. Direi – e é verdade – que o li de suas assentadas, uma no sábado, outra no domingo.
Não me surpreendi, no essencial. Já o conheço de longas jornadas, já sabia de sua competência, de sua veia romântica, de seu vernáculo, de seu lado sentimental e até um pouco místico. Seu livro é muito bom, a leitura é agradável, o léxico perfeito, as histórias comoventes e sua entrega é total. Os detalhes me surpreenderam: seus conhecimentos de mecânica de carros, posto que ultrapassados, sua força física, suas conquistas amorosas (pensei que a menina de franjinha na testa, fosse a primeira e única), são facetas de que jamais eu tivera conhecimento.
Poucos, como eu, podem sorver a sua história, no seu conteúdo amplo, podem se embeber, como eu, do variado espectro do sertão urucuiano, eis que ali vivi, dos três meses aos seis anos de idade, que ali voltei várias vezes, que sempre mantive relações de amizade e profissionais com sua gente, que já me hospedei no Hotel São Geraldo, gozei da amizade e carinho do seu proprietário, o singular Eustáquio Martins, que colocava os chinelos ao pé da minha cama e me oferecia do seu perfume para mim preparar para os bailes (os famosos bailes de São Romão), afinal, eu que também sou um urucuiano.
A fidelidade de suas descrições da natureza, suas pinceladas biográficas de tipos mais autênticos e extravagantes, as plantas, as águas, os animais são aqueles, as pessoas são aquelas, aquelas que eu tanto conheci, admirei e amei e sempre desejei perpetuar, como você fez. São fatos que me concedem autoridade para julgar, admirar e amar o seu trabalho.
E o idealismo! E a epopéia colonizadora! Esse bem-e-mal que sempre o acompanhou em tudo que você fez e faz em toda sua vida!, bem que o distingue na sociedade dos homens, como uma pessoa especial, mal que sempre impediu sua evolução econômica e sua vitória naquilo que se convencionou chamar “vencer na vida”, ou seja, amealhar fortuna material, sendo você, como é, afinal, um verdadeiro vencedor.
Outra grande virtude de sua obra: o respeito e a admiração por este grande bandeirante – idealista e visionário como você – o criador e realizador da grande obra caiomartiniana, obra, hoje, infelizmente, em banho-maria. Certo,que você não segurou a revelação de faltas cometidas àquele tempo, por impossível, uma delas o sacrifício dos idealistas, que, mesmo sendo a bem do ideal, poderia, não ser tão traumático e doloroso, prejudicando o próprio fim desejado, sendo você, afinal, um dos mais injustiçados. A História nos oferece tantos outros exemplos de que as grandes obras engolem seus criadores. Você não foi o único, nem o primeiro, nem o último. Revelados os erros cometidos no percurso, não se pode ofuscar o brilho da inteligência do Cel. Almeida, sua capacidade de trabalho e o fruto colhido no seu grande projeto, ao qual se dedicou com todas as forças de seu ser, tornando-se ubíquo, no ar e na terra, sacrificando conforto e família, arriscando sua vida, conquistando amigos e adversários – CAIO MARTINS até morrer!... aproveito para vê-lo, como sempre o vi, com aquelas olheiras profundas, o olhar vago no futuro, aquele ar de quem estava distante estando presente, vendo, ou melhor, antevendo onde ninguém via, ocupando o espaço passado-presente-futuro, amando a natureza, amando os jovens, amando a nós todos, amando a vida.
Naves: A bandeira caiomartiniana merecia muito o seu livro e vice-versa. Ele é um resgate, uma “redimissão”, pois o livro é tão importante como a obra. A obra é linda e o livro é lindo.
O velho caminhão francês, o menino Raimundo Santos morto prematuramente na areia, as adolescências virtuosas dos bandeirantes, a fes ta Santa Cruz, o enterro de Avelino Baiano, as árvores, as flores (ciganinha, ciganinha me traz a Amanda minha!), que você descreveu com tanto amor e fidelidade, o mau-passar que se tornava festa, as figuras humanas tão ímpares e excêntricas e características, Audálio Lisboa, Chico médico e tantos outros, são passagens e pessoas que emocionam e dão, na gente, aquela vontade de ter participado, como você participou. É nesse aspecto que você, longe de arrepender-se, deve se orgulhar de ter sido um figurante da grande aventura “conceiçãoense”, ainda que lhe tenham restado seqüelas.
Naves: o que lhe queria dizer, neta careta, não somente o que disse; diria mais e melhor se não me minguassem “engenho e arte”.
Agradeço o livro e a dedicatória, embora profundamente magoado e surpreso, pela recomendação oral, lembra-se párea que lesse o seu livro? Logo a mim que sou um “ledor” compulsivo e contumaz até de livros que não conseguem me tocar o coração, como fez o seu.
Um abraço, ex-corde”.

(21 de maio de 2003)



SEÇÃO DE FOTOS

Selecionei algumas fotos relacionados ao meu Urucuia. O antes – da fundação e os primeiros anos, em preto e branco. Nos tempos atuais, quando o pequeno Núcleo se transformou em um importante e estratégico povoado, agora município de Riachinho, com escola estadual de ensino fundamental e médio. O núcleo é ligado por estradas bem conservadas, à sede do município e a São Romão. Tem energia elétrica fornecida pela Cemig e telefonia fixa.


FOTOS

01. Capa
02. Bandeirantes na Churrascaria Camponesa – BH, em companhia do Cel. Almeida, Dona Márcia, Maria Coeli e major Zoir, na véspera da viagem para o Urucuia.
03. Bandeirantes na Escola Caio Martins de Buritizeiro
04. Cel. Almeida conversando com bandeirantes e jovens da caravana que foi participar da instalação do Núcleo do Urucuia.
05. Apresentação da imagem de Nossa Senhora da Conceição, padroeira do Núcleo
06. O avião Piper, Anjo Verde, no campo do Núcleo do Urucuia
07. Cachoeira do Conceiçãozinho
08. Obra do rego (duto de água da base da cachoeira do Conceiçãozinho para abastecer o Núcleo.
09. Jipe do Núcleo na travessia do Rio Paracatu, Porto das Abóboras.
10. Primeira casa – erguida no lugar do velho rancho, primeira morada dos bandeirantes e alunos do Núcleo.
11. Inauguração da Casa dos Bandeirantres, transformada em lar dos alunos.
12. Serradores.
13. Construção da Igreja de Nossa Senhora da Conceição
14. Construção do primeiro lar para os alunos do Núcleo
15. Time de futebol do Núcleo
16. Casa dos Bandeirantes – hoje casa do diretor do Núcleo.
17. A atual Igreja de Nossa Senhora Conceição
18. Detalhe de uma das ruas do Núcleo – 2004.
19. Rio Conceição.






































































3 comentários:

  1. Caríssimo, mas caríssimo mesmo, João, o Naves...

    Parabéns por este espaço repleto de textos memorialísticos.
    Trata-se de um Blog interessante, rico em informações, provocativo para a pesquisa nas Ciências Humanas.
    Estávamos ávidos por suas escrituras sobrecarregadas da poética barranqueira nossa de todo dia, tão longe dos olhos, mas perto do coração e da saudade.
    Visitando seu Blog, é estar passeando por entre danças, folguedos, cerrados e veredas...sempre...
    As fotos são um verdadeiro sistema semiótico, é o mesmo que revivescer o presente-no-passado !

    Um grande abraço, e esperamos mais...
    Profa. Generosa Souto
    Unimontes

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  2. Como faço para entrar em contato com o João Naves, diretor de caio martins que melhor soube administrar aquela escola-fazenda de Caio Martins?
    Hoje, graças aos ensinamentos colhidos naquela época, sou oficia do Exército Brasileiro, e gostaria muito de poder me comunicar com este que foi um dos meus mentores na minha infância. Sou filho do Pedro Lázaro, de Caio Martins, e trabalhei com meu pai nos jardins, na oficina de cerâmica e plantação de rosas. Tempos bons aqueles, quando conseguíamos administrar a produção da terra e educar as crianças!
    Abraços ... TFA

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  3. A saga de um Urucuiano: literatura sublime das bordas do Velho Chico. Feliz por estar investigando essa obra no meu Mestrado. Salve João Naves de Melo!

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