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segunda-feira, 17 de setembro de 2012

ESTRADA POEIRENTA, MATA SECA E XIXÁ


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          A estrada é um corte estreito rasgando o coração de uma mata seca com as árvores, à maneira de postes, espetadas ao céu, sem folhas, com variadas espécies arbóreas caducifólias: aroeira, folha-de-bolo, pau-pereira, caraibinha, imburana, mutamba, caroba e pingados pés de embarés e paineiras. De verde, só possível, quando se passa por um pé de juá-de-boi que resiste a qualquer seca ou o apontar das primeiras folhinhas adiantadas dos tamboris. A paisagem, quase imutável, mostra-se dourada pelo pó levantado do leito da estrada pelo soprar do vento, roçar das patas de animais ou pneus de veículos automotores. No viajar lento, vislumbra-se, ainda, em plano inferior, garranchos das vaquetas – esquá-lidos e desprovidos de folhagem, formando uma cortina cinzenta guardando uma beleza triste.
          Vencendo curvas, mata-burros e buracos destampa-se um pequeno povoado. O primeiro conta-to é com o humilde cemitério – céu aberto de sol escaldante, de impressão causar aos olhos de ver fu-maça ascendendo aos céus. Ali, meio a toscos túmulos, debaixo de um pé de mutamba (camacã) – co-mo queria – o túmulo do mestre Minervino. Então, o reverencio com um pensamento de saudade, lem-brando do nosso primeiro encontro em sua humilde oficina (uma banca) debaixo de um pé de xixá, encostada em um umbuzeiro. O primeiro encontro aconteceu no exato dia de Bom Jesus da Lapa, 6 de agosto de 2002. Era tudo tão seco, como agora, por isso tanta saudade. Através do informativo Car-ranca, da Comissão Mineira de Folclore, tirei o mestre Minervino da grota do Surucucu, dando ampla dimensão do seu importante trabalho como artesão, tornando-o conhecido em sua arte como notável fazedor de violas caipiras e rabecas – ele ganhou o Brasil e, com isso, construiu uma oficina de alvena-ria, espaçosa e coberta com telhas. Ali, começou a ensinar a jovens da região através de um projeto do IPHAN. Aproveitou pouco, pois seu encantamento se deu breve tempo depois. Contudo, ele deixou uma semente – o jovem Geraldinho mantém o padrão da sua viola, na oficina da Cultuarte, na cidade. O mestre Minervino não morreu.
         Subindo um leve tope, vislumbra-se a igreja do povoado – pequena, singela, mas bonita, ali do alto dominando a paisagem.
         De estirão abaixo, chega-se ao ribeirão do Angical. Famoso, no nome e na valentia passada e, ainda, por uma barragem inútil. Chegando-se ao leito do ribeirão, que tristeza! Onde corria muita água, de grandes cheias, de força tal que foi capaz de carregar a ponte de madeira ali existente, o que se via, agora, era pó, tauá e pontas de pedras. A estrada corta o leito sem dificuldade, tão plano ficou.
         Dali para frente a topografia era outra, bem diferente à dos olhos acostumados na direção con-trária, de onde partimos, e mais além, atravessando o São Francisco à depressão urucuiana. Inicia-se uma subida, coleando pequenos vales e pedreiras.
         A vegetação torna-se mais rala. Não muito andado, voltando-se as vistas para o que ficou, percebe-se que chegamos a um altiplano, podendo, então, bus-car horizontes esticados, com visão superior.
         Curvas, rampas, pequenas propriedades encontradas pelo caminho – umas bem edificadas, bo-nitas; outras humildes, muito pequenas, todas porém com dignidade. Rebanhos de bovinos apareciam em recantos de pastos. Vacas com bezerrinhos serelepes incrivelmente gordos, considerando a seca brava que assola a região.
De repente, uma surpresa, o inusitado – ainda numa leve subida, com curvas e buracos ou socalcos com pedras pontudas, onde não se pode rodar o veículo além de 10km/h, surge uma placa de sinalização, muito bem pintada com o dizer: “Velocidade máxima: 40km”. Desnecessá-ria seria a recomendação. Logo depois, mais duas placas anunciando quebra-molas – na verdade, dois morrotes. Desnecessárias, também – a estrada não permite imprimir velocidade maior.
          Viagem à frente e nada de chegar ao destino. O sol já descambava no horizonte, anunciado a despedida do dia. E nada de chegar o destino. Surge num amplo terreiro, uma bela casa com cerca de madeira à frente. Bem à hora para buscar informação, pois já nos considerávamos perdidos no sertão. O morador, gentilmente, voz mansa, dá a orientação: aqui fica perto de Lapa do Espírito Santo. O des-tino que buscam ficou para trás, coisa de quatro mata-burros passados. É descer de volta, encontrar uma placa anunciando a estrada para a Igreja da Taboquinha e seguir por ela. Foi o que fizemos. De-pois de bem rodar por uma estrada quase intransponível tão cheia de pedras e buracos bem no meio do leito, ainda com tantas cancelas, antes não vistas, enfim chegamos à Igreja da Taboquinha. O sol já escorregava rumo ao ocaso. Preguiçosamente ele se deitava sobre a galharia seca que se estendia além do de se ver.
         Arre! Alívio. Apeamos – eu, minha filha Rachel e o noivo Alan, o amigo/irmão Dirceu Lelis e a violeira/cantora são-franciscana Ana Patrícia. Iríamos nos juntar ao grupo do projeto “Foliões e To-cadores de Taboquinha da Tapera” que, com Tone Raposo, da Cultuarte, promoviam um encontro com ternos de folias da região no fechamento de uma etapa do dito projeto. Encontramos alguns técnicos preparando o local para a função da noite e, cadê os violeiros e foliões? Estavam percorrendo cami-nhos, visitando casas e casas, como fazem os foliões nas suas funções de cantarolia e adoração à lapi-nha.
         O sol cai mais. O horizonte virava um mar dourado esvaindo-se para o plúmbeo – seria noite chegada breve. Não era possível aguardar os foliões, pois o receio da volta, sem conhecer a estrada, era grande – preciso era empreender o regresso sem muita delonga. Contudo, uma esbarrada foi preciso, ainda que aproveitando os quase adormecidos raios do sol. O convite irrecusável veio de uma porten-tosa xixá carregada de frutos.
Logo, eu e Dirceu apontamos as lentes de nossas máquinas para os e-normes frutos vermelhos se abrindo. Um, outro e tantos mais, de beleza a causar emoção, porque no sertão tão áspero, tão seco, eis que da natureza nos vem raro presente. Buquês de miúdas flores ainda enfeitavam algumas galhas. No mais eram os frutos vermelhos com suas cápsulas lenhosas grandes, também muito vermelhas – o que se ressaltava mais ainda com os retoques dos raios vermelhos do sol que se despedia, contrastando com os galhos acinzentados nos quais elas estavam agarradas. Um pu-nhado de frutos estava se abrindo, expondo na parte interna as sementes negras e ainda fixadas à pla-centação. Dezenas delas agarradas às cápsulas como bebês, pelo cordão umbilical. Passamos, então, à colheita dos frutos para garantir as sementes que, depois de preparadas, seriam transformadas em deli-ciosos petiscos. Patrícia atirava toletes de madeira nas galhas e vibrava com a caída das sementes ne-gras. Alan e Rachel subindo na mesa de um carro de bois ali deixado, agarrando as galhas mais baixas para alcançar os frutos e, assim, fazer farta colheita. Eu e Dirceu nas fotos para registrar aquele mo-mento tão raro, incomum na aspereza do sertão ressequido, mas belo, por ser sertão.







         O pé de xixá pintado de frutos vermelhos, tão enfeitado como rica fantasia; o pasto seco, tão seco de folhas douradas quietas ao beijo dos raios vermelhos do sol poente; no fundo, na linha do hori-zonte, copas de árvores agrupadas, só galhos abraçados, filtrando o sol. Um quadro incomum, raro e espetacular de despertar atenção porque revelava uma beleza diferente. Eis que, ainda descubro mais um jeito da natureza surpreender a agradar nossos olhos – ali quase debaixo da xixá, solitário, mas querendo se exibir, um pé de algodão de seda ou “vovozinha”, como carinhosamente o chamam os mais antigos. Folhas verdes, sem abundância; e as maçãs, como as do algodão comum, se abrindo e deixando escorrer fiapos brancos, leves e meigos como seda, agarrados às minúsculas sementes, bai-lando ao suave sopro da brisa vespertina, quase imperceptível, como libélulas em gozo de liberdade. Contrasta a brancura de neve do algodão manso com o amarelo do capim e o vermelho encarnado dos frutos do xixá, tudo compondo um quadro de beleza rara.
         Ainda tivemos o momento final, o das poses para registrar a despedida do sol. Pôr do sol no al-to da serra da Taboquinha contemplando o horizonte distante, uma linha marcada pela mata seca.

         O sol se despediu, enfim. A noite caiu de vez. Ganhamos a estrada de volta muito entusiasma-dos, felizes com o presente que nos proporcionou a natureza. E o papo foi animado, lembrando os detalhes.
          Mais uma vez – nos gerais ou nas chapadas; na beira de uma vereda ou na barranca do meu rio; nas matas de galeria ou nas ciliares – o sertão me mostrou a presença do Criador. É preciso estar em paz de espírito para solver sua divina presença em nossa vida. Um meio dos mais gratificantes é pela natureza e, claro, no convívio com o humano que irmãos somos todos nós.

Um comentário:

  1. Seu João, belo artigo que registra a cultura da nossa gente, mas onde está o pé de xixá....faltou, não entendi a função das placas estão sinalizando o que mesmo?

    Silvana

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